Não podemos tolerar a instrumentalização da fé em nome de projetos políticos escusos e violentos
Em 27 de abril participei, no Rio de Janeiro, de uma roda de
conversa organizada pelo grupo evangélico Fé e Política: Reflexões,
sobre Religião e Violência, coordenado pelos pastores batistas Irênio
Chaves e João Batista Pinheiro. Momento especial de aprendizado com
pessoas comprometidas e preocupadas com o momento de crise que vivemos
na vida política do Brasil. Na mesa, fui acompanhada pela pastora
luterana Lusmarina Garcia e pelo pastor batista Clemir Fernandes.
Um elemento comum permeou o diálogo: a noção de que o
conectivo “e” diz respeito ao fato de que as religiões, embora
promotoras da paz, praticam e motivam violência e também sofrem com ela.
Isto porque, como parte da natureza humana, há muitas formas de
violência.
A vida é afetada constantemente por assassinatos, agressões físicas,
guerras, genocídios e massacres e também pela violência praticada no
cotidiano, normalizada, naturalizada em práticas de relacionamento
humano. Ao mesmo tempo em que há grupos religiosos que promovem estas
formas de violência por meio de discursos exclusivistas, justificados
por uma única verdade, há outros que sofrem com a intolerância
resultante deste mesmo tipo de postura.
Esta é uma contradição significativa porque todas as religiões são
embasadas em doutrinas que têm um discurso muito significativo de paz.
Paz no mundo e paz entre elas mesmas. No entanto, a força da cultura de
violência relacionada aos contextos nos quais os grupos religiosos estão
inseridos e a dimensão humana da intolerância e do ódio levam à
sacralização de práticas violentas (atribuição da violência à vontade de
Deus) e à instrumentalização das religiões para fins violentos
(especialmente o uso político da dimensão religiosa).
Estas sacralização e instrumentalização orientam a forma como se lê
os livros religiosos. As narrativas “banhadas de sangue”, que
representam a forma humana de interpretar religiosamente certos
episódios, lidas de forma descontextualizada, acabam sendo utilizadas
para justificar práticas violentas no presente provocadas ou apoiadas
por grupos políticos ou religiosos.
Por isso, o noticiário está inundado de histórias de assassinatos,
guerras e genocídios em nome de Deus. Há casos como a invasão do Iraque
pelos Estados Unidos ou os ataques a tiros a igrejas negras por cristãos
brancos, os vários atentados terroristas de grupos radicais islâmicos, como o que ocorreu recentemente no Sri Lanka, a eliminação da população muçulmana em Myanmar por budistas, o genocídio palestino por judeus…
Vários destes casos estão relacionados à intolerância religiosa, a exemplo do que acontece no Brasil com as religiões de terreiros, que sofrem com depredações e agressões físicas.
E há ainda os casos invisíveis, aqueles da violência naturalizada, de
forma simbólica, no cotidiano, sustentados, boa parte das vezes, por
grupos religiosos. Esta é a forma que mais afeta as pessoas pois
relaciona-se à exigência religiosa de que elas vivam dentro de um molde,
na base do sacrifício de ideias, do corpo, dos projetos de vida. Violência que passa pela imposição de culpas, pelo ato de subjugar.
As mulheres são as que mais sofrem esta violência simbólica pelas religiões,
quando delas se espera submissão aos homens mais fortes (pais, maridos,
irmãos e demais chefes de família, líderes religiosos), perdendo o
controle sobre os seus próprios corpos.
Entretanto, também são fonte de intensa violência os discursos
religiosos que pregam o sacrifício financeiro, a capacidade de
negociação com o sagrado para realização de projetos pessoais e a
conquista de poder político para que as religiões comandem.
O mesmo se dá com a violência da intolerância religiosa, que também
ocorre no nível simbólico com as repressões, os silenciamentos, as
demissões, as perseguições a teólogos e teólogas e outras pessoas
religiosas que encontram caminhos para romper com o padrão de “verdade
única e imposta” e defendem o pluralismo e a liberdade. Estas violências
ocorrem em diversas congregações e instituições religiosas.
Por sinal, o evento do grupo Fé e Política: Reflexões ocorreu
justamente no dia posterior à notícia de que a jovem evangélica Camila
Mantovani foi forçada a deixar o país depois de meses de ameaças à sua
integridade física, por milícias que atuam no Grande Rio. Camila havia
sido recentemente citada em artigo da CartaCapital sobre teólogas e ativistas evangélicas que discutem o machismo.
O exílio forçoso de Camila se soma aos de outras lideranças de diferentes frentes que estão sendo forçadas a deixar o País
para preservarem suas vidas e de suas famílias, pelo simples fato de
defenderem causas que ainda não são consensuadas. Estes casos são um
retrato do momento político do Brasil e de formas de violência
incentivadas e sustentadas pelos próprios governos.
Ao final do evento, o grupo, majoritariamente de evangélicos,
afirmou sua fé no Cristo da Paz, referência maior para superação de todo
tipo de violência, tendo ele mesmo sido morto por grupos
político-religiosos de sua época. É no Cristo da Paz e na sua graça
infinita, baseada na tolerância e na liberdade, que as ações de
enfrentamento da violência devem se dar, com a denúncia de toda
instrumentalização da fé em nome de projetos políticos escusos e
violentos, como o que presenciamos neste momento em nosso País.
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Reportagem Por Magali do Nascimento Cunha
Fonte: https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/as-muitas-faces-da-relacao-entre-religiao-e-violencia/?utm_campaign=newsletter_rd_-_02052019&utm_medium=email&utm_source=RD+Station
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