Fernando Henrique Cardoso*
Já recordei em outras oportunidades o que ouvi de Bill Clinton
em Camp David. Quando visito um país, disse ele, pergunto e procuro
responder: qual seu maior temor e seu maior sonho? Palavras simples e
profundas. No âmago do sentimento de cada povo sempre há algo em torno
dessas questões. Aplicando ao Brasil, penso que no inconsciente nacional
o que mais tememos é não “dar certo”; e o que mais desejamos é crescer,
ter desenvolvimento. Estes sentimentos raramente são conscientes.
Traduzem-se de forma concreta, por exemplo, em “quero ter emprego”,
quero que “os meus” tenham percursos prósperos; ou, pelo contrário: o
país não vai para frente porque “os políticos” roubam muito, “os
governos” não ajudam. Ou ainda, na versão mais antiga, não avançamos
porque “eles” não deixam (o imperialismo, os estrangeiros ou quem seja).
Até agora, porém, não perdemos a esperança de “dar certo”. Depois de
1988 , com a nova Constituição, passamos a entender que desenvolvimento
requer democracia e inclusão social.
Talvez
estejamos começando a viver outro momento. O da desesperança. As
pessoas deixam, aos poucos, de acreditar nelas próprias como
coletividade. A “culpa” não é de ninguém, é de todos. Nem culpa é,
trata-se de desalento. Também, dirão os mais ácidos, “com esta classe
política”... e imaginam que o país seria melhor sem os políticos. Com
quem, então: com tecnocratas, com autoritários? Os que assim pensam, sem
dar continuidade a seus temores, nos deixam com eles. Para contrastar,
li recentemente um texto sobre a China. Chama-se: O sonho chinês ou como evitar a dupla armadilha,
de Osvaldo Rosales. Desde o governo de Deng Xiao Ping, os chineses têm
metas aceitas pela maioria (ou inculcadas nela), o governo dispõe de
estratégias para orientá-las e de táticas para pô-las em prática. Dispensa, contudo, a democracia que conhecemos e queremos.
Será que não é possível para os brasileiros voltarmos a ter
esperança? Nos momentos de incerteza é quando mais se precisa de crença.
Falta chacoalhar o país outra vez, como fez Juscelino em seu tempo e
mesmo o Plano Real, e vislumbrar um futuro mais venturoso. É melhor
sonhar com os pés no chão, logo, é preciso dar os primeiros passos. Como
imaginar um futuro melhor se as taxas de desemprego não se reduzem? Como reduzi-las sem investimento e como investir sem acreditar no futuro? Parece a quadratura do círculo, mas não é.
A reforma da Previdência
vem neste contexto: é preciso demonstrar que o estado faliu e, sem
concentrar todos os males na Previdência e muito menos nos pobres ou só
no funcionalismo, falar francamente com a nação, e não só com o mercado.
É necessário aprovar a reforma da Previdência não só para obter o
“equilíbrio fiscal”, mas para progredirmos. Ela é necessária porque o
estado, num país de desigualdades e pobreza como o nosso, precisa atuar
em todo os setores da sociedade e não dispõe mais de recursos. A reforma
da Previdência, além de ser fiscalmente essencial, é necessária para
dar ao estado condições de ampliar os recursos para a educação, a saúde
etc. E também para assegurar o pagamento futuro de pensões. Precisamos
de um estado hígido, o que não quer dizer pequeno, e precisamos de mais
investimentos, que terão de vir principalmente do setor privado. Sem
crescimento da economia, por mais que se reduzam os gastos, faltará pão
às pessoas e combustível para o governo andar.
Não basta a reforma da previdência. Para o país ter rumo é preciso
ver os que mandam empenhados no bem estar coletivo. Os problemas, por
sua multiplicidade, parecem intransponíveis; sua solução, por isso
mesmo, não pode ser unitária. É preciso que o povo veja sinais de avanço
em várias áreas. Isso requer o uso do “verbo”—da palavra --- não para
alvejar inimigos, mas para despertar entusiasmo (que etimologicamente
quer dizer “deus no coração”, crença).
Que contraste entre o necessário para o país voltar a sonhar e o
bate-boca diário, via redes sociais, mantido pelos familiares da
República! Não roubar é obrigação e é pouco; é preciso ter compostura e
pensar grande. O desânimo só cederá se houver recuperação da confiança.
Caso contrário, na prática, as esperanças no governo se desvanecerão como as pesquisas de opinião estão mostrando. Sei, por experiência, que governar é difícil. Não convém, pois, precipitação no julgamento.
Como ainda estamos em crise (basta olhar o desemprego),
é preciso haver sinais positivos para que a crença se mantenha. É hora
de apresentar e explicar ao país uma agenda para vencer os desafios do
crescimento econômico, da redução da pobreza e da injustiça social. Uma
agenda que convoque a nação sem sectarismo para a reconstrução do
caminho difícil, mas possível, de desenvolvimento. Políticas que sejam
de estado e não deste ou daquele governo. No mundo contemporâneo, o
governo precisa explicar os porquês de sua agenda para alavancar o
desenvolvimento. Este requer a conjugação entre políticas governamentais
(inclusive as distributivas e demais pertinentes na área social), um
grande esforço na área de ciência e pesquisa para aumentar a
produtividade, e requer ainda a cooperação da “iniciativa privada”,
nacional e estrangeira, sobretudo na área de infraestrutura. O estado,
por si, será incapaz de tal proeza. Pior, poderá embaraçar a gestão sem
conseguir o aumento da produtividade na economia e nas ações públicas.
Sem elas, como generalizar a crença no país e fazer o povo
sentir bem estar? Falta explicar o porquê das reformas, no plural, e
estabelecer uma ligação clara entre a agenda do governo com os
interesses nacionais e populares de longo prazo. Só assim voltaremos a
crer em nós. Sem isso assistiremos a uma indefinida transição entre a
estagnação que herdamos do lulo-petismo e não se sabe o quê. Assim não
dá.
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* Fernando Henrique Cardoso, também conhecido como FHC, é sociólogo, cientista político, professor universitário, escritor e
político brasileiro. Foi o 34º presidente da República Federativa do
Brasil entre 1995 e 2003.
Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/04/opinion/1557004970_457239.html
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