Fernando Abrucio*
"Em vez de
brigar com Mourão, deveriam tê-lo como
ponte junto aos atores que não são
bolsonaristas
de raiz. Sem esse elo, a travessia será
mais difícil e pode nos
levar não ao Éden,
mas a uma nova instabilidade política
do presidencialismo de
coalizão, antessala do
"vice-presidencialismo de conspiração".
A oposição que me
perdoe, mas, no curto prazo, o maior inimigo do governo federal é o próprio
governo. A ausência de um projeto oposicionista de reforma do Estado e a crise
atual do petismo constituem parte da explicação desse fenômeno. Só que existe
outro lado mais importante neste processo: o eleitorado e os apoiadores de Jair
Bolsonaro são muito mais amplos e heterogêneos do que o discurso mais sectário
adotado regularmente pelo presidente. É disso que decorre o surgimento do
vice-presidente, Antônio Hamilton Mourão, como sombra, contraponto e, numa
hipótese mais extrema, alternativa real de poder.
Evidentemente que essas circunstâncias
não são novidade no país. O presidencialismo brasileiro, pelo menos desde a
Constituição de 1945, é marcado pelo possível conflito entre o titular e seu
vice. Naquela época, a possibilidade de eleger uma dupla com políticos vindos
de chapas diferentes, como foi o caso de Jânio Quadros e João Goulart,
potencializava a crise. Mas mesmo durante o período autoritário houve embates
fortes, como no caso de João Figueiredo e Aureliano Chaves. A falta de um papel
institucional mais claro para a vice-presidência explica parte desse problema,
contudo, no mais das vezes, são os erros do presidente que dão asas ao seu par.
O tipo de presidencialismo derivado
da Constituição de 1988 tornou mais importante e complexa a montagem da
coalizão de governo, por meio da combinação de multipartidarismo, federalismo e
divisão de Poderes. O sistema não é ingovernável, como mostraram Fernando
Henrique e Lula, no entanto, nenhum presidente ou partido consegue governar
sozinho o país, de modo que é necessário angariar apoios políticos e sociais
amplos e heterogêneos. Quando Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff
perderam a capacidade de atrair os atores para além de seu grupo político mais
restrito, abriram as portas não só para o próprio impeachment, mas também para
a ascensão de seus vices.
É essa realidade mais geral que o
presidente Bolsonaro precisa compreender. Embora a eleição dele tenha sido
marcada pela crise do sistema político montado na Nova República e consolidado
a partir do Plano Real, dois fatores continuam contribuindo para a necessidade
de se governar por coalizão e levar em conta um espectro mais amplo de apoios.
O primeiro é que sua vitória eleitoral não adveio do bolsonarismo raiz. O
tamanho deste talvez esteja próximo dos dados da última pesquisa do Datafolha feita
antes da trágica facada, enquete realizada nos dias 20 e 21 de agosto e que
marcava 22% de preferências pelo então candidato Bolsonaro.
O episódio da facada e a
incapacidade de outros candidatos de centro subirem nas pesquisas favoreceram a
migração de um grande contingente de eleitores antipetistas ainda no primeiro
turno para Bolsonaro, processo que se completou no segundo turno com a
aquisição de votos de outro grupo considerável de cidadãos que não queriam o PT
no poder. No computo final, o presidente eleito teve 55% dos votos válidos, mas
deve-se ressaltar que, além dos que votaram em Fernando Haddad e daqueles que
se abstiveram ou votaram branco e nulo, muitos dos que elegeram o novo
governante, quiça a metade destes, não se identificavam com o bolsonarismo
raiz.
Diante disso, o discurso do
presidente precisa ser mais amplo e plural do que o conteúdo de seus tweets. Ao
falar basicamente ao seu eleitorado mais cativo, Bolsonaro abre o flanco para o
descontentamento de grande parte dos que votaram nele, para não falar dos oposicionistas
e dos que não votaram em nenhum dos candidatos. Sei que seus estrategistas,
principalmente seus filhos, têm uma opinião diferente. Eles preferem seguir a
máxima de Trump, de apostar na manutenção do apoio dos mais fiéis. Só que há
uma enorme diferença entre os Estados Unidos bipartidário e o Brasil multipartidário:
aqui, sempre é possível ter mais opções políticas do que a luta entre um
governo e uma oposição bem definidos.
Hoje, Mourão é a voz da moderação em
comparação a Bolsonaro, atraindo a simpatia dos que votaram no presidente, mas
não são bolsonaristas, e até dos que votaram no candidato da oposição. Esse
poder de atração, entretanto, é um fator mais forte na esfera política e junto
aos grupos de interesse mais influentes, como as instituições financeiras, a
mídia, parte do empresariado, universidades e outros setores da sociedade civil
organizada. É neste âmbito que há mais gente comparando o desempenho do
presidente com o do vice.
A estratégia política de Bolsonaro,
de discursar basicamente para os seus eleitores mais fiéis, principalmente
usando as redes sociais, é a maior alavanca para o crescimento do poder de
Mourão. Quando ele usa o argumento da "nova política versus a velha política"
e emperra o processo político no Congresso Nacional, aqueles que querem a
aceleração das reformas de Estado ficam mais descrentes do bolsonarismo e, como
viúvas de seu próprio voto, procuram alguém para se consolar dentro do
condomínio do governismo - se não for o vice, pode ser o presidente da Câmara,
Rodrigo Maia.
Ao atacar como inimigos da pátria
grupos como a mídia, os ambientalistas, os ativistas sociais, as universidades,
os professores, as minorias éticas ou de gênero e todos aqueles que não cabem
no perfil bolsonarista raiz, Bolsonaro não atinge apenas a oposição. Seus atos
e palavras desagradam mais gente e muitos dos seus eventuais eleitores de 2018,
que não queriam o PT, mas que estão longe de um sectarismo conservador. O uso
constante e radical dessa linguagem política contrasta com a comunicação feita
agora por Mourão, que se orienta pela parcimônia no discurso e pela conversa
com todos os atores sociais.
O contraste entre presidente e vice
também é percebida no plano das relações internacionais. Se Bolsonaro
radicaliza o discurso sobre a Venezuela, Mourão adota uma postura mais
cuidadosa e realista. Se o bolsonarismo propõe que a embaixada em Israel vá
para Jerusalém, o vice conversa com os representantes dos países árabes. E toda
vez que o discurso da Presidência da República for contra o multilateralismo
(ou globalismo, como diriam os olavistas) e agendas internacionais mais
consolidadas, como a questão ambiental, parte dos atores internacionais vai
procurar o morador do Palácio do Jaburu.
Mas o maior tiro no pé da estratégia
política bolsonarista é tensionar a relação com os militares. O discurso
olavista, vindo do próprio ou dos filhos do presidente, começou batendo em
Mourão e, pouco a pouco, migrou suas insatisfações para as Forças Armadas.
Imagine se Olavo de Carvalho fosse apoiador de Lula ou Fernando Henrique e
tivesse dito o que falou dos militares e de alguns de seus líderes específicos.
Nem é possível imaginar.
Talvez a razão que levou setores do
bolsonarismo a criticar o comportamento dos militares esteja no fato de que as
lideranças das Forças Armadas, no mais das vezes, entenderam o sentido político
do governo atual: para ter uma governabilidade efetiva, é preciso ampliar o
diálogo e mesmo a negociação para além dos circuitos mais fechados do PSL e dos
apoiadores de primeira hora do presidente Bolsonaro. E, neste sentido,
comportam-se do mesmo modo que Mourão - e de maneira inversa à lógica dos
tweets do presidente e seus filhos.
Claro que muitos atores políticos e
analistas podem, com razão, pedir maior discrição no comportamento de Mourão.
Porém, não se trata somente de uma situação individual. Do mesmo modo que o
presidencialismo de coalizão responde a questões estruturais do sistema
político e da sociedade brasileira, é possível dizer que quando o presidente
não consegue manter um amplo apoio dos partidos e de diversos setores sociais
quase que naturalmente surge um "vice-presidencialismo de
conspiração". Isso já aconteceu antes, como nos casos de Collor e Dilma no
período mais recente.
Pode-se acusar os vices de
conspiradores, todavia, a maior causa desse processo está na inabilidade dos
presidentes. Sempre se fala bem de Marco Maciel e José Alencar, pela sua
lealdade em relação ao companheiro de chapa presidencial. Isso é verdade. Só
que o comportamento deles esteve muito vinculado à qualidade da liderança e dos
governos de Fernando Henrique e Lula, que conseguiram manter, por um longo
tempo, um apoio político e social que era maior do que os seus partidos. Do
outro lado do fenômeno, Itamar e Temer foram vistos como alternativa de poder
quando a possibilidade de impeachment surgiu, mas vale lembrar que não eram
vistos com bons olhos antes. A instabilidade e a mudança política derivaram
mais dos erros dos respectivos presidentes do que pela grande capacidade
conspiratória dos vices.
O presidente Bolsonaro e parte dos seus apoiadores precisam aprender com a história recente do país. Mais ainda agora, num momento em que o Brasil, mesmo se fizer reformas certas, vai demorar pelo menos dois anos para sair da crise econômica e social. Em vez de brigar com Mourão, deveriam tê-lo como ponte junto aos atores que não são bolsonaristas de raiz. Sem esse elo, a travessia será mais difícil e pode nos levar não ao Éden, mas a uma nova instabilidade política do presidencialismo de coalizão, antessala do "vice-presidencialismo de conspiração".
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O presidente Bolsonaro e parte dos seus apoiadores precisam aprender com a história recente do país. Mais ainda agora, num momento em que o Brasil, mesmo se fizer reformas certas, vai demorar pelo menos dois anos para sair da crise econômica e social. Em vez de brigar com Mourão, deveriam tê-lo como ponte junto aos atores que não são bolsonaristas de raiz. Sem esse elo, a travessia será mais difícil e pode nos levar não ao Éden, mas a uma nova instabilidade política do presidencialismo de coalizão, antessala do "vice-presidencialismo de conspiração".
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* Fernando
Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de
Administração Pública da FGV-SP, escreve neste espaço quinzenalmente E-mail:
fabrucio@gmail.com
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/6235979/fernando-abrucio-forca-de-mourao-vem-dos-erros-de-bolsonaro 03/05/2019
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/6235979/fernando-abrucio-forca-de-mourao-vem-dos-erros-de-bolsonaro 03/05/2019
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