Roberto DaMatta*
Hoje, a questão é constatar como o governo destoa de um estilo politicamente correto de governar
Permita
o leitor que o cronista fale de perplexidades. Uma das mais intrigantes
é a seguinte: quando um mentiroso irreversível diz que mente ele fala a
verdade?
E
quando uma coletividade nascida da engrenagem da aristocracia branca
estrangeira com escravidão negra também estrangeira, soldadas por
mestiçagem e por uma máquina estatal hierarquizada administrada por uma
elite absolutamente consciente do seu papel de mandona diz que é
igualitária – você acredita?
Uma outra perplexidade é o
recorrente projeto das elites de promover o progresso, a riqueza e a
democracia do Brasil e, no entanto, o que tenho visto é uma sucessão de
ciclos nos quais quem chega ao poder enobrece enquanto o País fica mais
acachapado.
A
perplexidade atual é constatar como o governo destoa frontalmente de um
estilo politicamente correto de governar. As reações a essa desarmonia
são sintomáticas de um elitismo feroz, forjado por redes de elos
pessoais e simbólicos que mantiveram sua autoridade (e seus lucros
políticos e monetários), deixando mudar regimes. Os regimes mudam, mas o
núcleo elitista (velho ou novo) permanece na sua matriz aristocrática
garantida por leis.
*
Dizem que não se governa um país na
base do confronto e eu tendo a concordar. Ressalvo, entretanto, que, no
Brasil, aprendemos tudo menos a dizer não. Somos da moda e não queremos
“ficar mal no filme”. Daí a obrigatoriedade de concordar e compreender
as falcatruas dos amigos e dos recomendados que comungam do nosso estilo
de vida patriarcal que não permite nome feio ou ponto fora da curva.
Tal estilo tem sido sustentado pelo Estado que – eis outra perplexidade –
não teve uma raiz democrática, embora seja formalmente um “Estado
democrático de direito”.
*
Quem foi que inventou o Brasil? Lamartine Babo fez essa pergunta crítica na marchinha carnavalesca História do Brasil,
em 1934. Tempos que culminaram numa ditadura. Por que a questão é
crítica? Pela simples razão de conduzir às origens. Para nós humanos,
nada é mais básico do que o acesso às origens. Deus deve estar acima de
tudo porque é o Criador do mundo e dos seus princípios.
Mitos
de origem e origens como mitos são a base dos sistemas políticos e
sociais. John Adams, Benjamin Franklin, Alexander Hamilton, John Jay,
Thomas Jefferson, James Madison e George Washington são os “pais
fundadores” dos Estados Unidos da América cuja sociedade tem um lado
hiperindividualista. Origem, fundação, descoberta e criação estão sempre
ligados a uma dimensão hierárquica ou aristocratizante e a algo divino.
A seres e objetos marginais ao nosso mundo rotineiro, mas necessários à
sua fecundidade e continuidade.
O Brasil, diz a marchinha, foi
inventado por Seu Cabral, dois meses depois do carnaval. Há quem –
observando a nossa fúria autodestrutiva – duvide?
*
A
divisão do poder absoluto e divino dos monarcas foi feita na base de um
número mágico. Qualquer semelhança entre a Santíssima Trindade e os
poderes Executivo, Legislativo e Judiciário é mera coincidência, exceto
para o antropólogo, mas isso não cabe numa crônica.
O fato é que
a divisão republicana foi adotada na América Latina com um forte
sotaque real, pessoal e relacional – autoritário – como eu tenho
mostrado nos meus livros. As repúblicas latino-americanas não caíram num
terreno virgem. Foram proclamadas contra vice-reinados e, no nosso
caso, em contraste com um império. Joaquim Nabuco percebeu isso porque
conhecia bem o nosso viés personalista, relacional e – não custa
acrescentar – elitista e cabotino.
O republicanismo aplicado ao
nosso continente elege reis, como dizia Nabuco. Com a diferença marcante
do viés messiânico-marxista que, com a Guerra Fria, deu um novo impulso
ao caudilhismo pessoal (caso cubano) ou corporativo-partidário (caso
brasileiro), apelando para conceitos que remeteriam às origens da ordem
social como propriedade, liberdade e opressão.
*
Minha última perplexidade foi escrita por Hölderlin – um poeta alemão: “Onde existe perigo, existe esperança”.
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* Antropólogo, conferencista, consultor, colunista de jornal e produtor brasileiro de TV e um pensador sociólogo.
Fonte: https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,perplexidades,70002837708 22/05/2019
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