domingo, 26 de maio de 2019

Romancista escreve conto sobre um dia sem água, luz e comida na Venezuela

Ilustração de Maria Valentina Fraiz 

Último conto da série aborda cotidiano de família que tenta manter a normalidade diante da escassez


A pedido da Folha, a romancista venezuelana ​Karina Sainz Borgo, autora de "Noite em Caracas" (ed. Intrínseca) e convidada da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) deste ano, escreve o conto "Algo Vai Acontecer", última de três histórias baseadas na crise em seu país natal.

O primeiro conto, "Tesoura", acompanha mulheres que vendem seus cabelos, e o segundo, "Escadas", retrata uma visita a um hospital em colapso.

​Minha esposa se levanta às 5h para preparar as arepas. Um quilo de farinha de milho dá para duas: uma no café da manhã e outra no almoço, até completar o mês. Quando minha sogra não vivia conosco, a comida durava mais tempo. Não era muita, mas rendia.

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Enquanto isso, checo a água nos canos. Quase nunca há água. Por isso pego a que guardamos em baldes e esquento um pouco para Clara e Nora, nossas filhas. Elas custam a se acostumar a usar a água fria; eu, não. É preciso fazer tudo rápido. A escola fica a cinco quilômetros, e falta gasolina há semanas. Como não passam mais vans por aqui, vamos a pé.

Trabalho na universidade há 15 anos. Quando consegui a vaga de técnico de laboratório, pensei em completar algum curso, aprender a preparar reagentes. Poderia até chegar a supervisionar os projetos dos professores titulares. Agora só o que faço é cuidar de salas vazias. Antes de entrar, passo os olhos pelas janelas. Dificilmente se passa uma noite sem roubos. Às vezes roubam papel, algum telefone, um cabo, uma lâmpada, qualquer coisa que chame a atenção. Também verifico se há água.

Se está tudo em ordem, ligo o único computador do departamento, que guardamos debaixo de uma lajota frouxa de uma das antigas salas de Cultivos. Quando a internet funciona, checo o email e arquivo as petições. Um ano atrás demorava o dia inteiro para responder a tudo, mas hoje chegam cada vez menos emails. Os estudantes se foram, e os que ficaram quase não pedem coisas: um certificado de estudos ou um documento que possam carimbar para procurar trabalho fora. Ir embora, é disso que todos falam, minha esposa também. Ir embora? Para onde? E para quê? Então ela se vira na cama e faz silêncio no meio da noite. Olho para o teto, esperando algo acontecer.

Quando a conexão com a internet não era tão lenta, eu me sentava no laboratório para navegar no Google Earth. Faz dias que a banda larga não está funcionando, por isso me acomodo diante da tela do computador até dar 16h, quando minha jornada termina. É um tédio ficar esperando diante de um monitor apagado. É como passar o dia se olhando no espelho. Preencher o tempo, esperando que alguma coisa aconteça. Tento cumprir meu horário até o final, mas nem sempre consigo. Saio mais cedo para pegar o único ônibus que sai da universidade.

Já é noite quando chego em casa. As meninas estão fazendo o dever de casa. Só tenho tempo de beijá-las. Saio correndo com os dois baldes, um em cada mão, para que tenhamos água no dia seguinte. Tomo meu lugar na fila dos vizinhos. A cada dia que passa sai menos água da torneira, e a espera fica mais longa. Esperamos, juntos, que algo chegue. A água, a luz, o dinheiro. Alguém atrás de mim rumina uma queixa. Eu olho para o céu e faço silêncio, para que não me ouçam. Tudo isto vai passar, repito.

Dias atrás vi Herminia, a única vizinha com quem converso. Estava careca, a velha. Suas filhas a levaram à fronteira para vender seu cabelo. Deram 60 mil pesos a uma e 40 mil à outra. O cabelo preso no coque de Herminia não deu para muita coisa, e, se bem que compraram um pouco mais de farinha, tampouco durou. Herminia sente medo, eu também. Do quê?, lhe pergunto. Que fechem a porta e a deixem sozinha. Que a luz se apague e elas não voltem mais. O que está dizendo, minha senhora!, eu a repreendo. Mas estou mentindo. Como ela, sou mordido pelo medo... de que não aconteça nada.

Se minha mãe estivesse viva, eu não cortaria seu cabelo por dinheiro. Olho para a cabeça mal raspada da velha e lhe cedo meu lugar na fila, para poupá-la do constrangimento de andar pelo bairro tosada. Quando ela vai embora, eu também desligo, olhando para meus sapatos. Sempre espero, mesmo que ouça tiros.

Se minha vez demora demais para chegar, parto à procura de um cano quebrado. Uma vez cheguei até a rodovia. Voltei para casa com os baldes cheios de uma água parda e suspeita. Esquentando-a, ficará boa, repito a mim mesmo. Por isso me concentro em encher os baldes. A água, Juan, a água. As meninas não podem ir à escola sujas.

Minha esposa, que trabalha num mercado controlado pelo Estado, consegue comida. Demora, mas ela encontra. Por isso chega em casa cada dia mais tarde e mais velha. Se ela tem sorte e consegue alguma coisa, preparamos o que conseguiu trazer e o guardamos para o café do dia seguinte. Enquanto ela cozinha, e se há luz, reviso o dever das meninas. Elas não fazem muita lição, mas ao menos sabem somar.

“Uma arepa menos outra arepa. Quantas arepas me restaram?”, pergunto a elas.

“Zero, mata zero!”, elas repetem, uma corrigindo a outra.

“Uma, nenhuma!”

“Metade para cada uma!”

“Uma para a avó, que come pouco!”

De tanto contar, aprenderam os decimais beliscando aqueles pãezinhos sem sal nem manteiga, que acompanham com um copo de água.

De algumas semanas para cá a luz elétrica anda faltando, por isso vamos para a cama antes da hora, se bem que dormir, propriamente dito, não dormimos muito.

Às vezes, no escuro, penso na água do dia seguinte, no dente de trás quebrado, nas janelas arrebentadas.

Penso nas mesmas coisas em que penso de dia, mas à noite. Também conto os disparos para me distrair.

Noventa e um. Noventa e dois. Noventa e três. Noventa e quatro. Noventa e cinco. Noventa e seis. Noventa e sete. Noventa e oito. Me imagino aparecendo na janela para que deem um tiro em mim também.

Noventa e nove. Porque todos vão embora ou já foram.

Então volto a pensar na água, e aquilo passa. Amanhã o Google Earth vai funcionar, com certeza. Eu sei: alguma coisa vai acontecer, finalmente.

Leia também o conto 1, "Tesoura", e o conto 2, "Escadas".
Tradução de Clara Allain 
FONTE:  https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/05/romancista-escreve-conto-sobre-um-dia-sem-agua-luz-e-comida-na-venezuela.shtml 25/05/2019

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