Para Juremir
A rádio Guaíba me perguntou sobre esse “marxismo cultural” que, como um
canibal, devora consciências. Ele, diz a vulgata bolsonarista, distorce
realidades tão claras como o evangelismo cristão ou um conservadorismo
radical, igualmente sectário.
Um ataque de pusilanimidade me fez driblar a entrevista. Mas não consigo fazer o mesmo com minha consciência.
Eis o que penso.
*
O problema das Ciências Sociais é estudar coisas que todos
experimentam. Quem não tem opinião sobre sexualidade, religião,
política, pobreza e corrupção? Mas quantos buscam compreender tais
assunto com distanciamento?
As Ciências Sociais contrariam o
senso comum e investigam temas e assuntos proibidos. Um exemplo forte é a
sexualidade infantil estudada por Freud, um outro é a transição do
lucro como paixão escusa a investimento produtivo num universo de
multiplex interesses que, leiam Albert Hirschman, bloqueia despotismos.
Por outro lado, quem não pensa em transformar a vida dos pobres e
oprimidos, sobretudo num Brasil onde eles fazem parte da vida de cada
um de nós? Seja como ricaço ou miserável; cidadão comum ou celebridade
com o direito a escapar da terrível igualdade republicana? Quem não se
preocupa com o mínimo de bens e serviços obrigatórios para todos os
brasileiros?
*
O coração ideológico da consciência
política da minha geração, formada no final dos anos 50, foi o marxismo.
Um marxismo lido em traduções de edições russas censuradas. Lembro que
essa geração da guerra fria – condescendentemente chamada de “geração
Coca-Cola” – não falava apenas de “direita” e “esquerda”. Ela ia além,
classificando as pessoas como “conscientizadas” e “alienadas”.
Os
pais eram alienados, as mães – católicas e preocupadas com os pobres –
pré-conscientizadas. Fui contaminado por Karl Marx e pelo pouco falado
Friedrich Engels quando entrei na faculdade. Quem, aos 20 anos, não tem o
direito de deslumbrar-se com o Manifesto Comunista e vibrar com o fim
da opressão encontrando, de quebra, a chave mestra da História da
Humanidade?
Foi o protomarxismo mais evolucionista do que funcionalista (o Marx do 18 Brumário e no da Questão Judaica)
que me levou a perceber o Brasil que gravitava à minha volta. Brasil
que, como aprendiz de antropólogo do Museu Nacional, entrei em contato
quando vi o seu lado mais fundo e dramático – suas sociedades indígenas
que, mesmo com a tal “proteção oficial”, estavam sendo dizimadas,
enquanto os sertanejos reclamavam de injustiça.
Foi, pois, o
altruísmo contido no “comunismo” que me levou a essa identificação com
um Brasil a ser transformado. Não abandonei esse comunismo até hoje
entrelaçado ao meu amor pelo Brasil.
*
O que abandonei
foi a infantilidade dos radicalismos. Do “esquerdismo” nas suas versões
radicais e patologicamente malandras e populistas. Um posicionamento
cujo pendor acusatório e condescendente, ressentido e repleto de má-fé
(aos nossos tudo; aos inimigos o berro, a negação, a mentira e a
calúnia!), reproduz o autoritarismo fascistoide do regime militar. A
prova do pudim foi (como ocorre em todo lugar) a chegada ao poder, pois
nada é mais revelador do que o poder.
O esquerdismo irresponsável
produziu o contexto polarizado em que vivemos. Podem-se controlar
excessos, mas enjaular o “marxismo cultural”, cujo espírito marca toda
uma época, seria como tentar colocar de volta a noite na caixa de
Pandora. Do mesmo modo, não há como carimbar o liberalismo como um
paraíso de rentistas ladravazes. Basta pensar na filantropia e no
mercado com um equalizador de interesses pulverizados – esses produtores
de meritocracia coletivista. Por outro lado, o comunismo recria o
individualismo capitalista quando se reconhece o talento dos seus
líderes. Senão ninguém falava em Stalin, Lenin, Mao e Fidel.
O
que não pode ocorrer é a tentativa de eliminação suicida da esquerda
pela direita. Deveríamos ter aprendido que a democracia tanto como um
regime político e, acima de tudo, como um estilo de vida, precisa dos
dois lados que nela concordam em discordar. Diretas e esquerdas
perfeitas – que deixam saudade! – só acorrem nas ditaduras que,
lamentavelmente, conhecemos bem demais.
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* Antropólogo, conferencista, consultor, colunista de jornal e produtor brasileiro de TV e um pensador sociólogo . É Professor Titular de Antropologia Social do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Professor Emérito da Universidade de Notre Dame, ocupando a cátedra Reverendo Edmund P. Joyce.
Fonte: https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,sobre-o-marxismo-cultural,70002828622 15/05/2019
Imagem da Internet
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