“O meu anjo irá adiante de ti e te
levará aos amoreus, aos heteus, aos ferezeus, aos cananeus, aos heveus e
aos jebuseus, e eu os exterminarei. Não adorarás os seus deuses, nem os
servirás; não farás o que eles fazem, mas destruirás os seus deuses e
quebrarás as suas colunas”.
Êxodo, 23, Bíblia de Jerusalém, Edições Paulinas, São Paulo, p.140.
Êxodo, 23, Bíblia de Jerusalém, Edições Paulinas, São Paulo, p.140.
Na segunda década do século XVI, o
humanista cristão Erasmo de Roterdã sustentou um famoso debate teológico
com Martim Lutero, sobre a “regra da fé”, ou seja, sobre critério de
verdade no conhecimento religioso. Essa batalha não teve um vencedor,
mas ajudou a clarificar a posição revolucionária de Lutero, que rejeitou
a autoridade do Papa e dos Concílios, e defendeu a tese de que todo
cristão deveria julgar por si mesmo, o que fosse certo e o fosse errado
no campo da fé. Para Lutero, como para Calvino, a evidência última da
verdade religiosa era a “persuasão” de cada um dos leitores das
Escrituras, e esta “persuasão” era concedida aos homens pela “revelação”
do Espírito Santo.
Contra este argumento de Lutero, Erasmo
levantou uma aporia fundamental: se aceitássemos o argumento de Lutero,
como poderíamos decidir entre duas leituras e interpretações diferentes
de algumas passagens mais obscuras dos textos sagrados? Ou seja, como se
poderia escapar da circularidade do raciocínio de Lutero, que
considerava que o critério da verdade religiosa era a “persuasão
interior” do cristão e ao mesmo tempo dizia que esta mesma “persuasão”
só poderia ser garantida pela “revelação divina”. Uma “revelação”
pessoal e intransferível, que não tem como ser confrontada com outra
“revelação” igual e contrária, que não seja através do uso do poder e da
força capaz de definir e impor o que seja certo e o que seja errado, o
que seja a ortodoxia, e o que seja a heresia.
O primeiro cristão queimado na fogueira,
acusado de heresia, foi um espanhol chamado Prisciliano, condenado e
morto no ano de 385, poucos anos antes que Santo Agostinho revisasse a
doutrina pacifista dos primeiros cristãos e defendesse o direito ao uso
da violência e à “guerra santa”, sempre que fosse contra os infiéis. Uma
tese que foi radicalizada por São Bernardo de Claraval, doutor da
Igreja Católica que cunhou o neologismo “malecídio” – no ano de 1128 –
para designar e justificar o assassinato cristão de hereges, pagãos e
infiéis de todo tipo – doutrina aceita e praticada durante toda a Idade
Média.
Do lado protestante, o primeiro herege
colocado na fogueira foi o cientista Miguel Servet, condenado e queimado
pelos calvinistas do Conselho de Genebra no ano de 1553. Antes disso,
entretanto, em 1525, Lutero já havia apoiado pessoalmente o massacre de
100 mil camponeses alemães que haviam se revoltado contra a nobreza e o
clero católico, inspirados pelas próprias ideias de Lutero. A partir
daí, a violência e a crueldade entre as seitas cristãs foi cada vez
maior, e a divergência entre Erasmo e Lutero se transformou na força
propulsora de uma guerra entre católicos e protestantes que durou mais
de cem anos – de 1524 a 1648 –, a despeito de católicos e protestantes
participarem igualmente do genocídio religioso dos povos indígenas da
América. Só depois da Paz de Westphalia, assinada em 1648, é que essa
ira santa contra os hereges foi domesticada, e a luta entre as religiões
perdeu sua centralidade política dentro da Europa.
Durante os 350 anos seguintes, as
religiões foram afastadas do comando dos Estados europeus e de suas
decisões de guerra e paz. Nas últimas décadas, entretanto, em particular
depois do fim da Guerra Fria, vem-se assistindo por todos os lados o
renascimento de um fanatismo religioso associado a forças políticas de
extrema-direita. Tudo indica que essa onda começou nos EUA, na década de
1980, sob a liderança de seitas evangélicas e pentecostais, mas
contando também com o apoio de setores cada mais extensos da Igreja
Católica. Muitos sociólogos atribuem esta ressurgência à crise ou à
morte das grandes utopias europeias dos séculos XIX e XX, e ao
crescimento do medo e da insegurança de sociedades ameaçadas por um
futuro incerto e imprevisível. Mas seja qual for a causa, a verdade é
que este fenômeno adquiriu uma nova dimensão com a eleição de Donald
Trump, em 2016, apoiado por uma grande coalizão de forças religiosas e
de extrema-direita que acabaram se impondo dentro Partido Republicano e
vencendo as eleições. E houve um novo salto nesse processo, no momento
em que essas forças religiosas assumiram o comando da política externa
dos EUA, no início de 2018, com a nomeação de Mike Pompeo e John Bolton,
como secretário de Estado e como conselheiro de Segurança da
Presidência da República, respectivamente, colocando-se ao lado de Mike
Pence, o vice-presidente, e de James Mattis, o secretário de Defesa,
para formar um dos grupos mais conservadores e belicistas que já
comandou a política externa dos EUA, desde a II Guerra Mundial. Todos
discípulos de Dick Cheney, e todos firmemente convencidos de que os EUA
foram o “povo escolhido” por Deus para salvar a civilização
judaico-cristã de seu declínio no século XXI.
Logo depois da posse de M. Pompeo e J.
Bolton, no início de 2018, os EUA anunciaram o início de sua “guerra
comercial” com a China, e sua saída do Acordo Nuclear com o Irã, que
havia sido assinado em 2015, o ICPOA. Anunciaram também, logo em
seguida, uma série de sanções com o objetivo de estrangular
progressivamente a economia iraniana. Hoje, os EUA bombardeiam quase
diariamente a população de quatro países, pelo menos: Afeganistão,
Somália, Síria e Iêmen, e sustentam, ao mesmo tempo, uma escalada global
de sanções comerciais e financeiras, de ameaças e cercos militares, e
de agressões retóricas contra Rússia, China, Coreia do Norte, Turquia,
Venezuela, Cuba, Nicarágua, e contra a própria União Europeia –
Alemanha, em particular. E agora de novo, em janeiro de 2019, os EUA
anunciaram seu abandono do “Tratado de Forças Nucleares de Alcance
Intermediário”, assinado com a URSS em 1987, e depois aceleraram e
multiplicaram suas intervenções ao redor do mundo.
O que mais chama a atenção nessa gigantesca
demonstração de poder global é que, desde a posse dos “homens da
Bíblia”, o uso agressivo de ameaças e intervenções em todas as latitudes
do mundo não venha acompanhado de nenhum tipo de discurso ético ou de
algum tipo de projeto comum para a humanidade. O único que se vê e se
ouve são ordens, ameaças e exigências de submissão e obediência
incondicional aos desígnios norte-americanos. [1] Um
quadro aparente de loucura ou irracionalidade que pareceria incompatível
com o que muitos analistas vêm chamando de acelerado processo de
“cristianização da política externa norte-americana”. [2]
Como conciliar estas duas tendências tão contraditórias? Aparentemente,
através da visão milenarista compartilhada pelos novos estrategos
bíblicos da política externa dos EUA que estão convencidos de que Donald
Trump é o homem que foi enviado para comandar as forças do Bem contra o
Mal, na batalha apocalíptica do Armagedon, que segundo a profecia
bíblica, deverá ser vencida pelas forças do bem e portanto, pelos
Estados Unidos da América.
Essa visão evangélica e pentecostal é
compartilhada por setores católicos de extrema-direita, que hoje são
liderados pelo cardeal norte-americano Raymond Burke, associado e
financiado por Steve Bannon, o antigo assessor de Trump que hoje está
envolvido na luta contra o pacifismo e o ecumenismo religioso de Jorge
Bergoglio, o Papa Francisco. [3] Do ponto de vista
desse crescente fanatismo e belicismo religioso, fica cada vez menos
absurda a convicção de muitos analistas internacionais sérios, que hoje
estão plenamente convencidos de que os atentados de 11 de setembro de
2011 teriam sido de fato um “autoatentado terceirizado” e construído com
o objetivo de mobilizar as energias nacionais americanas para uma
guerra religiosa secular, contra o Islã e contra todas as heresias que
se anunciam no horizonte.
Sem entrar nessa discussão, a verdade é que
é que, do ponto de vista funcional, os atentados de 2001 permitiram a
Dick Cheney arrancar do Congresso as duas medidas que ele já vinha
patrocinando desde o tempo em que comandou a Guerra do Golfo, como
secretário de Defesa dos EUA: o direito de o Executivo Americano
declarar guerra sem autorização do Congresso Nacional, em caso de
“ameaça terrorista”; e o direito do Banco Central e do governo americano
de acessarem e controlarem todas as operações financeiras mundiais que
passem pelo sistema bancário americano, pelo Banco da Inglaterra e pelo
próprio sistema bancário da União Europeia. Tudo isto pode ser apenas
uma especulação teológica ou conspiratória, mas não há dúvida de que
essas teses e interpretações religiosas conseguem dar algum sentido a
esse conjunto de ataques enfurecidos dos EUA contra tudo e contra todos
que ameacem sua lealdade judaica e estejam no caminho de seu projeto de
poder global.
Mas existe outro lado deste assunto que não
é devidamente analisado: o fato de que outros povos e culturas possam
não compartilhar desses mesmos valores, nem considerar que estes mesmos
textos bíblicos sejam sagrados ou que suas profecias tenham algum
fundamento real – o que nos remete de volta ao debate entre Erasmo e
Lutero. A diferença, neste caso, é que o “outro lado” não é um indivíduo
nem é um cristão necessariamente, e pode até considerar que todas essas
previsões do Apocalipse são uma rematada loucura. Além disso, no campo
internacional, este “outro” é sempre um Estado nacional, e pode ser um
Estado que tenha as mesmas pretensões globais dos EUA, e que luta por
suas crenças e valores com a mesma intensidade que os norte-americanos.
Por isso mesmo, até agora, depois de um ano e meio de “gritos e
ameaças”, os “homens da Bíblia”, que estão no comando da política
externa norte-americana, não tenham obtido nenhuma vitória
significativa, nem mesmo alguma rendição da parte de seus concorrentes e
adversários mais importantes, que vêm sendo assediados na Ásia, no
Oriente Médio e na América Latina.
Desse ponto de vista, com toda certeza, uma
das poucas intervenções diretas bem sucedidas ( pelo menos no curto
prazo), desse grupo de herdeiros de Dick Cheney tenha sido mesmo a
“operação Bolsonaro”, que ajudou a instalar no governo brasileiro uma
coalizão política montada às pressas e liderada por um grupo de pessoas
muito toscas e, ao mesmo tempo, extremamente violentas e religiosas. Uma
espécie de simulacro de baixo nível de qualidade, da própria coalizão
que elegeu Trump e, mais especificamente, do grupo que assumiu o comando
de sua política externa e emplacou um de seus discípulos (ou
seminaristas?), no Ministério das Relações Exteriores do Brasil, com a
função explícita e imediata de apoiar e participar da invasão militar da
Venezuela já no início de 2019. Basta lembrar o papel patético e
solitário do chanceler brasileiro, na fronteira com a Venezuela, ali
postado como se fosse o comandante de um exército que não existia, e de
uma invasão que não aconteceu. Faltou Mike Pompeo explicar ao seu pupilo
que “povos escolhidos” só existem dois: Israel, que não teria maior
importância se não fosse o Estado judeu por excelência, e portanto, na
prática, um Estado religioso que foi transformado numa máquina militar
de ocupação, com poder atômico; [4] e os Estados
Unidos, que já foram “fundados“ pelos puritanos, uma seita de origem
calvinista radical, e que se tornou uma grande potência, extremamente
religiosa, que expandiu e projetou seu poder de forma contínua desde o
século XIX, sempre orientada por seus interesses estratégicos nacionais.
Além disso, Pompeo deveria ter-lhe
explicado que no caso de Israel e dos Estados Unido, o discurso
religioso da “salvação judaico-cristã” coincide com e instrumentaliza
suas próprias estratégias de defesa e a projeção mundial de seus
interesses militares, políticos e econômicos. Já no caso do Brasil, a
luta pela civilização judaico-cristã não nos agrega nada, nem coincide
ou ajuda a promover os interesses econômicos e estratégicos de um país
que é multicultural, multirracial e extremamente heterogêneo do ponto de
vista religioso, e desigual, do ponto de vista social. Por isso, essa
nova submissão da política externa brasileira aos versículos da Bíblia
admirados pelo presidente e seus filhos, e pelo próprio ministro,
limitam inevitavelmente o escopo das alianças internacionais do país a
um número muito pequeno e inexpressivo de países sem grande projeção,
como é o caso, por exemplo, de Chile, Paraguai, Hungria, Polônia, ou
mesmo Israel, fora do Oriente Médio..
A artificialidade do projeto americano
transposto para o Brasil fica ainda mais nítida quando se analisa o
papel da violência e da agressividade dos novos governantes brasileiros,
que tentam imitar o modelo praticado sobretudo por Donald Trump e John
Bolton. Esta violência primitiva do núcleo governante brasileiro
transforma toda e qualquer divergência política e democrática numa
heresia, e tenta eliminar e destruir como herege todos os seus
opositores. Uma prática que já trouxe para o Brasil um tipo de divisão e
enfrentamento religioso que não será fácil de superar ou esquecer por
muitos e muitos anos, talvez décadas.
No caso do governo Trump, a agressão
internacional, generalizada e destrutiva, encontra do outro lado da
fronteira sociedades, culturas e civilizações sólidas e muitas vezes
indiferentes com relação às fantasias apocalípticas dos
norte-americanos. Mas no caso da agressividade bolsonarista e de sua
obsessão doentia pelas armas, o que existe é uma sociedade que se sente
atacada e ameaçada por seus próprios governantes, que não são capazes de
propor para os brasileiros nenhum tipo de horizonte futuro mais
pacífico, igualitário e justo. Pelo contrário, o que este núcleo
religioso e fundamentalista propõe é uma espécie de distopia da
violência, o prazer da violência pela violência e o desejo psicopático
doentio de destruir a tudo e a todos, sem propor nada em troca.
Hoje, a palavra “bolsonarismo” é usada em
todo mundo, como sinônimo de violência irracional e destruição
psicopática, feita em nome de versículos bíblicos, mas sem nenhum
sentido ético e humanitário. Já é utilizada também como um sinal
vermelho de advertência sobre o limite a que pode chegar a humanidade
quando perde o sentido ético da política e da história, e se joga contra
tudo e contra todos, movida pelo ódio, medo e paranoia, transformando a
religião num instrumento de vingança e destruição da possibilidade de
convivência entre os homens.
Neste sentido, e de alguma forma, o
“bolsonarismo” está fazendo com que as pessoas reflitam, no Brasil e em
todo mundo, sobre as consequências dramáticas do paradoxo de Erasmo e
Lutero: perguntando-se como é que seitas e religiões que pregam a paz e o
amor entre os homens podem ao mesmo tempo promover o ódio a violência e
a guerra sem fim contra “hereges” e “heresias” que elas mesmas vão
inventando, separando amigos e inimigos, fiéis e infiéis, com base em
“revelações” e “persuasões individuais” que não se sustentam em nenhum
tipo de evidência ou argumentação racional, mas que acabam reforçando a
unidade e a identidade destas seitas através do próprio exercício da
violência.
--------------------
(*) Cientista Político, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Notas
[1] Fiori, J.L. “Babel syndorme and the new security
doctrine of the United States”, Journal of Humanitaruan Affairs, 1(1),
April 2019, pp 42-45, www.manchesterophesive.com
[2] Joyce, K. “The Chistianization of the U.S, Foreign Policy:”, The New Republic, March 25, 2019
[3] Martel, F., “No Armário do Vaticano: Poder, Hipocresia e Homosexualidade”, < Porto Editora, Porto, 2019, P:57
[4] Fiori, J.L, “A visão sagrada de Israel”, Jornal Valor Econô mico, 28 de maio de 2009
Fonte: https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2019/05/religiao-violencia-e-loucura-por-jose-luis-fiori/ 16/05/2019
Nenhum comentário:
Postar um comentário