Lya Luft*
Alguém joga xadrez com minha vida,
alguém me borda do avesso, alguém maneja os cordéis. Mordo devagar o
fruto da minha inquietação. Alguém me inventa e desinventa como quer:
talvez seja esta a minha condição. Bastaria um momento de silêncio para
eu ser feliz: mas do fundo do palco uma voz me chama. Serás tu, amor, ou
é a Morte, apenas, que reclama?
Nada entendo de signos: se digo flor é flor, se digo
água é água. (Mas pode ser disfarce de um segredo.) Se não podem sentir,
não torçam a árvore-de-coral do meu silêncio: deixem que eu represente
meu papel. Não me queiram prender como a um inseto no alfinete da
interpretação: se não me podem amar, me esqueçam.
Sou uma mulher sozinha num palco, e já me pesa demais
todo esse ofício. Basta que a torturada vida das palavras deite seu fogo
ou mel na folha inerte, num texto qualquer com o meu nome embaixo.
Quando me mataram, meu lado não verteu água nem sangue:
eu me verti de mim por essa fenda, escorri para a terra, debaixo do
gelo, ausente. (Alguém sabia: ela está ali, e isso era a tua voz na
noite.)
Se houver um tempo de retorno, eu volto. Subirei
empurrando a alma com meu sangue, por labirintos e paradoxos, até
inundar novamente o coração. (Terei o mesmo ardor de antigamente?)
E se me quiserem amar, terá de ser agora: depois,
estarei cansada. Minha vida foi feita de parceria com a morte: pertenço
um pouco a cada uma, para mim sobrou quase nada. Ponho a máscara do dia,
um rosto cômodo e fixo: assim garanto a minha sobrevida.
(Se me quiserem amar, terá de ser hoje: amanhã, estarei mudada.)
Abro a gaveta e salta uma palavra: dança sedutora sobre
o meu cansaço, veste-se de indefinições, retorce-se no labirinto das
ambiguidades.
Tento uma geometria que a contenha no espaço entre dois
silêncios quaisquer. Mas ela inventa o que faço: peso de fruta no sono
da semente, assiste à minha luta, belo enigma. Eu, mediação
incompetente.
Estes são os meus objetos. Este é o meu rosto: uns
olhos que, de procurar demais, olham só para dentro. E se tudo desemboca
na morte, esse é o meu destino. É para lá que vou, esperança e
protesto, segurando o candelabro dos amores que me iluminaram na vida.
(Resistirão, singularmente, ao meu último sopro?)
Com as perdas só há um jeito: perdê-las. Com os ganhos,
o proveito é saborear cada um como uma fruta boa da estação. Mais nada.
A vida corre à frente dos relógios. O ritmo das águas indica o roteiro e
me oferece um papel: abrir o coração como uma vela ao vento, ou pagar
até o fim as contas já vencidas.
(Esta é uma brincadeira com quem diz não gostar de poesia, não entender poesia: são antigos poemas meus postos em prosa.)
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* Escritora
Fonte: https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=8fda523f6ce946b8a7fb2f5ca9a39831
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