Roy Wagner e a revolução nos modos de pensar
RESUMO Em entrevista a um time de antropólogos brasileiros, o
norte-americano Roy Wagner, autor de "A Invenção da Cultura" e crítico
da presunção à autossuficiência dos Estados Unidos, defende o humor como
forma de invenção e argumenta que, ao reverter causa e efeito, ele se
torna o conhecimento íntimo de todas as coisas.
EM AGOSTO DE 2011, seis universidades brasileiras receberam Roy
Wagner, autor de "A Invenção da Cultura", de 1975, publicado no Brasil
pela Cosac Naify em 2010.
O livro propôs uma verdadeira revolução nos modos de pensar e fazer
antropologia, pondo em questão, a partir de um olhar sobre os povos
melanésios, dualidades como natureza e cultura, universalismo e
relativismo, tradição e inovação, sujeito e objeto.
Entre os trabalhos que apresentou no Brasil estão um livro inédito, "The
Place of Invention", e uma reflexão sobre a obra do polêmico
antropólogo e escritor Carlos Castañeda (1925- 88), à qual vem dedicando
nos últimos anos um curso na Universidade de Virginia, Charlottesville,
onde ensina desde 1974.
Esta entrevista, concedida aos antropólogos Florencia Ferrari, Iracema
Dulley, Jamille Pinheiro, Luísa Valentini, Renato Sztutman e Stelio
Marras, oferece uma amostra da prosa do autor, um crítico da presunção à
autossuficiência dos EUA, país onde nasceu e se formou, mas também um
contador de histórias, fascinado pelas mais diferentes culturas e
práticas de conhecimento.
Toda a teoria de Wagner (que é tão dele como dos melanésios) pode ser
vista como um flerte com a poesia e com o humor. Afinal, como ele não
cansa de afirmar, a produção de significado no mundo é, como nesses
campos, um exercício incessante e insistente de metaforização, isto é,
invenção.
Como resume a questão central de "A Invenção da Cultura", a dialética
cultural entre convenção e invenção, memória e improvisação?
A memória, é claro, é uma parte vital e básica de nós. Não
conseguiríamos viver sem ela. Mas a cultura não se resume a ela, pois
contém um outro lado, que é a invenção. Estou usando o termo "invenção"
como uma palavra mágica.
A invenção é a metáfora. Existe uma espécie de diálogo ou interação
entre a memória e a invenção. Temos que lidar com a vida em família, as
leis do direito de família ou o que algumas pessoas nos EUA entendem por
valores familiares [risos], mas também com a Constituição dos EUA, a
Constituição brasileira ou a forma de governo brasileira.
Os dois são inovações do Novo Mundo em relação à cultura europeia.
Nossas revoluções estabeleceram um novo tipo de sociedade, inventando e
modificando as convenções de uma vez por todas, definindo parte do que
constitui o hemisfério ocidental.
É importante prestar atenção ao modo como as civilizações americanas
pensam: elas pensam de modo diferente das civilizações do Velho Mundo.
Em sua obra há uma associação entre perspectivismo e humor. Qual é o lugar do humor no seu trabalho?
O humor é uma forma de invenção. É um exercício de ver a partir de uma
perspectiva e então se deslocar para outra repentinamente, com algo um
pouco confuso. Uma piada inventa; ela usa a perspectiva para inventar. É
preciso enfatizar isso.
O senso de humor é algo que pessoas têm, como os índios que conheci na
Amazônia, e que não percebemos facilmente. O que eles fazem é integrar a
alteração de perspectivas que existe em uma piada à antropologia de uma
maneira bastante sorrateira e sutil. E, em muitos casos, isso se faz
com tal sutileza que acabamos achando que estamos lidando com fatos
antropológicos.
Existe um tipo de ironia ou senso de humor na base de todas as culturas.
Ao morar em um país, descobrimos onde reside esse humor. O que estou
tentando dizer ao afirmar isso sobre o humor é que, em primeiro lugar, o
objetivo do livro "A Invenção da Cultura" foi fazer com que as pessoas
usassem a ideia da invenção como uma coisa em si mesma, como uma maneira
de pensar sobre as coisas.
Estamos acostumados a pensar no humor como forma de entretenimento, não
como forma de alteração de perspectivas, de alteração sujeito-objeto.
Fomos treinados a pensar na cultura como um conjunto de memórias que
deve ser exaltado. Procuramos o conhecimento onde ele fica armazenado,
na biblioteca, no computador. São memórias artificiais.
"Wittgenstein provavelmente
diria
que a lógica é o humor; a lógica não é causa e efeito.
Ele
desprezava totalmente a ideia de causa e efeito.
Os Estados Unidos
parecem estar presos a um tipo de mentalidade assim. É um país que
sente
muito orgulho de si próprio,
que não quer ouvir o que outras pessoas
têm a dizer.
É muito difícil ensinar antropologia a pessoas assim! "
O que você chama de "deslocamento perspectivista" -e sua tradução na
ideia de invenção- tem um impacto forte sobre o que concebemos, no
Ocidente moderno, como racionalidade. Você poderia falar mais sobre
isso?
O [Carlos] Castañeda nos dá uma lição muito importante sobre o humor.
Toda metáfora é uma piada. Toda metáfora é um ato de humor. Temos que
aprender a pensar em cada metáfora como uma torção irônica de palavras,
de perspectivas. Vamos pensar nisso de modo analítico.
Tudo o que nós chamamos de razão (e tudo o que nós chamamos de
tecnologia -razão, lógica, tecnologia) é baseado na relação de causa e
efeito. A causa é o que Wittgenstein chamou de superstição. A ideia de
causa e efeito só pode funcionar quando a causa e o efeito são a mesma
coisa. Quando falamos de causa e efeito, criamos uma separação ou um
espaço artificial. No entanto, se não fizéssemos isso, não teríamos nada
para chamar de razão ou lógica.
Em uma piada, a causa e o efeito são reversos. É por isso que o humor é o
conhecimento íntimo de todas as coisas; se usamos o humor, revertemos
causa e efeito. Os barok (Papua Nova Guiné) me contaram que quando
aprendemos que tudo funciona por meio de um truque, não nos encontramos
no fim do conhecimento, mas no início. Isso constitui um ataque à
racionalidade, considerando o modo como normalmente pensamos sobre ela.
Não significa que esse processo seja ilógico. Wittgenstein provavelmente
diria que a lógica é o humor; a lógica não é causa e efeito. Ele
desprezava totalmente a ideia de causa e efeito. Os Estados Unidos
parecem estar presos a um tipo de mentalidade assim. É um país que sente
muito orgulho de si próprio, que não quer ouvir o que outras pessoas
têm a dizer. É muito difícil ensinar antropologia a pessoas assim!
Como se dá essa dialética entre os povos que estudou na Nova Guiné?
Minha experiência entre eles me ensinou que a convenção é o que damos
como certo, pois é a base da existência; é o que é dado, é o que existe.
Como indivíduos, o que fazemos é nos diferenciar "contra" ela. Essas
pessoas, dotadas de uma criatividade maravilhosa, produzem formas
estonteantes de arte, nominação, mitos. Tudo isso é diferenciação. Por
não ser convenção, ela possui um poder de corte. As convenções são
simples, conhecidas por todos, dadas como certas, e é assim que
produzimos a diferenciação.
Na civilização ocidental, tratamos a convenção como um ideal, como
fazemos com nossos códigos de lei, nossas constituições, organizações
governamentais e educacionais. Tendemos a aderir a ideais platônicos. E
nossos grandes inventores, as pessoas que aperfeiçoam e modificam nossa
sociedade, são considerados excêntricos.
Em "A Invenção da Cultura", argumento que os povos indígenas, os povos
tribais, não têm governo nem religião centralizados -e o que são um
governo e uma religião centralizados, e um sistema de escrita, senão
formas profundamente enraizadas de convenção?
Como descreve o impacto da antropologia na contracultura e vice-versa, nos EUA, e em seu trabalho em particular?
A contracultura foi algo que existiu de forma muito deliberada e
determinante nos anos 1970. Na época em que escrevi "A Invenção da
Cultura", ela era muito provocadora nos EUA. Mas muito do que produziu
foi assimilado pela mídia, pela propaganda.
Muitos dos tropos poderosos e inovadores criados pela contracultura na
década de 1970 foram assimilados pela propaganda e coisas do tipo, de
modo que os protestos dos hippies acabaram, mais tarde, sendo usados em
comerciais para vender produtos. Portanto, a contracultura foi
corrompida pela convenção e usada para estender a cultura convencional.
A contracultura operou por algum tempo, mas depois foi, de certa
maneira, sugada para dentro, totalmente dissolvida. Algumas pessoas
tentaram fazer contracultura novamente, mas não funcionou da mesma forma
que nos anos 1970. Assim, a contracultura foi -e acho que meu livro
deixa isso claro- uma diferenciação inovadora que aconteceu no interior
da cultura americana, algo que se mostrou ameaçador para muitos
americanos, por razões políticas ou por outras razões. Mas em 2001 já
havia se tornado terrorismo.
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