terça-feira, 10 de abril de 2012

Eco inverte o discurso em ‘O cemitério de Praga

                 

Escritor italiano troca as tramas mirabolantes de ficção por conspirações da vida real vistas pelos olhos de um personagem delirante. Por Solange Noronha

Pode uma mentira contada muitas vezes transformar-se em verdade? A esta pergunta, Umberto Eco responde, em tom de romance picaresco, com “O cemitério de Praga”. Cheia de tramas conspiratórias contra jesuítas, maçons, judeus e qualquer grupo considerado uma ameaça por outro (ou outros), a história passa da Itália à França nos estertores do século XIX, e conta a História, com “H” maiúsculo, alternando os diários de um capitão e um abade — duas faces da mesma moeda — e interferências de um “narrador isento”.
Exímio falsário, o fictício Simone Simonini está (ou acredita estar) no centro das inúmeras tramoias verdadeiras relatadas ao longo do livro, entre elas as muitas versões criadas e difundidas para o que se conhece como “Os protocolos dos sábios do Sião”. Como explica o autor, alguns personagens reúnem características de mais de uma pessoa que de fato existiu — e o próprio protagonista não está assim tão longe de ser real, podendo até mesmo continuar entre nós (atire a primeira pedra quem tem idade para se interessar por Umberto Eco e desconhece notícias de corrupção, preconceitos e fraudes à sua volta).

Rosário de ódio
Ao se apresentar ao leitor, Simonini desfia um rosário de ódios. Desde a infância, aprendeu com o avô a odiar os judeus. Mas não parou aí: odeia padres (em especial os jesuítas), os alemães e os austríacos (“dá no mesmo”, diz), os maçons, as mulheres, os franceses, os italianos, os armênios e os turcos… A lista é longa e as palavras usadas para descrever cada um de seus alvos, nada lisonjeiras. Só a comida merece a consideração (ou “o amor”, como ele define) desse homem que passa com desdém por acontecimentos históricos — ao mesmo tempo em que se gaba de contribuir para os mesmos com os documentos que forja — e por personagens idem — definidos, todos, da forma mais pejorativa possível.
O desprezo generalizado de Simonini aos poucos se particulariza. Depois de destruir o mítico Garibaldi, ele segue destilando fel e atirando farpas em quem mais encontra Itália e França afora, inclusive intelectuais e pintores “medíocres” como Proust, Zola, Monet e que tais.

Atenção ao ler
Lendo com atenção, nota-se que escritores — a começar por Alexandre Dumas — são mais mencionados em “O cemitério de Praga” do que outros artistas. Quem os conhece também perceberá elementos da maioria dos autores citados no romance, ilustrado à moda dos antigos folhetins.
Folhetim, aliás, é a palavra-chave para explicar essa trama que chegou a preocupar alguns setores que veem perigo e conspiração em cada esquina e se apressam a apontar dedos para quem ousa fugir do politicamente correto. Desconfie deles.
Perigosas são as pessoas sem o mínimo senso de humor e inimigas da cultura, incapazes de perceber a ironia de Eco — ou, pior, crentes na ignorância dos leitores, que julga incapacitados para pensar por conta própria. Como aqueles religiosos que cuidavam do saber, guardado a sete chaves na biblioteca do mosteiro de “O nome da rosa”.
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Por Solange Noronha
Fonte: http://opiniaoenoticia.com.br/opiniao/10/04/2012

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