Hamilton Carvalho*
Thanos, como muitos leitores sabem, é o poderosíssimo inimigo presente nos dois últimos filmes da série Vingadores
que, com um estalar de dedos, é capaz de exterminar metade dos seres
vivos do universo. Nos filmes, vencê-lo requer o desenvolvimento de
competências coletivas inéditas e bastante arriscadas.
O século 21 tem tudo para ser o século Thanos, o mais disruptivo da
história, trazendo desafios inéditos para o Brasil e para o mundo como
um todo.
No nosso caso específico, há tendências claras, que deverão golpear o
Estado brasileiro de uma forma contundente, tendendo a solapar seus
recursos e a elevar o descontentamento social.
A primeira delas é a erosão de bases de incidência de tributos. Há
mudanças estruturais em curso, como o crescimento da economia digital e
de serviços. Há também o efeito das nossas conhecidas anomalias, como a
guerra fiscal.
Por sua vez, a flexibilização das relações de trabalho, que inclui a
expansão do trabalho por aplicativos e distorções como a pejotização de
pessoas físicas, deve dificultar a obtenção de recursos para financiar
os gastos com aposentadorias, que ainda serão muito pesados se
considerarmos a provável aprovação de uma reforma meia-sola da
previdência.
Do lado das despesas, o envelhecimento da população e as enormes
chagas sociais ainda existentes devem aumentar a pressão por mais
gastos, que se somará às pressões por meias-entradas que estão
organicamente instaladas no seio do Estado brasileiro.
É um país em que empresários querem ter benefícios de funcionários públicos, como destacou em entrevista o secretário-executivo da Fazenda, Marcelo Guaranys. Anualmente, centenas de bilhões em renúncias fiscais jorram das tetas do Estado brasileiro.
Esse modelo, porém, chegou a seu limite. Não se consegue mais
aumentar a carga tributária para atender aos inúmeros grupos caçadores
de renda que sitiam o Estado. O país não consegue crescer porque, tendo
distribuído o bolo de forma errada, não tem mais fatias para dar a
convidados famintos, mas essenciais, como o investimento público e o
capital humano.
Além disso, nossas instituições políticas dificultam o consenso para
reformar peças importantes do quebra-cabeças da produtividade econômica –
do Judiciário aos tribunais de conta, do modelo atrasado de gestão
pública ao bizantino sistema tributário.
Soluções imperfeitas podem surgir para enfrentar essa crise, que já
está encomendada. Esse é, certamente, o cenário mais provável. Porém,
não podemos nos conformar com gambiarras. Precisamos ter coragem para
reformar o país e evitar cenários de falência e perda de legitimidade do
Estado. O florescimento de milícias no Rio de Janeiro é só uma amostra
do que pode surgir adiante.
Rinocerontes cinzas
O cenário que contempla um Estado brasileiro disfuncional é
preocupante porque teremos de lidar com o lado Thanos dos desafios
mundiais. Isso inclui a tragédia climática que se avizinha, o
crescimento de tensões geopolíticas, os desafios da economia digital,
que concentra valiosos dados nas mãos de poucas empresas, crises
cíclicas da economia internacional e, finalmente, choques entre visões
de mundo inspiradas pelas religiões globais.
É impossível prever o futuro, mas é possível se preparar para ele. A
tendência do ser humano, por outro lado, é pensar no futuro como uma
mera e confortável extrapolação do presente. O desconhecido é percebido
como improvável. Como prédios que envelhecem e cristalizam antigas
soluções de moradia, nossos modelos mentais são tipicamente preparados
para resolver os problemas do passado.
Até por conveniência, não enxergamos o mundo de uma forma integrada e
costumamos fatiar os diversos problemas complexos – clima, pobreza,
violência, corrupção, sonegação, trânsito – de uma forma artificial. Os
processos de diagnóstico também são dificultados porque as informações
que recebemos são necessariamente parciais e filtradas por culturas
organizacionais e profissionais.
É quase impossível, por exemplo, encontrar o problema climático em
textos produzidos pelos principais economistas do país. É como se não
fizesse parte do conjunto de problemas com que teremos de lidar nos
próximos anos.
Vivemos em mundo de bolhas, sem dúvida. É por isso que na literatura
de construção de cenários busca-se identificar não apenas tendências,
mas também sinais fracos de mudanças. Isso se consegue, entre outros
meios, pela colaboração de profissionais com formações diversas, porque o
que é sinal fraco para um é tendência para outro. É por isso também que
é importante estruturar o que se chama de reparos cognitivos para lidar com os diversos vieses individuais e coletivos.
O século 21 certamente testemunhará cisnes negros, isto é, eventos
absolutamente imprevisíveis. Todavia, tudo indica que será um século
marcado pelos rinocerontes cinzas – desafios que estão à nossa
frente, misturados à paisagem, mas que não enxergamos porque não há
reparos cognitivos costurados no desenho das nossas instituições
políticas e sociais.
Essa manada de rinocerontes está conectada de forma inédita na
história da humanidade e exigirá uma capacidade de resposta das
sociedades também inédita. Temos de nos preparar ou seremos atropelados.
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* Hamilton Carvalho, 47 anos, estuda comportamento humano e sistemas
sociais complexos. É doutor em Administração pela FEA-USP, mestre em
Administração pela mesma instituição, membro da System Dynamics Society e
da Behavioral Science & Policy Association. Escreve para o Poder360
aos sábados.
Fonte: https://www.poder360.com.br/opiniao/brasil/este-e-o-seculo-de-thanos-escreve-hamilton-carvalho/
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