Paulo Martins*
Sexta
de manhã, 26 de abril de 2019, fomos assolados por uma “notícia”:
“@abrahamWeinT estuda descentralizar investimento em faculdades de
filosofia e sociologia (humanas). Alunos já matriculados não serão
afetados. O objetivo é focar em áreas que gerem retorno imediato ao
contribuinte, como: veterinária, engenharia e medicina”. Continua: “A
função do governo é respeitar o dinheiro do contribuinte, ensinando para
os jovens a leitura, a escrita e a fazer conta e depois um ofício que
gere renda para a pessoa e bem-estar para a família, que melhore a
sociedade em sua volta”.
Como o início da notícia indica, isso foi
mais uma postagem do presidente da República Jair Messias Bolsonaro em
seu Twitter, com um link para seu ministro da educação, Abraham
Weintraub. E algumas questões merecem reflexões no âmbito das
Humanidades e da Universidade de São Paulo, já que a Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas é a nossa alma mater e é
inegável seu papel na sociedade brasileira como produtora de
conhecimento, benfazeja à inclusão social, celeiro de formação
profissional e referência da pesquisa nacional e internacional em suas
cinco grandes áreas: a Filosofia, as Letras, as Ciências Sociais, a
Geografia e a História.
Ainda que nos pareça que a declaração do
presidente queira atingir principalmente os beneficiários do Fies (Fundo
de Financiamento Estudantil) e do Prouni (Programa Universidade para
Todos), com cortes na aplicação de recursos tanto para o financiamento
como para a concessão de bolsas atendidos por esses dois programas do
MEC, fora do âmbito privado, o fato de o Ministério da Educação querer
dirigir “seletivamente” a aplicação de recursos ao bel sabor das
“idiossincrasias” do Palácio do Planalto é, sobretudo, preocupante para
as Universidades Federais, dado que essas dependem orçamentariamente do
tesouro nacional e, portanto, estão ameaçadas no cerne de sua autonomia.
No entanto, as universidades públicas
estaduais como a USP não podem crer que tal disparate ou sandice não
possa vir a nos afetar de maneira importante pois que todos conhecemos
nossa dependência da Capes e do CNPq, agências que irrigam os programas
de Pós-graduação e o ensino de Graduação com financiamento de projetos e
com o oferecimento de bolsas desde a Iniciação Científica até a de
Produtividade em Pesquisa. A descentralização proposta por Bolsonaro –
muito além de uma inadequação vocabular, como poderíamos supor, afinal
“descentralizar” não parece dizer nada naquele contexto – está sim a
serviço do desacerto, já que é um verdadeiro ovo da serpente que em sua
imprecisão propositada serve como ameaça a todos nós. Não sabermos a
quem se destina a ameaça acaba por ameaçar a todos.
Outro equívoco pernicioso é a utilização
dos termos “filosofia” e “sociologia” como sinônimo de Humanidades,
“humanas”, diz Bolsonaro. O presidente refere-se ao conjunto de áreas do
conhecimento congregadas na USP pela Filosofia. A sinédoque aqui entre
nós é tomada histórica e respeitosamente, isto é, a Filosofia é
metonímia especializada da parte pelo todo, que nos identifica, FFLCH,
como centro das Humanidades na Universidade. Já no caso de Bolsonaro a
figura de linguagem “humanas” invoca mais uma vez a intencional
generalização da informação a fim de desestabilizar, de pôr em dúvida,
de deslegitimar e, de forma arrevesada, angariar voto de confiança por
falta de clareza – exatamente como fez em sua campanha.
O presidente Bolsonaro, no alto de sua
sensatez, não é para menos, age como uma força repressora da época da
ditadura: generaliza para desestabilizar. Sua maltratada sinédoque além
disso é uma claríssima desqualificação do conhecimento de uma área cuja
importância não irei aqui discutir, mesmo porque meu colega Jean Pierre
Chauvin neste jornal, no dia 24/4/2019, já o fez (https://jornal.usp.br/artigos/o-papel-das-ciencias-humanas/) e a professora Maria Arminda do Nascimento Arruda, em entrevista ao Valor Econômico do dia 18/4/2019 também (https://www.valor.com.br/cultura/6216087/para-bolsonaro-e-temer-cultura-e-perfumaria-diz-diretora-da-fflch).
Algo muito esdrúxulo é como o presidente
quis associar a medicina veterinária, a engenharia e a medicina. O
anacronismo dessa posição está muito longe daquilo que é razoável.
Afinal, ainda que “o país dos bacharéis” tenha sido uma realidade bem
descrita por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil,
parece-me que tanto a limitação do conhecimento quanto a estigmatização
de outras áreas andam na absoluta contramão do mundo atual, em que a
transversalidade e a multi ou interdisciplinaridade não só são
desejáveis, mas absolutamente praticadas nas grandes universidades de
classe mundial (e a USP está nesse caminho). A convivência, a
coexistência, o relacionamento e a dependência entre os saberes estão
cada vez mais presentes em todos os campos profissionais, afora o fato
de que um presidente não deveria subestimar algumas áreas em detrimento
de outras, muito menos um governante deveria usar o aparelho de Estado
para afastar a população, principalmente a de baixa renda, do universo
das Humanidades se essa população desejasse ter esse acesso. A vontade
pessoal do presidente e seu menosprezo às Humanidades deveria
restringir-se – como a realidade já demonstra pelo Twitter – à sua
família e ao seu mundinho pessoal.
Mas o que mais salta aos olhos em sua
declaração é a barreira que Bolsonaro impõe às pessoas de baixa renda.
Cabe ao governo, segundo o presidente, somente fazer com que as
crianças, os adolescentes e os jovens brasileiros saibam “ler, escrever,
fazer conta” e, no máximo, “aprender um ofício”, a fim de que quaisquer
possibilidades de ascensão social ou de integração ao consumo seja
limitada e controlada pelo Estado, num Brasil hoje tão preocupado com os
pobres. Os abonados, aqueles que exploram, não devem ter qualquer
responsabilidade com a melhoria de vida da população, muito ao
contrário, devem estar sim comprometidos com sua servidão e
afastando-os, os mais pobres, do acesso às Humanidades, assim sua
submissão passará a ser absolutamente voluntária.
Peca Bolsonaro, por fim, ao dizer que
educação deve gerar renda: talvez ela nunca seja capaz de gerar, pois
não é sua função fazê-lo. A educação, seja em Humanidades, em Ciências
Exatas ou em Biológicas, ocupa-se, no limite, em dar formação
profissional ao cidadão. Tendo sido cumprido o seu papel, quem é
responsável por colocar o cidadão no mundo do trabalho é o Estado se
pensarmos no Brasil contemporâneo. O Estado é responsável pelos níveis
de emprego. O planejamento e as ações governamentais são regulados por
políticas públicas, elaboradas e comandadas pelo presidente da
República. A educação é um direito que deve ser garantido para todos em
todos os níveis a fim de possibilitar a transformação dessa sociedade
desigual.
Segundo o Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, da ONU, a universidade é um
direito garantido. Esse estatuto legal determina que “a educação
superior deverá tornar-se de acesso igualitário para todos, com base na
capacidade, por todos os meios apropriados e, em particular, pela
introdução progressiva da educação gratuita”. Logo, a educação não deve
gerar riqueza; antes, ela compromete receita. Fugir disso, tergiversar
ou imputar essa responsabilidade a outro é, no mínimo,
irresponsabilidade.
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*é professor e vice-diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP Fonte: https://jornal.usp.br/artigos/as-ciencias-humanas-e-mais-uma-ideia-genial-do-presidente/ - Imagem da Internet
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