Leandro Karnal*
Há imensos silêncios sobre o feminino e o poder num mundo que ainda precisa repensar valores
A presidência de uma
república, como concebemos hoje, foi reinventada no fim do século 18. Na
esteira da revolução americana, o novo país adotou o modelo antes
restrito a poucas cidades italianas e áreas menores. Era um fato notável
e implicava adaptações. Uma delas foi como tratar o seu líder, o chefe
do Executivo. Para evitar associação com monarquia ou concentração de
poderes, usou-se, depois de muito debate, a fórmula Mr. President,
Senhor Presidente. Era respeitoso, mas prosaico, lembrando a quem
estivesse no cargo sua origem como cidadão comum.
Das
muitas coisas que foram levantadas naquele debate, não passou pela
cabeça dos pais-fundadores a ideia de mulheres na presidência da
República. Embora Abigail Adams tivesse escrito ao marido: remember the
ladies, na hora de fazer leis inclusivas no novo país, ninguém sonhava
com cidadania plena para elas, quanto mais colocá-las no topo do poder
político. De fato, até hoje, os EUA nunca tiveram uma presidente.
Foi
apenas no século 19 que movimentos sufragistas espocaram. Obtiveram
ainda mais força no século 20. Mulheres ganharam direitos políticos, mas
ainda nem sequer eram cogitadas à presidência pela maioria votante. A
primeira mulher eleita para cargo executivo máximo foi na República de
Tuva, em 1940 (Khertek Anchimaa-Toka).
No
nosso continente, tivemos mulheres presidentes na Argentina (duas
vezes), Nicarágua, Panamá, Guiana, Costa Rica, Chile e Brasil. Houve
interinas na Bolívia, Haiti e Equador. No cargo de primeira-ministra,
alguns exemplos notáveis: Índia, Alemanha, Israel e, recentemente, Nova
Zelândia. Rainhas não contam, pois não foram eleitas e fogem ao nosso
levantamento parcial. Ainda assim, soberanas foram notáveis na Rússia,
Havaí e Inglaterra. Mesmo que a política não seja mais um lugar
exclusivamente masculino, está bem longe de ser um campo do feminino. O
debate que houve no Brasil recente sobre o gênero da palavra presidente
mostra que o tema do empoderamento feminino é pouco usual para muitos.
Em
um universo dominado por cargos masculinos, surge a figura republicana
mais comum: a primeira-dama. É uma quase “instituição curiosa”, pois seu
pressuposto é o de uma mulher que não tenha carreira, apenas acompanhe o
marido em eventos públicos. Espera-se que seja simpática, fale pouco,
corte fitas e dê apoio ao eleito. Deve gerenciar instituições
beneméritas, promover atividades caritativas e, acima de tudo, claro,
ser e parecer honesta, como convém à mulher de César.
Os
norte-americanos amaram Eleanor Roosevelt, Jackie Kennedy (enquanto foi
Kennedy), Barbara Bush e Michelle Obama. Nem sempre tiveram relação
simpática com Hillary Clinton. No mundo, há as internacionalmente
atacadas: Imelda Marcos e Elena Ceausescu.
No Brasil, o título
foi inaugurado pela esposa do Marechal Deodoro, Mariana Cecília de Sousa
Meirelles da Fonseca. O mundo elitizado da capital da República se
encantou com o casamento de Nair de Tefé com o presidente Hermes. Ela
era uma mulher talentosa, pioneira na arte da caricatura e pianista que
escandalizava os palacianos tocando maxixe. A esposa de Getúlio, Dona
Darcy, criou a Legião Brasileira de Assistência (LBA), que, no começo,
era voltada aos familiares dos nossos expedicionários. Nos “anos
dourados”, dona Sara, esposa de JK, foi muito louvada. Os atritos do
casal nunca chegaram à grande imprensa. A mulher de Jango, Maria Teresa,
era destacada pela beleza. A imagem de Costa e Silva no hospital com
sua esposa ao lado (a curitibana Iolanda) comoveu muita gente. Era um
modelo esperado de devoção matrimonial. Ruth Vilaça Correia Leite
Cardoso (esposa de FHC, a única que de fato conheci, pois foi minha
professora) era uma intelectual respeitada e detestava o título de
primeira-dama. Talvez seja a preferida da classe média brasileira. Dona
Marisa Letícia pouco falou em oito anos. Sua sucessora foi lembrada pela
tatuagem com o nome do marido na nuca. A atual primeira-dama, Michelle
Bolsonaro, causou excelente impressão inicial com seu discurso em
Libras.
Houve esposas que “quase” alcançaram o título. Alice era
mulher do presidente cuja posse o movimento de 1930 impediu: Júlio
Prestes. Em 1969, Mariquita Aleixo seria primeira-dama, porém, os
militares acharam melhor que o vice não seguisse a Constituição.
Importante trazer à memória o nome de Risoleta Neves, mulher de grande
equilíbrio em meio a crises. O tamanho da crônica não permite citar
todas.
Tudo o que eu falei antes evidencia um mundo ainda
precisando repensar valores. As mulheres dos presidentes são lembradas,
dominantemente, por serem bonitas ou não, simpáticas ou não, tatuadas ou
não e bem menos se foram pessoas autônomas. Ao lado dos fatos isolados
que alcançaram a mídia, existem imensos silêncios sobre o feminino e o
poder. A própria memória de tudo já mostra opções de gênero a serem
repensadas. Independente da beleza, simpatia ou discrição: ainda existe
um mundo para uma primeira-dama? A opção política de um marido deve
envolver a esposa necessariamente? Seriam funções cerimoniais inócuas ou
seria o símbolo de perpetuação de um domínio já insustentável na
prática? Uma primeira-dama seria um mau exemplo para as meninas que
pensam em carreira e autonomia ou algo que devemos preservar?
A
própria palavra “dama” implica o controle aveludado do cavalheirismo?
Por fim, lembremos de Gauthier Destenay, casado com o primeiro-ministro
de Luxemburgo, Xavier Bettel, que posou para fotos e participou de
atividades ao lado de outras primeiras-damas em reuniões atendidas por
seu marido. São boas questões para o debate. É preciso ter esperança.
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*Colunista do Estadão. Historiador brasileiro, professor da Universidade Estadual de Campinas, especializado em História da América.
Fonte: https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,um-modelo-para-as-damas,70002810509
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