José de Souza Martins*
A cultura
de uma escolaridade simples foi o espetáculo, nas últimas semanas, nas falas de
membros do governo, que a expressaram em manifestações sobre diferentes temas
da educação e da ciência. O ministro da Educação considerou-se vítima de um
processo como o de kafta (churrasquinho árabe).
Provavelmente, quis dizer "O Processo", livro de Franz Kafka, escritor tcheco, autor de obras emblemáticas da literatura do absurdo. Como em "A Metamorfose", desse autor, amanhecemos, no dia 1º de janeiro, como o estranho ser que não somos. Esse é nosso pesadelo kafkiano.
Provavelmente, quis dizer "O Processo", livro de Franz Kafka, escritor tcheco, autor de obras emblemáticas da literatura do absurdo. Como em "A Metamorfose", desse autor, amanhecemos, no dia 1º de janeiro, como o estranho ser que não somos. Esse é nosso pesadelo kafkiano.
O mesmo
governo que sataniza a universidade pública tem um ministro da Economia, que
foi bolsista do CNPq, cuja ascensão ao poder coincidiu com extemporâneas
chamadas de reportagem de TV sobre a Universidade de Chicago. Onde ele fez
cursos de pós-graduação depois de uma graduação na UFMG, universidade pública e
gratuita. Os Prêmios Nobel de Chicago foram ressaltados. Nas boas
universidades, porém, é a nota do próprio aluno, e não a nota dos outros, que
diz qual é sua competência.
Faz
lembrar Thorstein Veblen, em seu "A Teoria da Classe Ociosa", e sua
tese sobre prestígio vicário que decorre da dependência em relação a quem tem
prestígio próprio. Aqui, competência não é vicária: ou se tem ou não se tem. O
país está à espera da comprovação de que a economia do ministro resolverá
nossas questões sociais para criar mercado e resolver nossas questões
econômicas.
O vistoso
talento se confirmará se o problema gravíssimo do desemprego for resolvido,
apesar das medidas draconianas que vêm por aí e da falta de políticas sociais.
E se os graves problemas nacionais decorrentes de ignorância e de impróprias
políticas de educação forem resolvidos como passo decisivo para a integração social dos banidos da modernização e do crescimento econômico rentista.
políticas de educação forem resolvidos como passo decisivo para a integração social dos banidos da modernização e do crescimento econômico rentista.
No
capítulo da obsessão pelo diploma e seu simbolismo e a pouca preocupação com o
conteúdo do que o diploma representa, temos fatos melancólicos. Quando era
ministro da Educação da ditadura, o coronel Jarbas Passarinho foi à operária
Osasco (SP) participar de uma cerimônia de diplomação de alunos do curso de
alfabetização de adultos do Mobral. Que, aliás, adotava o mesmo método de Paulo
Freire, hoje satanizado pelo governo, que não sabe quem ele foi, mas dele tem
raiva. Para espanto de um jornalista, o diploma dizia que "Fulano de Tal
não está alfabetizado". Diploma de
analfabeto, mas diploma é diploma. Diz algo, ainda que nem sempre diga tudo.
Idolatrar
o diploma, e não o conhecimento, é pluripartidário. Lula, um dos políticos
brasileiros mais inteligentes, apesar de não ter a escolaridade que gostaria,
frequentes vezes demonstra sua frustração pela falta de diplomas. Emocionou-se
ao receber da Justiça Eleitoral o diploma de presidente da República, mais do
que na posse.
Petistas
destacaram os diplomas de doutor honoris causa que ele recebeu no Brasil e no
exterior. Um deles chegou a comparar o número de diplomas que recebera com os
recebidos por Fernando Henrique Cardoso. Destacou que Lula tinha mais diplomas.
Mas não disse que os de FHC não eram só os honoríficos. Eram sobretudo os da
competência científica e das teses defendidas. Lula gosta de depreciar, sem
motivo, os títulos acadêmicos. De outro modo, é o que faz o governo de agora.
Vários de seus sábios chegaram ao poder porque passaram por curso americano de
ciência oculta de uma nota só.
Mais que
a idolatria do diploma vazio, ameaça a sanidade política do país o desapreço
pela ciência e pelos méritos da ciência brasileira que vem da boca do
governante. O governo deprecia a filosofia e a sociologia, o que mostra
ignorância, e não sabedoria.
Em
deplorável afirmação do presidente da República, na Universidade Mackenzie, ao
louvar a pesquisa naquela universidade sobre o grafeno, desinformado, declarou
que a universidade pública brasileira não faz pesquisa científica. Emitiu juízo
sobre o que desconhece.
O projeto
do Mackenzie tem como parceira decisiva a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo), instituição que recebe 1% da arrecadação estadual para
apoio a projetos de pesquisa e concessão de bolsas de estudo para formação de
novos cientistas. É ela governada por cientistas vinculados sobretudo a
universidades públicas, que apoia pesquisas principalmente nelas e também nas
empresas, em todos os campos do conhecimento. O que é próprio das instituições
de fomento da educação científica e da ciência.
O projeto
do grafeno só foi viável com recursos da Fapesp. Ignorar esse fato é ignorar
muito mais. Só São Paulo, sobretudo nas universidades públicas, produz mais da
metade da pesquisa científica do país.
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*José de
Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP.
Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de Fronteira
- A Degradação do Outro nos Confins do Humano (Contexto).
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/6259161/jose-de-souza-martins-como-em-metamorfose-de-kafka-amanhecemos-como-o-estranho-ser-que-nao-somos 17/05/2019
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/6259161/jose-de-souza-martins-como-em-metamorfose-de-kafka-amanhecemos-como-o-estranho-ser-que-nao-somos 17/05/2019
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