Ameaças das instituições financeiras. Armas
de destruição em massas. “Utilidade” das guerras. Sexo e violência. Por
trás da fantasia de zumbis e dragões, série aborda poder e geopolítica.
O que Maquiavel, Bourdieu e Foucault teriam a dizer?
OutrasPalavras
Game of Thrones (GOT) é o nome da série da HBO baseada na epopeia fantástica de George R. R. Martin: As Crônicas de Gelo e Fogo.
A série estreou em abril de 2011 e terminou em maio de 2019,
completando oito anos de duração, tendo marcado um ciclo inteiro da vida
de muitas pessoas. Como ocorre com todas as séries mais longas, o risco
de se perder o fôlego de acompanhar a história é grande, mas esse não
foi o caso de Game of Thrones. GOT é um fenômeno global que
conseguiu reunir pessoas no mundo real para assistir juntos e ao vivo a
estreia de cada novo episódio. Um enorme sucesso.
Muitas pessoas não
gostam de universos fantásticos, mas é inegável o valor desse gênero. Esses
produtos culturais formaram leitores, criaram espaços de compartilhamento de
interesse comum, aproximaram pessoas e produziram debates que transcendiam em
muito a proposta original dos autores, roteiristas e diretores. Que ótimo que o
autor não controla a interpretação que fazem de sua obra, porque os debates
promovidos pelos fãs muitas vezes parecem melhores que os filmes e as séries em
si.
Game of Thrones, entretanto, parecia diferente desde o
início, porque a série já apresentava diversas camadas de informação
que, na fase certa da trama, se revelaria como o debate principal a ser
abordado pela história. O enredo trazia estruturas políticas, sociais e
econômicas complexas e incomuns para o gênero, fato que colaborou para
colecionar uma legião de fãs ao redor do mundo. Pelo menos assim parecia
ser na primeira metade da série.
Por conta do caráter
peculiar de Game of Thrones,
elaboramos um breve ensaio sobre alguns pontos interessantes da perspectiva das
Ciências Humanas. Esse ensaio tenta explorar questões importantes trazidas ao
longo da narrativa, que permitem reflexões históricas e políticas pertinentes –
embora o desejo fosse que esses debates pudessem ter recebido um pouco mais de
destaque na própria série. Ainda que o desenlace das últimas temporadas tenha
se desviado do curso inicial, GOT definiu um marco no gênero do universo
fantástico, no formato comercial das séries de TV e permitiu discutir aspectos
mais profundos do jogo de poder por trás da guerra dos tronos.
Política
A dinâmica política foi
um dos principais atrativos de GOT. Os diálogos no Pequeno Conselho eram de uma
franqueza, cinismo e ceticismo absolutamente fascinantes. Se pudesse assistir
às primeiras temporadas, Maquiavel (2004) extrairia outros conselhos ao
príncipe.
Tudo fica ainda mais
interessante e realista após a morte de Ned Stark. Além do choque de ver o
protagonista ser eliminado de forma bastante injusta, a primeira temporada se
encerra deixando claro que não existe mais
um referencial absoluto do “bem” e do “mal”. As tramas, especialmente
aquelas ambientadas na capital, jogam luz no Deep State das grandes potências. Foi nesse núcleo que se
desenvolveram os personagens mais interessantes, coerentes e sem moralismos.
Tyrion Lannister, por
exemplo, é um nobre, anão, intelectual, promíscuo e arguto analista político,
que apresentou diversas sacadas geniais ao longo da série, dentre elas
destaca-se: “É tentador pensar que seus inimigos são maus, mas sempre existe o
bem e o mal em ambos os lados”. Essa afirmativa, se analisada pela perspectiva
de Jonathan Haidt (2012), em “The
righteous mind”, permite uma análise menos maniqueísta da política, na qual
é possível encontrar fundamentos morais genuínos nas escolhas do “outro”, ainda
que seja seu inimigo. Basta observar a polarização estúpida da atualidade para
perceber que ela não dá conta da complexidade da realidade política.
Varys é um estrangeiro,
pobre, sem nome de família, eunuco e com uma rede de espiões entre as crianças
pobres, o que gera justificado mal-estar na audiência. Por ter sido castrado na
infância, parecia ser, de alguma maneira, solidário com essas crianças, embora
as empregassem para o seu interesse. Varys encarna o espírito de que os fins
justificam os meios. À certa altura da epopeia, Varys diz que sabe que um
espião é sempre visto com suspeição, mas que os sofrimentos de sua origem pobre
tinham estabelecido nele o firme propósito de encontrar as melhores soluções
políticas em benefício das camadas populares. Para isso, sua rede de espiões
estaria à disposição do regime político que ele julgasse melhor, fazendo
lembrar Thomas Morus, que considerava moral a espionagem e o assassínio, desde
que envolvessem lideranças políticas que ameaçassem a paz. Sua frase: “Há quem
diga que conhecimento é poder”, poderia ser muito bem lida à luz de Michel
Foucault (2014).
Petyr Baelish, oriundo
da baixa nobreza, tornou-se um mestre das palavras, sabendo dosar bajulação e
traição na medida certa, além de contar com uma rede de espiões por meio de seu
bordel de luxo. Sua ânsia por poder causou as principais intrigas que
movimentaram a narrativa, bem ao estilo de Steve Bannon. Seu lema: “Caos não é
um abismo. Caos é uma escada” corrobora a tese de Naomi Klein (2008), defendida
em “A doutrina do choque”, onde argumenta que eventos catastróficos podem ser
janelas de oportunidade para a ascensão de determinados grupos políticos. Petyr
Baelish fez escola e ficaria orgulhoso de assistir à articulação política de
Dick Cheney.
Esses personagens
mereceriam biografias do porte daquelas escritas por Stefan Zweig (2015), já
que estamos aceitando todos os anacronismos.
Guerra
A lógica da Guerra dos
Sete Reinos segue uma matriz análoga às guerras de unificação estatal, bem
anterior ao processo de formação e imaginação dos mitos de fundação nacional,
tão bem explorado pelo romantismo das histórias de cavalaria. R.R. Martin assumiu,
inclusive, que o enredo de GOT era livremente inspirado na Guerra das Duas
Rosas, cujo resultado foi a formação do Estado moderno inglês.
Os paralelismos com as
guerras ocorridas na transição do período medieval para o moderno ajudaram a
(re)despertar o interesse por esse período histórico, fazendo com que livros
acadêmicos sobre esse assunto voltassem a ocupar as prateleiras centrais de
livrarias. De acordo com Norbert Elias (1993), um autor clássico sobre o tema,
nas guerras de formação dos Estados modernos: “quem não sobe cai”. Palavras que
parecem ter ecoado no ouvido de Cersei Lannister ao proferir: “Quando você joga
o jogo dos tronos, você ganha ou morre”.
A escolha das guerras de
unificação estatal despertou muito interesse histórico. Charles Tilly (1996) e
Perry Anderson (2016) dariam um aval positivo para a retratação das disputas
entre as casas nobres com o objetivo de obter o monopólio sobre a estrutura de
poder em um determinado território e no sistema interestatal. Afinal, é
exatamente essa a lógica apresentada por Martin, quando representantes dos sete
reinos entram em conflito direto ao buscar o trono de ferro.
A série destacou a
importância dos exércitos permanentes e de mercenários na composição de forças,
bem como explorou as diferentes estratégias de batalhas em cenas de tirar o
fôlego, com uma qualidade cinematográfica difícil de ser superada no curto
prazo. Contudo, faltou analisar melhor o poder naval, embora ele não tenha sido
decisivo na Guerra das Duas Rosas. Mesmo de modo anacrônico, é de se admirar
que uma série que aborda figurativamente a unificação britânica não tenha
destacado a importância imprescindível da Armada. De outro modo, como uma ilha
gelada isolada no Mar do Norte conseguiria formar o maior império formal da história?
Os Greyjoys podem simbolizar as pilhagens dos Vikings, mas não representaram
nem de longe o valor bélico e logístico do poder naval.
Game of Thrones nos obriga a recordar que a guerra é o fenômeno
organizador central do sistema político que vivemos, quer você goste ou não
(Morris, 2015; Diamond, 2014). Ainda que o universo fantástico da série não
seja um trabalho historiográfico, é possível debater questões essenciais como a
guerra e a moeda na formação dos Estados modernos.
Economia
Foi formidável quando o
Banco de Ferro apareceu pela primeira vez em Braavos. Por um breve instante,
pareceu que finalmente um produto de entretenimento colocaria a dimensão
material, econômica e financeira na centralidade da política internacional.
Embora tenha atraído maior atenção nos últimos anos, os debates sobre economia
nas redes sociais ainda é muito superficial e normalmente centrado em
afirmações de cunho moral. Se pudéssemos sugerir leituras introdutórias,
gostaríamos de indicar “A dinâmica do capitalismo”, de Fernand Braudel (1987);
“A grande transformação”, de Karl Polanyi (2000); e “Dívida: os primeiros 5.000
anos”, de David Graeber (2016).
A série poderia ter
aproveitado o crescente interesse popular pelo assunto para elevar o debate a
um patamar intelectual impensável para um bem cultural de massa. A presença do
Banco de Ferro permitiria trazer para o centro das discussões: a existência de
uma moeda de referência internacional, a formação de um sistema de dívida
pública e os vínculos entre guerra e capital. Seria ótimo, mas, infelizmente, o
debate não avançou.
Nobreza e corrupção
Outro aspecto relevante
é a apresentação de um complexo sistema de vassalagem e de suserania, com
dezenas de casas da nobreza. O contrato feudo-vassálico era, segundo o medievalista
Hilário Franco Júnior (2006), uma expressão de laço de parentesco artificial,
soldando as relações sociais entre as elites políticas envolvidas. As intrigas
que colocavam em xeque a balança de poder surgiram a partir de questões
envolvendo o direito sucessório, doações de terras, cobrança de tributos,
exigências de parte da produção e demandas por recrutas. Em linhas gerais,
esses aspectos, muito bem retratados na série, faziam parte da realidade
política medieval, sendo possível conferi-los em autores como François-Louis
Ganshof (1970) e Jean Flori (2014).
Ao retratar a origem
violenta e corrupta das casas nobres, a série também contribuiu para apresentar
uma perspectiva crítica que desnuda a tão frequente idealização sobre a nobreza
medieval. Se, por um lado, a série apresentou essa perspectiva crítica; por
outro lado, sustentou um viés conservador, ao privilegiar a narrativa pela
ótica das elites e ao silenciar e invisibilizar as camadas pobres de Westeros e
de Essos.
Referências civilizacionais
Cada reino – palavra de
origem latina que se remete tanto ao rei quanto à região – apresenta uma
cultura peculiar, com uma vida político-social integrada à paisagem natural.
Mesmo com um excesso de ênfase nesses particularismos da geografia
possibilista, o mosaico cultural criado pelo mapa-múndi da série é fascinante.
Apesar de as referências
geográficas e civilizacionais serem anacrônicas, foi extremamente criativo
combinar grandes civilizações já desaparecidas ou que existiram em épocas
distintas, fazendo-as interagir ao mesmo tempo. Aliás, essas referências
mereciam um destaque muito maior.
Porto Real espelha a
rica, poderosa e impenetrável Constantinopla. Os Dothrakis são uma mistura de
mongóis com hunos, povos cavaleiros das estepes. As cidades da Baía dos
Escravos lembram os entrepostos comerciais do Mediterrâneo e do Magreb. Valyria
é um misto da mítica Atlântida, com doses de Roma e Grécia. As cidades livres
de Essos, como Pentos e Braavos aludem às poderosas cidades-Estados italianas
de Gênova e Veneza. Dorne remonta ao Sul da Espanha, marcado pelas temperaturas
mais agradáveis e pela belíssima arquitetura mourisca. A Campina é uma espécie
de França fisiocrata, rica e esnobe dos Tyrells. Tal como a Suíça, o Vale dos
Arryn é isolado pelos Alpes, o que permite se manter afastado dos conflitos. A
Cidadela lembra as universidades medievais de Bologna, Paris-Sorbonne,
Salamanca, Oxford e Cambridge. Os continentes Sothoryos e Ulthos, que
simbolizam os povos africanos e asiáticos, não foram explorados pela série,
reforçando o viés eurocêntrico da história.
O projeto de regime
teocrático proposto pelo Alto Septão, líder da Fé Militante, dialoga com a
ideia de um Estado controlado por uma ordem religiosa, tal como ocorrido no
Norte da Europa durante os quase três séculos de existência do Estado dos
Cavaleiros Teutônicos. O projeto expansionista das Cruzadas – sustentado pela
ainda “atual” ideia de guerra justa, proposta por Santo Agostinho – contou com
o apoio de outras ordens militares cristãs – representados pelos Filhos do
Guerreiro, nos livros da epopeia –, que se tornaram um desafio para o posterior
projeto de centralização monárquica. Desafio resolvido por Cersei ao explodir o
Septo de Baelor. A Igreja perdeu suas ordens militares, mas passou a ser defendida
pela forças estatais. O Estado também garantiu poderes extraordinários a órgãos
eclesiásticos, como os tribunais da Inquisição, que, na série, condenaram
Cersei à caminhada da vergonha. As questões religiosas sempre foram uma
dimensão relevante da vida política e, surpreendentemente, no século XXI, elas
ganharam um destaque inimaginável.
Referência ainda mais
atual é a Muralha de Gelo, que traça um paralelo com a Muralha de Adriano,
construída para marcar o limite do Império Romano na Britânia com o extremo
norte da ilha, ocupado pelos “selvagens” de origem celta. A dicotomia
civilização-barbárie delineada a partir da construção de uma fronteira
artificial é um dos referenciais histórico-geográficos mais interessantes da
série. Muito antes da criação de um muro entre Israel e Palestina, entre
Estados Unidos e México, entre Linha Vermelha e Maré, a narrativa do medo já
tinha construído uma muralha de pânico no imaginário coletivo da população. Uma
outra solução ficcional para os white
walkers (como será apresentado a seguir) poderia ter um efeito discursivo
de repercussão significativa para a desconstrução dessas narrativas de ódio ao
“outro” que permeiam os debates geopolíticos contemporâneos.
Da fantasia à ciência
A primeira cena do
primeiro episódio envolve um white walker.
Para muitos, a vontade era de desistir da série logo de cara. Apesar da
decepção inicial, os caminhantes brancos poderiam se tornar uma excelente
metáfora para a chegada antecipada de mudanças climáticas intensas e que a
função deles seria varrer os seres humanos da face da Terra, por serem os
responsáveis pela degradação planetária. A existência dessa ameaça comum faria
os reinos superarem suas diferenças e criarem alguma espécie de regime de
governança global e a muralha daria lugar a “pontes” entre os reinos. Seria um insight bem importante, ainda mais se
resgatassem os ideais de comunhão com a Natureza e com as forças de Gaia a
partir dos ensinamentos ancestrais do filhos da floresta. Mas, no final, eram
só zumbis. Lamentável.
Os dragões, por sua vez,
poderiam ser uma referência fantástica para armas de destruição em massa. Tal
como as armas nucleares, os dragões poderiam desequilibrar completamente a
balança de poder tanto em Essos quanto em Westeros. No último episódio, fica evidente
que os dragões são sencientes. Contudo, isso não ajuda muito para o fato de
serem apenas dragões mesmo. Aliás, teve até dragão zumbi, algo totalmente
dispensável.
A série ainda
desenvolveu outros elementos que são interessantes do ponto de vista histórico.
O potente fogo-vivo, por exemplo, remonta a uma arma real: o misterioso
fogo-grego, criado pelos piromantes do Império Bizantino durante a Idade Média.
A tensão entre o meistre
Pycelle e o ex-meistre Qyburn simboliza o choque entre uma matriz de pensamento
medieval e outra moderna. Ao receber carta branca de Cersei, Qyburn explora seu
potencial criativo, sendo responsável por uma revolução científica na capital,
solucionando problemas de ordem prática como nenhum outro meistre havia feito.
Qyburn – passando por cima dos limites morais impostos à pesquisa científica
pelo monopólio do saber pela religião – vai utilizar a medicina para salvar o
Montanha, além de projetar – tal como o gênio renascentista Leonardo da Vinci –
balestras gigantes, capazes de matar os dragões. A ascensão social de Qyburn e
a decadência de Pycelle parece representar os ventos da modernidade e a vitória
da ciência sobre a superstição.
O último episódio aborda
ainda mais o tema da relação entre clima político e avanço científico. Em um
breve debate no Pequeno Conselho discute-se a necessidade de investimentos em
infraestrutura e saneamento básico para a promoção da saúde coletiva, menos
como preocupação com o bem-estar e mais como aritmética do poder de William
Petty (2018). Arya Stark prenuncia as “grandes navegações”, inaugurando aquilo
que Yuval Noah Harari (2018) chama de “sistema de pensamento aberto”,
contestando as verdades herméticas do status
quo (os mapas fechados) e assumindo a possibilidade de um mundo desconhecido
a ser explorado.
Feminismo
A participação de muitas
lideranças femininas fortes pode ser interpretada como anacrônica, embora seja
indispensável para trazer os debates dos Estudos de Gênero para o centro das
atenções. No entanto, muitas vezes, as personagens mulheres replicavam a lógica
masculina de poder. A relação entre o feminino e o poder foi abordada de forma
extremamente superficial e, para piorar, Daenerys Targaryen, a personagem mais
forte da série, termina assassinada por seu amante e ícone moral da série,
reforçando o estereótipo de mulheres poderosas histéricas.
Se fosse um homem a
proferir o discurso de vitória do último episódio, incitando o expansionismo em
nome de uma causa nobre, provavelmente essa figura masculina seria exaltada por
sua liderança, sua capacidade de comando e sua visão política. O destino
trágico de Daenerys acabou prestando um desserviço para a urgente causa
feminista. O mote “não sou uma princesa, sou uma Khaleesi” já tinha conquistado
corações e mentes mundo afora, causando impacto político relevante no mundo
real. O autor e os diretores deveriam ter tido maior sensibilidade e ter levado
isso em consideração.
No entanto, o saldo
final é bastante positivo, mesmo após as quedas de Cersei e de Daenerys. Outras
mulheres ganharam destaque ao longo da trama, passando a representar arquétipos
importantes. A cavaleira Brienne conquistou o acesso ao mais alto grau da
hierarquia militar e se tornou líder da guarda pessoal do rei Bran. Sansa Stark
reafirmou a abertura das instâncias de governo às mulheres, ao ser aclamada “the Queen in the north”, por sua
reconhecida liderança e competência. Arya Stark simbolizou, desde o início, o
importante debate sobre emancipação feminina, encarnando valores como a coragem
– ao assassinar o Rei da Noite – e o destemor – e ao desbravar “mares nunca
dantes navegados”.
Constrangimentos
A libertação dos povos
escravizados trouxe questões importantes, como abolir um sistema político sem
um projeto de transformação social efetivo. A série trouxe a questão do medo
atávico e da força disciplinar do poder simbólico, mostrando que abolir um
sistema não é simples e que essas desigualdades deixam feridas profundas como
herança difícil de ser resolvida.
Será que Daario Naharis
– o interventor nomeado por Daenerys para manter a paz e a prosperidade entre
os povos recém-libertos por ela nas cidades da Baía dos Escravos – criou
mecanismos de superação da miséria, promoveu a justiça social, refundou as
instituições, criou mecanismos democráticos de gestão participativa? A verdade
é que a série não desenvolve esse núcleo e, verdade seja dita, quase ninguém se
importa com essas questões. Ademais, poucos vão admitir, mas a maioria vibrou
com as conquistas coloniais de Daenerys. Sentimento ainda mais constrangedor para
um público pós-colonial e periférico como o brasileiro.
Constrangedor também foi
verificar o quanto o fino verniz de civilização que nós, o público, julgamos
apresentar é ainda mais precário do que se imagina. A série desperta
sentimentos de ódio, desejo de vingança e prazer na morte. Sigmund Freud não
poderia estar mais certo em constatar nossa pulsão por violência como uma
dimensão inconsciente fundamental da vida psíquica humana (Jorge, 2005).
Na série, isso fica
particularmente evidente quando da tentativa frustrada de Daenerys de encerrar
os jogos mortais nas arenas. Os divertimentos públicos sempre flertaram
perigosamente com a barbárie. Nas arenas esportivas, onde vários esportes
acabam emulando uma dimensão do combate, o público é autorizado moralmente pela
sociedade a fazer sua catarse coletiva, como válvula de escape para a pulsão de
morte. A arte também nos fornece esse tipo de autorização, conforme ocorre em
GOT. O problema é quando se quer transformar todos os espaços públicos em
arenas violentas para promover um massacre social, político e econômico
diariamente.
Apesar da constatação de
que ainda sucumbimos aos nossos instintos primitivos, é importante o processo
de reconhecimento da queda e a renovação dos esforços de construção de uma ética
de respeito, de tolerância e de justiça em torno de projetos progressistas para
a sociedade.
Violência
Max Weber (2003) define
o Estado como “uma comunidade humana que reivindica com sucesso o monopólio do
uso legítimo da violência física em um território determinado”. Nessa
perspectiva, somente as forças do Estado teriam legitimidade para a prática da
violência. No “contrato social”, as pessoas abririam mão de resolver os
conflitos de interesse por meio de disputas diretas, recorrendo aos mecanismos
estatais de polícia e de justiça, recalcando sua pulsão por resolver
violentamente suas questões. Daí a importância política de espaços públicos
para os indivíduos extravasarem suas pulsões violentas, como nas arenas
esportivas e mesmo nas artes, conforme citado anteriormente.
A violência direta
exercida pela polícia (palavra de origem grega que se remete ao aparato estatal
responsável pela manutenção da ordem da polis)
é essencial em qualquer organização política. Há Estados (semi-)independentes
que abriram mão de suas forças armadas, mas nenhuma polis prescindiu da polícia. Segundo George Orwell: “As pessoas
dormem tranquilamente à noite porque existem homens brutos dispostos a praticar
violência em seu nome”. Nas democracias, as elites e as classes médias aderem a
projetos políticos violentos porque elas não precisam sujar as suas mãos para
manter os seus privilégios e, no final das contas, esses projetos violentos
sempre oferecem alguma narrativa de moralidade de luta do bem contra o mal,
reduzindo seus sentimentos de culpa.
Mas o poder não se
sustenta apenas pela violência direta. É fundamental recorrer, igualmente, à
violência simbólica e estrutural. Pierre Bourdieu (2012) acrescentou ao
pensamento weberiano a dimensão de que, mais que o monopólio da violência
física, a ordem se sustenta pela crença atávica de que as elites estariam
investidas de algum mandato especial, iludidos pelas pompas das cerimônias
públicas, com diversas vestimentas espalhafatosas, até hoje usadas e abusadas
pelo poder judiciário e pelos militares. O poder teria uma dimensão simbólica
cuja violência se manifestaria muito mais no campo mental do que no físico.
Violência simbólica que reduziria o ímpeto de mudança das forças profundas da
sociedade, por mais violenta e desigual que fosse a estrutura política e
econômica vigente na sociedade.
Varys, em seu famoso
diálogo com Tyrion, concordaria com essa perspectiva de Bourdieu:
“O poder é uma coisa
curiosa… [Imagine] três grandes homens: um rei, um sacerdote e um homem rico.
Entre eles está um mercenário comum. Cada grande homem tenta convencer o
mercenário a matar os outros dois. Quem vive? Quem morre? […] O Poder reside
onde os homens acreditam que ele reside. Nem mais, nem menos. É um truque, uma
sombra na parede; e mesmo um homem muito pequeno pode lançar uma sombra muito
grande”.
Slavoj Zizek (2011;
2014) questiona se a violência estrutural do sistema político que exclui
silenciosamente, que agride diariamente, que mata lentamente seria menos letal
do que a violência direta inerente dos projetos revolucionários que precisam
romper com as forças estruturais em vigor. A reflexão trazida por Zizek pode
ser identificada nas questões feitas por Daenerys de como ela iria “quebrar a
roda”.
Qualquer projeto que
envolva a destruição de um sistema e sua substituição por outro encontra muitas
resistências. Maquiavel, atento à falta de apoio para as ideias de mudança
político-social, afirmou: “Devemos convir que não há coisa mais difícil de se
fazer, mais duvidosa de se alcançar, ou mais perigosa de se manejar do que ser
o introdutor de uma nova ordem, porque quem o é tem por inimigos todos aqueles
que se beneficiam com a antiga ordem, e como tímidos defensores todos aqueles a
quem as novas instituições beneficiariam”.
O polêmico Zizek não
defende a substituição da violência estrutural pela violência revolucionária;
ele é cioso das contradições inerentes a qualquer projeto político. O filósofo
esloveno alerta que não se deve subestimar o potencial totalitário dos projetos
revolucionários por três motivos. Em primeiro lugar, o governo revolucionário
precisa enfrentar as coalizões contrarrevolucionárias das elites
desencasteladas e, com isso, acaba optando, várias vezes, por dizimar os
membros da antiga elite. Em segundo lugar, como o ambiente político
pós-revolução é altamente instável, é comum a promoção de expurgos dos membros
das novas elites que porventura questionassem o dirigente central. Em terceiro
lugar, o governo revolucionário, ao não conseguir promover as mudanças
profundas prometidas pela causa revolucionária, geraria descontentamentos
legítimos, que acabaram, muitas vezes, sendo resolvidos por meio de massacres
fratricidas. Daenerys não estaria equivocada em admitir que, para “quebrar a
roda”, ela ainda teria que recorrer à violência. A questão que fica é se seria
possível evitar que a violência se convertesse em terror e brutalidade
generalizada, tal como ocorrido no episódio de destruição da capital.
Aos que ansiavam por uma resposta da série, fica claro que nem George
R. R. Martin nem nenhum cientista político conseguiu encontrar uma
solução ideal. Mas uma opção foi feita, e a mensagem final é um nítido
recado antiautoritário que parece ter sido extraído diretamente das duas
primeiras lições do historiador Timothy Snyder (2017), em seu livro
“Sobre a Tirania”, a saber: jamais obedecer de antemão e preservar as
instituições.
Especialmente sobre o segundo ponto, a sensação que fica é que as
normas e regras já estabelecidas pelas instituições políticas – por mais
imperfeitas que sejam – muitas vezes são um contrapeso ante um futuro
completamente imprevisível. O destino político de um povo não deve ser
guiado apenas pelos caprichos de um líder que se julga capaz de refundar
a sociedade a partir de sua própria visão de mundo. Faz sentido pensar
que houve esse tipo de preocupação durante o desenvolvimento do roteiro?
Se foi proposital, não sabemos, mas – diante do cenário de
recrudescimento dos populismos, dos extremismos e de soluções que
desprezam a liberdade, a igualdade e a fraternidade – a ênfase nos
valores iluministas foi muito bem-vinda.
A
forma como o roteiro é conduzido ao tratar desse tema parece reproduzir o
dilema apresentado por Alexis de Tocqueville (1982), em seu livro “O Antigo
Regime e a Revolução”. Na visão do intelectual francês, existiriam dois modelos
com duas experiências históricas correspondentes para enterrar de vez os
resquícios do mundo medieval e inaugurar uma sociedade pautada em princípios
liberais: o reformismo inglês e as revoluções francesas. Em GOT, a solução é
pela via da reforma. E se o mundo ainda não estava pronto para a democracia
proposta por Samwell Tarly, notam-se avanços rumo à uma monarquia eletiva não
hereditária. Ademais, a opção por Bran é justificada por critérios que vão além
de sua origem nobiliárquica, flertando com uma espécie de despotismo
esclarecido. Além de nobre, o novo rei é apresentado como aquele que melhor
conhece o povo, o território e o passado de Westeros.
Para Aristóteles, o ser
humano é um animal político (zoon
politikon); assim, toda vida humana estaria permeada pela política e por
suas contradições infinitas, apresentando constantes dilemas éticos. Tudo é
política e nada seria mais ingênuo do que atribuir à História o papel neutro de
mestra da vida, representada pela figura de Bran Stark, o “corvo de três
olhos”.
História e identidades coletivas
“O que une o povo? Os
estandartes? O ouro? As bandeiras? Não, não há nada mais poderoso do que uma
boa história”. Tyrion Lannister, no último episódio, reflete sobre os possíveis
caminhos de recomeço da normalidade política depois de tantas rupturas e perdas
de referência sobre o que representa de fato o poder legítimo. O derretimento
do Trono de Ferro, símbolo máximo da autoridade em Westeros, é uma metáfora que
nos conduz novamente ao sociólogo francês Pierre Bourdieu (2012), quando afirma
que, para se sustentar, o poder precisa recorrer à sua dimensão simbólica. No
caso, a História estaria se tornando a fonte legítima da sabedoria para se
governar, sendo o arquivo mental do Bran o símbolo da legitimidade do poder.
Não há dúvidas de que as
narrativas criadas para dar sentido ao mundo tiveram papel preponderante na
organização de uma ordem social. Com a revolução cognitiva, surgem o pensamento
abstrato e a autoconsciência. Mitos, lendas, religiões, ideologias e artes
começam a aparecer a partir de 70 mil anos atrás. A imaginação permitiu criar
narrativas ficcionais que tanto davam sentido para as questões existenciais
iniciais quanto conferiam um sentido maior para a existência humana
coletivamente. (Paiva, 2019)
Nunca houve uma era de
ouro de neutralidade e de justiça nas ordens abstratas; elas sempre
estabeleceram hierarquias sociais, também sustentadas por narrativas
ficcionais. Essas ordens abstratas poderiam ser fundadas na dimensão simbólica
do trono de ferro, ou amparadas na origem divina do nascimento da nobreza, ou
apoiadas na sabedoria do conhecimento histórico, como proposto por Tyrion, como
novo fundamento social. Independentemente de qual fosse o argumento ficcional a
sustentar essa ordem abstrata, essas narrativas criam e cristalizam hierarquias
sociais.
As elites favorecidas
tendem a querer justificar seus privilégios como sendo naturais, de origem
divina, amparados por leis ou sustentados em um conhecimento neutro. Para
impedir a contestação violenta do fundamento simbólico do poder e, assim,
garantir a perpetuação da ordem em um contexto de tensão social, monta-se um
aparelho coercitivo capaz de manter tal ordem. Sai o trono de ferro, entra a História,
mas a violência estará lá para sustentar as bases da nova sociedade.
Em última instância, a
espécie humana está sempre enxergando o mundo por uma metanarrativa construída
socialmente. Quando se desconstrói uma, faz-se isso com base em outra
metanarrativa que oferece uma outra cosmovisão. Ou seja, nunca se está fora
desses moldes mentais. (Paiva, 2019)
A questão levantada por
Tyrion, que passa despercebida para muitos, ultrapassa a ficção e toca nos
debates contemporâneos sobre a revalorização da identidade nacional. Se existe
um ponto de confluência entre os diversos teóricos sobre o nacionalismo, essa
convergência é a importância que as narrativas sobre um passado comum ocupam no
imaginário social. O historiador britânico Keith Jenkins (2014) afirma que “a
história é a maneira pela qual as pessoas criam, em parte, suas identidades”.
Em alguns casos, essas
identidades nacionais podem se converter em chauvinismo e xenofobia; como a
extrema direita tem evocado o sentimento nacional hodiernamente. Eric Hobsbawm
(2012), ao comentar sobre o uso da história para alimentar extremistas,
alertou: “Eu costumava pensar que a profissão de historiador, ao contrário,
digamos, da de físico nuclear, não pudesse, pelo menos, produzir danos. Agora
sei que pode”.
História e memória são
coisas bem diferentes. Quando Brienne reescreve a biografia de Jaime Lannister,
atribuindo-lhe características positivas, ela está escrevendo a memória dos
vencedores e não realizando um trabalho historiográfico. Caso Daenerys tivesse
se perpetuado no poder, a memória preservada sobre Jaime seria, provavelmente,
o descrevendo como um traidor. Os papiros, pergaminhos e códices da Cidadela
muito provavelmente são apenas relatos de uma história
tratadística oficial, muito diferente dos empregos contemporâneos da
disciplina histórica, que permitem entender dinâmicas
e domínios mais amplos da vida em sociedade.
A História não é um mero
acúmulo de dados e de informações sobre acontecimentos pretéritos; tampouco ela
é neutra, como qualquer outra ciência. Ainda que Bran Stark goze do privilégio
de acessar o passado coletivo de Westeros, o resultado da consulta a esse
arquivo mental que ele traz consigo sempre será sua versão pessoal do passado. O ofício do historiador sempre terá
marcas de subjetividade (Schaff, 1995).
No entanto, a História, como disciplina científica, obedece a rigorosos métodos que
ajudam a remontar as condições políticas, econômicas e sociais que estavam em
jogo em um dado contexto histórico e que poderiam ter resultado em inúmeros
caminhos diferentes, mas acabou seguindo a trajetória que já se conhece, não
como telos, mas como o resultado das
forças em disputa nesse dado contexto. Cada momento ao longo da história
apresenta uma encruzilhada, na qual não se pode antever o caminho que irá
seguir. (Barraclough, 1964)
A referência de Tyrion sobre o valor das histórias contadas ao redor da fogueira, cantadas por bardos ou
exibidas nas telas, de fato, unem as pessoas, como Game of Thrones uniu. Contudo, a justa valorização das histórias e
das narrativas ficcionais dada por Tyrion não poderia ter se convertido no
argumento que daria poder ao Bran. Por mais importante que seja a construção
narrativa de memórias coletivas na estruturação das identidades pessoais, a
História não pode (ou não deveria, pelo menos) se arrogar o papel de fornecedor
da verdade absoluta na política. Isso é uma noção ao mesmo tempo tola e
perigosa do que seja a História. O conhecimento histórico é fundamental para as
pessoas e principalmente para os estadistas, mas a perspectiva de História como
fornecedora do sentido maior para a vida das pessoas é uma armadilha.
Em tempos de astrólogo youtuber autoproclamado filósofo, essa
atribuição de poder a um rei-filósofo é uma compreensão tão ingênua quanto
ameaçadora do que seja a política. História e Filosofia nem são fontes de
doutrinação nem são panaceia política. Não existe solução mágica. O campo da
política é o espaço do conflito de interesses por definição. Governar exige
escuta, diálogo, reflexão, negociação e soluções possíveis. Não existem
projetos perfeitos, nem conhecimentos puros, muitos menos mitos salvadores.
Sexo
HBO é um canal premium da TV a cabo conhecido por
recorrer a cenas de violência e de sexo explícito em seus programas. Sem a
necessidade de seguir as restrições da TV aberta, a HBO ofereceu ao público o
que ele desejava: sexo e violência. Engana-se quem acha que os roteiristas tenham
se aproveitado dessa liberdade para produzir shows grotescos. Sexo e violência podem sim atrair um público
buscando apenas uma representação recreativa de suas fantasias incompletas por
meio de sua identificação com os protagonistas das histórias, mas sexo e
violência também podem trazer debates interessantes no campo dos estudos
psicanalíticos e de gênero. Em Game of
Thrones, o erotismo é uma dimensão importante da vida política. A relação
entre sexo e poder é inequívoca e a série explorou isso de diversas maneiras.
O casamento por amor é
uma conquista burguesa relativamente recente. Na inexistência de serviços
previdenciários, famílias pobres arranjavam casamentos para garantir o sustento
dos pais da moça na velhice. As famílias ricas sabidamente utilizavam o
casamento como forma de aliança política, sendo uma das principais tarefas dos
corpos diplomáticos lidar com esses tratados dinásticos. Por isso, surpreende o
aparecimento de casais românticos nas últimas temporadas, atendendo aos apelos
da fanbase de “shipar” os personagens principais.
O exercício “legítimo”
da pulsão por sexo é “autorizado” na sociedade ocidental se a conjunção carnal
for para fins reprodutivos e ocorrer no âmbito do casamento heterossexual
monogâmico. Qualquer relação fora desse ambiente seria considerado pecaminosa,
portanto, proibida. Apesar da forte repressão sexual na história do Ocidente,
as relações sexuais sempre foram muito mais plurais. Nas sociedades
patriarcais, era tolerado (quiçá incentivado) que o homem mantivesse relações
sexuais fora do casamento, sendo a monogamia um dever conjugal feminino. Zonas
de meretrício e bordéis de luxo estão presentes na maioria das sociedades e
foram importantes espaços de sociabilidade, como constatou Petyr Baelish, que
oferecia serviços de realizações de fantasias no campo hétero e homoafetivo. Na
primeira reunião do Pequeno Conselho recém-empossado por Bran, uma das
primeiras pautas de debate foi a reabertura dos prostíbulos.
Como se o tema já não
despertasse polêmicas per se, Game of Thrones não apenas explorou a
relação entre sexo e poder, mas também entre sexo e violência em suas
manifestações mais bizarras. Alguns ficaram chocados com o uso do estupro como
arma de guerra, embora seja uma informação trivial nos livros de história.
Muitos ficaram escandalizados com as cenas macabras de sexo protagonizadas por
Joffrey “Baratheon”, ele mesmo filho de uma relação incestuosa entre irmãos,
campo de interdição do desejo. Causaram repulsa as cenas de estupro contra
Daenerys, Cersei e Sansa. Apesar do mal-estar criado por essas representações,
a série despertou um necessário debate no campo dos estudos de gênero, tão
atacados pelo contexto atual de retrocesso conservador.
Quando o eunuco Varys
elegeu Jon Snow como o soberano ideal, ao invés de Daenerys, ele diz: “Porque é
um homem, e receio que os paus importem”. O autor da epopeia é homem; os
diretores da série são homens; e apenas quatro episódios foram dirigidos por
mulheres. A realidade da indústria de entretenimento continua sendo masculina.
Não à toa, a nudez feminina abundou nas primeiras temporadas. À medida que a
série alcançou um público cada vez mais global e que o recrudescimento
conservador ganhou protagonismo ao redor do mundo, a série cedeu aos apelos
moralistas, reduziu a complexidade política e não abordou mais temas polêmicos,
tornando-se uma mercadoria de entretenimento palatável para todos os gostos: um
produto mais próximo da Disney do que da HBO.
E ao fim…
Quando Game of Thrones começou, a crueza das
guerras, o sexo explícito, o destemor do autor para matar protagonistas, as
intrigas do deep state, as ameaças do
banco de ferro, uma possível referência a mudanças climáticas e a provável
existência de armas de destruição em massa tornaram as quatro primeiras
temporadas uma narrativa sem equivalente nesse universo fantástico.
Naturalmente, as
expectativas eram enormes com relação à complexificação da trama e da
personalidade dos personagens na segunda metade da série. Como expectativa
demais é ótimo para nos deixar frustrados, a série terminou sendo uma história
típica do universo fantástico, com dragões, zumbis, feitiços, protagonistas
preservados magicamente (com direito à ressurreição), casais românticos e final
político para uma audiência da sociedade do espetáculo. Não que fossem
necessários mais episódios e mais temporadas; bastava que as quatro últimas
temporadas tivessem encaminhamentos bem diferentes. Provavelmente, se tivessem
seguido nossas expectativas, a série não teria se tornado o sucesso que é. No
fim das contas, GOT cumpriu o seu papel no mundo do entretenimento nesse
momento histórico. Uma história de sucesso reflete as angústias de seu tempo.
Game of Thrones valeu muito a pena!
Acompanhar a série marcou positivamente uma fase importante da vida de muitas
pessoas ao redor do mundo. GOT foi uma experiência compartilhada que conectou
pessoas pertencentes a bolhas distintas em torno do debate do que seja Política
e Poder. Debate que parecia impossível de ser realizado por pessoas em lados
opostos nessa bipolaridade insensata. Essas marcas só são deixadas por bens
culturais de massa, quando esses alcançam o patamar de arte.
Nossos agradecimentos a
George R. R. Martin, a David Benioff, a D. B. Weiss, a todos e todas envolvidas
na série, e, por que não, a Carol Moreira e a Mikannn, responsáveis por
pautarem os debates no Brasil e, assim, criarem esses espaços de troca e de
afeto em torno da série.
Já que você chegou até
aqui, gostaríamos de indicar ficções históricas e científicas fantásticas,
cujos debates apresentam um maior rigor intelectual. Começamos por “O nome da
rosa”, de Umberto Eco; “Criação”, de Gore Vidal; “Cem anos de solidão”, de
Gabriel García Márquez; a epopeia “Fundação”, de Isaac Asimov; e, por fim, menos
conhecido e talvez uma leitura de transição para esses cânones: “Q, o caçador
de hereges”, do coletivo Luther Blissett, hoje chamado de Wu-Ming.
O
inverno já passou? Definitivamente não no mundo real. Mas esperamos que cada
vez mais bens culturais da literatura, do cinema e da TV possam despertar a
emancipação intelectual crítica e ensejar a primavera dos povos!
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Publicado 24/05/2019 às 18:51 - Atualizado 24/05/2019 às 19:45
FONTE: https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/quando-cientistas-sociais-assistem-game-of-thrones/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=o_melhor_da_semana_comecam_as_greves_do_futuro_o_que_aprender_com_cristina_kirchner_o_que_tira_o_sono_de_trump_ultradireita_na_europa&utm_term=2019-05-26
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