Ilustração de Maria Valentina Fraiz
Último conto da série aborda cotidiano de família que tenta manter a normalidade diante da escassez
A pedido da Folha, a romancista venezuelana Karina Sainz Borgo, autora de "Noite em Caracas" (ed. Intrínseca) e convidada da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) deste ano, escreve o conto "Algo Vai Acontecer", última de três histórias baseadas na crise em seu país natal.
O primeiro conto, "Tesoura", acompanha mulheres que vendem seus cabelos, e o segundo, "Escadas", retrata uma visita a um hospital em colapso.
Minha esposa se levanta às 5h para preparar as arepas. Um
quilo de farinha de milho dá para duas: uma no café da manhã e outra no
almoço, até completar o mês. Quando minha sogra não vivia conosco, a
comida durava mais tempo. Não era muita, mas rendia.
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Enquanto
isso, checo a água nos canos. Quase nunca há água. Por isso pego a que
guardamos em baldes e esquento um pouco para Clara e Nora, nossas
filhas. Elas custam a se acostumar a usar a água fria; eu, não. É
preciso fazer tudo rápido. A escola fica a cinco quilômetros, e falta
gasolina há semanas. Como não passam mais vans por aqui, vamos a pé.
Trabalho na universidade há 15 anos. Quando consegui a vaga de
técnico de laboratório, pensei em completar algum curso, aprender a
preparar reagentes. Poderia até chegar a supervisionar os projetos dos
professores titulares. Agora só o que faço é cuidar de salas vazias.
Antes de entrar, passo os olhos pelas janelas. Dificilmente se passa uma
noite sem roubos. Às vezes roubam papel, algum telefone, um cabo, uma
lâmpada, qualquer coisa que chame a atenção. Também verifico se há água.
Se está tudo em ordem, ligo o único computador do departamento, que
guardamos debaixo de uma lajota frouxa de uma das antigas salas de
Cultivos. Quando a internet funciona, checo o email e arquivo as
petições. Um ano atrás demorava o dia inteiro para responder a tudo, mas
hoje chegam cada vez menos emails. Os estudantes se foram, e os que
ficaram quase não pedem coisas: um certificado de estudos ou um
documento que possam carimbar para procurar trabalho fora. Ir embora, é
disso que todos falam, minha esposa também. Ir embora? Para onde? E para
quê? Então ela se vira na cama e faz silêncio no meio da noite. Olho
para o teto, esperando algo acontecer.
Quando a conexão com a internet não era tão lenta, eu me sentava no
laboratório para navegar no Google Earth. Faz dias que a banda larga não
está funcionando, por isso me acomodo diante da tela do computador até
dar 16h, quando minha jornada termina. É um tédio ficar esperando diante
de um monitor apagado. É como passar o dia se olhando no espelho.
Preencher o tempo, esperando que alguma coisa aconteça. Tento cumprir
meu horário até o final, mas nem sempre consigo. Saio mais cedo para
pegar o único ônibus que sai da universidade.
Já é noite quando chego em casa. As meninas estão fazendo o dever de
casa. Só tenho tempo de beijá-las. Saio correndo com os dois baldes, um
em cada mão, para que tenhamos água no dia seguinte. Tomo meu lugar na
fila dos vizinhos. A cada dia que passa sai menos água da torneira, e a
espera fica mais longa. Esperamos, juntos, que algo chegue. A água, a
luz, o dinheiro. Alguém atrás de mim rumina uma queixa. Eu olho para o
céu e faço silêncio, para que não me ouçam. Tudo isto vai passar,
repito.
Dias atrás vi Herminia, a única vizinha com quem converso. Estava careca, a velha. Suas filhas a levaram à fronteira para vender seu cabelo.
Deram 60 mil pesos a uma e 40 mil à outra. O cabelo preso no coque de
Herminia não deu para muita coisa, e, se bem que compraram um pouco mais
de farinha, tampouco durou. Herminia sente medo, eu também. Do quê?,
lhe pergunto. Que fechem a porta e a deixem sozinha. Que a luz se apague
e elas não voltem mais. O que está dizendo, minha senhora!, eu a
repreendo. Mas estou mentindo. Como ela, sou mordido pelo medo... de que
não aconteça nada.
Se minha mãe estivesse viva, eu não cortaria seu cabelo por dinheiro.
Olho para a cabeça mal raspada da velha e lhe cedo meu lugar na fila,
para poupá-la do constrangimento de andar pelo bairro tosada. Quando ela
vai embora, eu também desligo, olhando para meus sapatos. Sempre
espero, mesmo que ouça tiros.
Se minha vez demora demais para chegar, parto à procura de um cano
quebrado. Uma vez cheguei até a rodovia. Voltei para casa com os baldes
cheios de uma água parda e suspeita. Esquentando-a, ficará boa, repito a
mim mesmo. Por isso me concentro em encher os baldes. A água, Juan, a
água. As meninas não podem ir à escola sujas.
Minha esposa, que trabalha num mercado controlado pelo Estado,
consegue comida. Demora, mas ela encontra. Por isso chega em casa cada
dia mais tarde e mais velha. Se ela tem sorte e consegue alguma coisa,
preparamos o que conseguiu trazer e o guardamos para o café do dia
seguinte. Enquanto ela cozinha, e se há luz, reviso o dever das meninas.
Elas não fazem muita lição, mas ao menos sabem somar.
“Uma arepa menos outra arepa. Quantas arepas me restaram?”, pergunto a elas.
“Zero, mata zero!”, elas repetem, uma corrigindo a outra.
“Uma, nenhuma!”
“Metade para cada uma!”
“Uma para a avó, que come pouco!”
De tanto contar, aprenderam os decimais beliscando aqueles pãezinhos sem sal nem manteiga, que acompanham com um copo de água.
De algumas semanas para cá a luz elétrica anda faltando, por isso
vamos para a cama antes da hora, se bem que dormir, propriamente dito,
não dormimos muito.
Às vezes, no escuro, penso na água do dia seguinte, no dente de trás quebrado, nas janelas arrebentadas.
Penso nas mesmas coisas em que penso de dia, mas à noite. Também conto os disparos para me distrair.
Noventa e um. Noventa e dois. Noventa e três. Noventa e quatro.
Noventa e cinco. Noventa e seis. Noventa e sete. Noventa e oito. Me
imagino aparecendo na janela para que deem um tiro em mim também.
Noventa e nove. Porque todos vão embora ou já foram.
Então volto a pensar na água, e aquilo passa. Amanhã o Google Earth
vai funcionar, com certeza. Eu sei: alguma coisa vai acontecer,
finalmente.
Tradução de Clara Allain
FONTE: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/05/romancista-escreve-conto-sobre-um-dia-sem-agua-luz-e-comida-na-venezuela.shtml 25/05/2019
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