Os Estados mais poderosos e as
megacorporações preparam o hipercapitalismo, um inferno de desemprego e
precariedade. Há saída, previam Marx e Stephen Hawking. Exigirá
descriptografar o Big Data e resgatá-lo de seus sequestradores
Por Gabriel A. Méndez H. | Tradução: Rôney Rodrigues
Este artigo tentará dar conta de um fenômeno emergente no espaço das
relações políticas: a “guerra mundial cibernética”. Primeiro, definirei
os termos que utilizarei ao longo do texto. Em seguida, aplicarei os
ditos conceitos ao contexto do fenômeno apontado e, depois, tentarei
fazer uma interpretação original do mesmo, para concluir com um olhar
prospectivo sobre sua possível transformação em “guerra civil
cibernética”.
1. Rumo à Guerra Mundial Cibernética
Para fazer e mover coisas necessita-se de energia. A revolução
industrial multiplicou exponencialmente a energia à disposição da
sociedade humana por meio de máquinas de todo tipo. No entanto, essas
máquinas necessitavam de supervisão e controle humanos para cumprir seus
fins. Há três tipos ideais de máquinas: as que transformam um tipo de
matéria em outro tipo de matéria. As que transforma energia de um tipo a
outro. E as máquinas que transformam informação. É com essas últimas
que se ocupa a “cibernética”. Nesse sentido, a Internet pode ser
concebida como uma imensa máquina cibernética que se estendeu por todo o
comprimento e largura do planeta com o potencial de colocar em Comum
todos os seres humanos em tempo real (trata-se do embrião de uma
sociedade global).
Agora mesmo está sendo desenvolvido o próximo salto evolutivo: a
Internet das Coisas (IoT, na sigla em inglês) que, como pode-se inferir
pelo nome, permitirá conectar todas as coisas umas com as outras e com
os humanos. Isso implica que as coisas, em breve, terão, como as
máquinas cibernéticas de hoje, algum grau de “inteligência” – que, para
algumas funções específicas, será igual ou superior à humana (por
exemplo: captar, registrar e transmitir informações).
Dessa forma, surge diante de nossos olhos o que Karl Marx antecipou
com o termo “cérebro social”: Desde os tempos remotos, coisas e humanos
constituíram um sistema único, a sociedade humana, formando um só objeto
sócio-técnico, o Ator-Rede, no sentido de Bruno Latour & Michael
Callon (1), onde os atores colocavam aos desejos e a inteligência; e as
coisas, a energia e a matéria transformada. No entanto, eles não se
“falavam” uns com os outros. Mas agora uma disrupção silenciosa iniciou
quando as coisas começaram a adquirir diversos graus de “inteligência”.
Essa disrupção foi antecipada por Marx no célebre Fragmento sobre as máquinas (1857):
A acumulação do conhecimento e as habilidades das forças produtivas gerais do cérebro social, [são] absorvidas assim, dentro do capital.
No fragmento citado
(Caderno VI-VII do Grundrisse), o filósofo alemão antecipou,
sob a denominação de “intelecto geral” ou “cérebro social”,
o processo pelo qual o capital vai subsumindo, como um vampiro, os
conhecimentos e as habilidades extraídos dos trabalhadores. Tal
extração (2), na forma de luta de classes, moldou a história do
real, ou seja: “o material transposto e traduzido no cérebro
humano” (3). A concepção marxista de cérebro, como ser genérico
ou social, permite-nos derivar uma teoria do conhecimento
(epistemologia) da teoria do valor: o cérebro é social (4). Hoje em
dia, essa realidade se chama “virtual” ou, também, Big Data.
Embora o correto seria denominá-la de realidade criptografada (5).
A privatização do
Big Data ou cérebro social é o que explica as estrelas midiáticas
do Vale do Silício dominarem o mundo. Nas palavras de Slavoj Žižek
(2012)
Como Bill Gates se converteu no homem mais rico dos Estados Unidos? Sua riqueza não tem nada a ver com a produção de um bom software pela Microsoft a preços mais baixos que seus concorrentes, tampouco devido ao “aproveitamento” de seus trabalhadores mais talentosos (a Microsoft paga a seus trabalhadores intelectuais um salário relativamente alto). Milhões de pessoas seguem comprando o software de Microsoft porque ele nos foi imposto como norma quase universal, praticamente monopolizaram a área, realizando o que Marx chamou de “intelecto geral”, referindo-se ao conhecimento coletivo em todas suas formas, desde a ciência até conhecimentos práticos. Bill Gates privatizou parte do intelecto geral e ficou rico apropriando-se dessa renta que veio em seguida.
Quando tal privatização chegar a suas etapas finais, o capital
necessitará de pouquíssima quantidade de trabalho vivo para sua
reprodução. Até lá, se não houver intervenção do Estado, o risco será
que a maioria dos trabalhadores sejam jogados ao inferno do desemprego e
da precariedade. No entanto, ao fazer isso, o capital estará minando
seus próprio terreno — a mais-valia — já que ela somente pode ser criada
pelo trabalho vivo. Nas palavras de Marx (1980, p.222):
O capital trabalha, assim, a favor de sua própria dissolução como forma dominante da produção.
Mais recentemente, Stephen Hawking (2015), o famoso astrofísico britânico, chamava nossa atenção para o mesmo fenômeno:
Se as máquinas produzem tudo o que necessitamos, o resultado dependerá de como se distribuem as coisas que as máquinas produzem. Todo o mundo poderá desfrutar de uma vida ociosa se a riqueza produzida pelas máquinas for compartilhada; ou a maioria das pessoas pode acabar sendo miseravelmente pobre, se os proprietários das máquinas fizerem pressão política exitosa contra a redistribuição da riqueza. Até agora, a tendência parece ser a segunda opção, com a tecnologia provocando crescente desigualdade.
Se a previsão de Hawking tornar-se realidade, chegaremos a uma
situação em que o todos os produtos serão produzidos, praticamente, só
por máquinas e, talvez, por uma ínfima quantidade de trabalho vivo. Mas:
Isso não é, em certo sentido, muito similar àquele processo, apontado por Marx, do crescimento da composição orgânica do capital, que deveria levar a eutanásia do capitalismo (para usar um termo de Keynes em uma estrutura marxista)? (Milanovic, 2015).
Segundo Bruno Milanovic, antigo economista-chefe do Banco Mundial, em
Marx a suposição é de que o processo de valorização implica na
intensificação do capital, relativa ao trabalho vivo. Desse modo, os
capitalistas tendem a acumular cada vez mais capital e a eliminar mais
tempo de trabalho vivo por unidade de produto. Isso, em uma estrutura
marxista, significa cada vez menos necessidade de horas de trabalho
assalariado que, obviamente, geram cada vez menos a mais-valia: e essa
mais-valia minguante, em relação a uma crescente acumulação de capital,
significa uma queda na taxa de lucro, até o limite de zero.
Como a robotização afetará o capitalismo? Karl Marx nos dá algumas
pistas. Como escreveu, cada capitalista individualmente está constrito
por leis de ferro do mercado para investir em processos mais intensivos
do capital, para ser mais competitivo que os outros capitalistas. Mas
quando todos fazem o mesmo (apesar das contra-tendências), a taxa de
lucro cai para todos. Por isso, a longo prazo o que fazem os
capitalistas, no final das contas, é “sair do negócio”, ou, mais
precisamente, avançar para uma taxa zero de lucro.
Em qualquer caso, o trabalho vivo será substituído por máquinas, em
um grau tão extremo que o grosso da produção será realizada por robôs. O
emprego será insignificante. Em Marx, o último desequilíbrio político –
ou crise terminal – se daria entre um enorme “exército de reserva de
desempregados” e uma pequena camada de capitalistas e assalariados de
sucesso. Para visualizar esse desequilíbrio, Milanovic (2015) nos
convida a que
Imaginemos milhares de robôs trabalhando em uma grande fábrica e um só trabalhador controlando-os, sendo que os robôs só têm vida útil de um ano: isso significa que há que substituir, continuamente, os robôs, ou seja, enormes custos anuais de reposição e reinvestimento. A composição do PIB seria muito interessante. Se o PIB total é de 100, poderíamos ter uma consumo = 5, um investimento líquido = 5 e uma reposição = 90. Viveríamos em um país com um PIB per capita de 500 mil dólares, mas 450 mil dólares seriam para reposição.
Suponhamos, agora, que as máquinas passem a ser propriedade dos
perdedores do sistema, depois de uma Guerra Civil Cibernética, similar a
recriada em V de Vingança. Teríamos, então, as mesmas fábricas
imensas cheias de robôs, mas todo o produto líquido seria apropriado
pelos excluídos, que usariam essa renda para ter uma vida de muito ócio,
com jornadas de trabalho reduzidas — ou, inclusive, nenhuma — olhando
telas ou jogando divertidos jogos em seus celulares. Desse modo, a
guerra civil cibernética seria uma deslocada luta de classes.
Porém, qual seria a
ideologia dos novos ciberproletarios? Talvez um rejuvenescido
“fetichismo digitalizado” ou o “reino da liberdade”, segundo
teorizou Marx? Nas palavras de Ricardo Sanín (2016, p.116)
As maravilhosas máquinas de alta tecnologia e comunicação estão programadas em linguagens altamente sofisticadas e em ambientes extremamente elitistas, que servem ao poder para estender o domínio do capital da melhor maneira possível. Apesar de estarmos irremediavelmente conectados a uma rede que sempre amplia a informação, como se fora o Intelecto Geral, a imagem cultural da máquina permanece criptografada: seus fluxos e comandos seguem dependendo da fome do mercado, e seu principal intelecto segue sendo material escasso. Por isso, a informação só pode tornar-se democrática quando a máquina – em um ponto de absorvição do conhecimento ao poder – se decriptar e se liberar politicamente.
“Máquinas maravilhosas” que embora englobem uma grande promessa de
emancipação, também continuam replicando seus “fluxos e comandos” às
mesmas mesquinhezes morais: racismo, sexismo, imperialismo, capitalismo,
da matriz política que lhe deu vida: o Colonialismo Globalizado.
São os grandes e
perturbadores enigmas que nos trazem a realidade criptografada e seu
colonialismo globalizado.
2. Uma via digital ao comunismo
Até agora as sociedades ciberneticamente mais desenvolvidas do mundo: Estônia, Singapura e Israel, são:
1-Demograficamente
pequenas e politicamente homogêneas;
2-Possuidoras de Estados policiais muito fortes; e
3-A educação
elitista é uma prioridade para o Estado e a sociedade.
Por outro lado, trata-se de sociedades que, curiosamente, estão muito
distantes da Califórnia: já se desmonta esse mito idiota de que “tudo
se inventa no Vale do Silício” (6).
Mas agora estamos diante de um ponto de fuga. Em uma nova reviravolta
da atual Guerra Mundial Cibernética (uma reedição, em formato digital,
da Guerra Fria entre Leste e Oeste), Vladímir Putin anunciou, no começo
de junho de 2017, no Fórum Internacional Econômico de São Petersburgo,
um programa político qualitativamente novo que, a julgar pelos
discursos, se apoiará na plena “digitalização” da sociedade e da
economia russas, que eles pensam em extrair de suas formidáveis “escolas
de matemáticos e físicos”. Naquele fórum, Putin e seus ministros
anunciaram uma aliança com o Ethereum para um sistema descentralizado de
serviços de Internet, baseado na tecnologia blockchain –
tecnologia que está na base das criptomoedas, formada por nós
interconectados de informação criptografada e distribuída por todo o
mundo e que funcionam como base de dados e cópias de segurança. Segundo
informações do Kremlin, o presidente Putin encontrou-se com o fundador
de Ethereum, Vitálik Buterin, um programador de 23 anos, nascido na
Rússia em uma família que emigrou para o Canadá. Putin apoiou as ideias
de Buterin e propôs estabelecer contatos de trabalho com potenciais
sócios russos. Segunda uma nota do El País sobre o encontro:
Putin está “totalmente apaixonado” pela digitalização da economia e pelas novas tecnologias, segundo o vice-primeiro ministro, Igor Shuválov. Disse que o presidente reuniu um pequeno grupo de funcionários da administração e do governo para debater esses temas e só os “deixou sair” depois de “uma da madrugada”. Em São Peterbrurgo, Putin esboçou as linhas básicas do programa de digitalização que o governo elaborou a seu pedido. Entre as metas, está a “alfabetização digital geral” com “programas de ensino para pessoas das mais diversas idades” e uma base “normativa nova e ágil para introduzir tecnologias digitais em todos os campos”, tendo em conta “a segurança informática do Estado, dos negócios e dos cidadãos”. Putin anunciou ações “para incrementar nossa superioridade intelectual, tecnológica e de quadros no campos da economia digital”.
Em sua opinião, as “excelentes escolas no campo da matemática e na
física teórica” permitem à Rússia “conseguir a liderança em diferentes
direções da denominada nova economia, sobretudo digital”. A economia
digital não é apenas mais um ramo, mas “a base que permite criar um novo
modelo qualitativo de negócios, comércio, logística, produção, que
altera o formato da educação, da saúde, da direção do Estado, da
comunicação entre as pessoas, e em consequência cria um novo paradigma
de desenvolvimento do Estado, da economia e de toda a sociedade”,
argumentou Putin (Bonet, 2017).
Essa estratégia de Putin, não envolve a possibilidade de que nos
encontremos às portas daquilo que Alain Badiou formulou como o
“Acontecimento”: uma intervenção do que não pode ser explicado em função
de suas “condições objetivas” preexistentes? Com a tecnologia
blockchain em cena, a riqueza das sociedades não só está se
transformando de uma “imensa acumulação de mercadorias” (Marx) para uma
imensa sinapse planetária, como também , devido a sua revolucionária
estrutura matemática (7), poderia alterar as geometrias tradicionais do
poder global.
Então, o que aconteceria se em um futuro próximo Rússia, China e
Índia copiassem com sucesso a digitalização da Estônia, de Singapura e
de Israel? Claramente, trata-se de uma intensificação da Guerra Mundial
Cibernética contra as potência ocidentais. No entanto, ao ser todos eles
estados policiais e capitalistas – com suas opacas e corruptas
oligarquias bem instaladas nos postos de comando da economia e da
administração – o desafio dos hacktivistas – tanto do Leste quanto do
Oeste, tanto do Norte quanto do Sul – será transformar essa Guerra
Mundial Cibernética em Guerra Civil Cibernética, socializando as bases
de dados (8), ou seja, descriptografando o Big Data e toda a potência de
sua inteligência artifical coletiva para, assim, liberá-los de seus
atuais “sequestradores” – tanto estatais (Estados Unidos, União
Europeia, Rússia, China etc.) como privados (Google, Facebook, Netflix,
Microsoft, Apple etc.).
Notas
(1) Ver Michael Callon, (2001).(2) Para uma concepção alternativa e não eurocêntrica (como a de Marx) do “extrativismo” e da tecnologia em geral, ver Ramón Grosfoguel (2016).
(3) Ver Karl Marx, El Capital, Vol. 1, Epilogo a 2ª Ed. Alemana.
(4) Ver Guglielmo Carchedi (2014).
(5) Ver Gabriel Méndez e Ricardo Sanín (2012).
(6) Curiosamente, o antecedente do Big Data como uma tecnologia política emancipadora se encontra nos anos 1970 e em um país do sul global, ver Eden Medina (2013).
(7) Cfr.: http://www.bitcoin.org/bitcoin.pdf Satoshi Nakamoto – The Cryptography.
(8) Ver Evgeny Morozov (2015)
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OutrasPalavras
Publicado 02/05/2019 às 20:02 - Atualizado 02/05/2019 às 20:08
Fonte: https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/por-uma-rebeliao-cibernetica/
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