Escritor italiano troca as tramas mirabolantes de ficção por conspirações da vida real vistas pelos olhos de um personagem delirante. Por Solange Noronha
Pode uma mentira contada muitas vezes transformar-se em verdade? A
esta pergunta, Umberto Eco responde, em tom de romance picaresco, com “O
cemitério de Praga”. Cheia de tramas conspiratórias contra jesuítas,
maçons, judeus e qualquer grupo considerado uma ameaça por outro (ou
outros), a história passa da Itália à França nos estertores do século
XIX, e conta a História, com “H” maiúsculo, alternando os diários de um
capitão e um abade — duas faces da mesma moeda — e interferências de um
“narrador isento”.
Exímio falsário, o fictício Simone Simonini está (ou acredita estar)
no centro das inúmeras tramoias verdadeiras relatadas ao longo do livro,
entre elas as muitas versões criadas e difundidas para o que se conhece
como “Os protocolos dos sábios do Sião”. Como explica o autor, alguns
personagens reúnem características de mais de uma pessoa que de fato
existiu — e o próprio protagonista não está assim tão longe de ser real,
podendo até mesmo continuar entre nós (atire a primeira pedra quem tem
idade para se interessar por Umberto Eco e desconhece notícias de
corrupção, preconceitos e fraudes à sua volta).
Rosário de ódio
Ao se apresentar ao leitor, Simonini desfia um rosário de ódios.
Desde a infância, aprendeu com o avô a odiar os judeus. Mas não parou
aí: odeia padres (em especial os jesuítas), os alemães e os austríacos
(“dá no mesmo”, diz), os maçons, as mulheres, os franceses, os
italianos, os armênios e os turcos… A lista é longa e as palavras usadas
para descrever cada um de seus alvos, nada lisonjeiras. Só a comida
merece a consideração (ou “o amor”, como ele define) desse homem que
passa com desdém por acontecimentos históricos — ao mesmo tempo em que
se gaba de contribuir para os mesmos com os documentos que forja — e por
personagens idem — definidos, todos, da forma mais pejorativa possível.
O desprezo generalizado de Simonini aos poucos se particulariza.
Depois de destruir o mítico Garibaldi, ele segue destilando fel e
atirando farpas em quem mais encontra Itália e França afora, inclusive
intelectuais e pintores “medíocres” como Proust, Zola, Monet e que tais.
Atenção ao ler
Lendo com atenção, nota-se que escritores — a começar por Alexandre
Dumas — são mais mencionados em “O cemitério de Praga” do que outros
artistas. Quem os conhece também perceberá elementos da maioria dos
autores citados no romance, ilustrado à moda dos antigos folhetins.
Folhetim, aliás, é a palavra-chave para explicar essa trama que
chegou a preocupar alguns setores que veem perigo e conspiração em cada
esquina e se apressam a apontar dedos para quem ousa fugir do
politicamente correto. Desconfie deles.
Perigosas são as pessoas sem o mínimo senso de humor e inimigas da
cultura, incapazes de perceber a ironia de Eco — ou, pior, crentes na
ignorância dos leitores, que julga incapacitados para pensar por conta
própria. Como aqueles religiosos que cuidavam do saber, guardado a sete
chaves na biblioteca do mosteiro de “O nome da rosa”.
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Por Solange Noronha
Fonte: http://opiniaoenoticia.com.br/opiniao/10/04/2012
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