Gianfranco Ravasi*
“Não se deve esquecer que, precisamente na América Latina, está
se alargando o manto de uma concepção religiosa (considerá-la como ‘teologia’ é
excessivo) antitética. É a chamada ‘teologia da prosperidade’ de matriz neoliberal e conservadora.
Ela parte de uma afirmação antigo-testamentária, criticada, aliás, pelo próprio
Jesus (leia-se João 9, 1-3), segundo a qual ao delito corresponde um
castigo, a um sofrimento, uma culpa, a uma riqueza, a bênção divina que endossa
a obra do beneficiado”.
Há 50 anos, em 1969, era publicado em Montevidéu um livro
intitulado “Hacia una teología de la liberación” (Rumo a uma
teologia da libertação). O autor era um ainda jovem teólogo, Gustavo Gutiérrez,
nascido em 1928 em Lima, com estudos em medicina na sua cidade natal, em
filosofia e psicologia em Louvain e em teologia em Lyon. Naquele
título, ressoava o sintagma “teologia da libertação”, que se tornaria
uma bandeira desfraldada em toda a América Latina e uma espécie de
pesadelo, por sua vez, em certos âmbitos eclesiais, começando pela Cúria
Romana.
Dois anos depois, em 1971, aparecia em Lima um texto programático
dele, intitulado de modo lapidar como “Teologia da Libertação”
(traduzido para o italiano no ano seguinte pela Queriniana, de Bréscia),
marcado por uma perspectiva disruptiva em relação à reflexão dominante da
época. De fato, o contexto era diferente, os interlocutores eram diferentes, o método
era diferente, a sistematização temática era diferente. Para o mundo ocidental
de matriz europeia, o desafio que levantava desafios candentes era a
secularização, a não crença. Para o horizonte latino-americano, era a não
humanidade, ou seja, o pobre, o oprimido, o explorado.
O marco religioso não era posto em crise por um ataque intelectual e
teórico, mas sim por uma sociedade desumana que infringia o cânone cristão da
dignidade pessoal e da caridade. Compreende-se, assim, a já célebre e até
abusada fórmula cunhada na conferência do episcopado latino-americano realizada
no México em Puebla, em 1979, dez anos depois do primeiro ensaio de Gutiérrez:
“A opção preferencial pelos pobres”.
A teologia da libertação, assim, recebia um aval eclesial que,
porém, não compreenderia a sua vitalidade fremente que levou alguns expoentes a
recorrer a instrumentos externos, como a análise marxista da história, ou a teoria sociopolítica da dependência
estrutural dos países latino-americanos do imperialismo estadunidense, ou
até as pulsões revolucionárias que se agitavam no continente.
O eixo se deslocava, assim, cada vez mais para reivindicações sociais,
configurando uma espécie de escatologia terrena, criando reações por parte das
instituições centrais da Santa Sé. Houve, então, uma primeira
Instrução sobre alguns aspectos da teologia da libertação, emitida
em 1984 pela Congregação para a Doutrina da Fé, que marcava as recaídas
ideológicas de algumas abordagens militantes do movimento.
Na realidade – e Gutiérrez é um exemplo disso – também eram
muitos os aspectos positivos, a partir justamente do conceito de liberdade
que não pode ser considerado apenas abstratamente, mas também no seu exercício
concreto dentro dos processos históricos e socioculturais,
transformando-se assim em “libertação”.
Foi supondo tal linha que se moveu a segunda Instrução sobre
libertação cristã e libertação, proposta em 1986 pela Congregação vaticana.
Sob essa luz, a teologia não podia ser neutra, mas, no contexto específico,
devia se atualizar com uma solidariedade efetiva, pondo-se do lado dos
oprimidos e dos pobres. Não se deve ignorar que os eventos fundadores da fé
bíblica, como o êxodo de Israel da escravidão do Egito e o próprio anúncio e a
obra de Cristo, movem-se ao longo dessa trajetória.
A concepção de Gutiérrez se situa em uma perspectiva semelhante.
A Igreja deve se inserir como semente e fermento nos processos de libertação
integral da pessoa e dos povos, oferecendo a sua contribuição eficaz para que o
reino de Deus, erigido sobre a verdade e sobre a justiça, comece já agora a ser
edificado como primeira etapa da plenitude escatológica.
A teologia tem a função de elaborar uma reflexão crítica do
comportamento eclesial, reiterando alguns pilares, como a dignidade da pessoa,
a noção do Deus bíblico presente e ativo na história, a dimensão comunitária e
não intimista da fé cristã, a Palavra de Deus como como abstrato recipiente de
verdade, mas como dinâmica promoção de caridade e justiça, de modo a
criar o “homem novo” mais livre e na plenitude da sua pessoa.
A figura do teólogo peruano foi um ponto de referência para muitos,
também pelo rigor e pelo calor de seu pensamento, que foi capaz de evitar
certos desvios sociopolíticos, mas sem adoçar a incidência concreta da sua
visão. Ela se baseia, de fato, em uma liberação “integral”, porque a pessoa
humana é compacta e unitária, e, portanto, a teologia exige estar sempre
encarnada e contextualizada. Assim, o horizonte se ampliou nas suas obras
posteriores, envolvendo temas como as minorias, a vida, a dimensão mística, a
sexualidade, a educação e a cultura. Embora agora menos relevante, precisamente
por causa de um contexto sociocultural e político diferente, a reflexão de Gutiérrez
continua sendo um ponto nodal ainda vivo na teologia e na pastoral, como atesta o magistério do
Papa Francisco.
Porém, não se deve esquecer que, precisamente na América Latina,
está se alargando o manto de uma concepção religiosa (considerá-la como
“teologia” é excessivo) antitética. É a chamada “teologia da prosperidade”
de matriz neoliberal e conservadora. Ela parte de uma afirmação
antigo-testamentária, criticada, aliás, pelo próprio Jesus (leia-se João
9, 1-3), segundo a qual ao delito corresponde um castigo, a um sofrimento, uma
culpa, a uma riqueza, a bênção divina que endossa a obra do beneficiado.
Então, identifica-se na saúde, no bem-estar, no sucesso
econômico-social, na “prosperidade”, justamente, a bênção ou a aprovação de
Deus. Pobreza, doença, miséria, infelicidade, em vez disso, sinalizariam o
juízo e a maldição divina. Essa justificação mecânica do bem e do mal, que está
nos antípodas da leitura “liberacionista”, tem atualmente um grande sucesso em
muitos grupos religiosos sul-americanos, sobretudo de natureza
pentecostal-carismática ou em novas “Igrejas” evangélicas, que têm um forte
impacto sobre a população marginal, como força ilusória, e sobre a própria vida
política (por exemplo, no Brasil, é o caso de muitos partidários de Bolsonaro
e do prefeito do Rio de Janeiro, chefe de uma nova “Igreja”).
-------------
*Prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado em Il
Sole 24 Ore, 19-05-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário