Por Amarílis Lage | De São Paulo
Acostumados à leitura fragmentada na tela do computador, podemos perder a noção da totalidade da obra, o conceito de autoria e, nesse processo, acabar perdendo também a chave que permite acessar textos artísticos e teóricos que foram criados dentro de uma lógica que se apoia nesses dois elementos.
Pessimista? Não. Chartier, diretor de pesquisas da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais e professor de escrita e cultura da Europa moderna no Collège de France, não acha que a imagem vá matar o texto no mundo virtual (prevê uma "evolução paralela") e associa a inovação tecnológica a "possibilidades extraordinárias". Também vê como uma conquista interessante a atual flexibilidade em relação ao conceito de propriedade intelectual. Mas, alerta, seria prejudicial deixar que a tecnologia imponha um modelo único de leitura a textos que são fundamentalmente diferentes.
Em maio, Chartier estará em São Paulo para participar do 3º Congresso Internacional CBL do Livro Digital. O evento contará ainda com especialistas como Juergen Boos, presidente da Feira do Livro de Frankfurt; Young Chi, presidente da IPA (International Publishers Association); e Henrique Mota, presidente do Conselho Técnico para a Internacionalização da Associação Portuguesa dos Editores de Livros (Apel).
Chartier conversou com o Valor por telefone, da Filadélfia - ele é professor da Universidade da Pensilvânia, além de membro do Centro de Estudos Europeus da Universidade Harvard. Na entrevista a seguir, fala também sobre o papel das editoras no mundo digital e a importância das livrarias.
Valor: Alguns autores têm usado ferramentas digitais em busca de novas propostas para o livro; há tentativas de unir o texto com sons, fazer um produto híbrido. Ao mesmo tempo, há escritores que parecem responder a essa fragmentação e hibridismo com livros ainda mais densos, como Jonathan Franzen com "Liberdade" [Franzen já fez várias críticas ao livro digital e declarou que o livro impresso passa uma sensação de permanência que integra a experiência da leitura]. Como o senhor analisa as respostas que a literatura tem dado ao mundo digital?
Roger Chartier: Em primeiro lugar, é verdade que há possibilidades novas para unir textos com imagens, movimentos e sons. Isso poderia ser considerado o desenvolvimento de algo que os livros mais clássicos buscavam com a ilustração e, mais recentemente, com a inclusão de CD-ROMs e discos. Essa integração aprofunda algo que o livro já buscava. Mas você usou o termo fragmentação e é isso que me parece essencial e é aí que está a resistência de alguns escritores. Em um livro impresso, você pode selecionar uma parte, mas o suporte material obriga a perceber a totalidade, você estabelece esse sentido mesmo que inconscientemente. A grande novidade me parece ser que o fragmento não está mais necessariamente vinculado ao todo. A leitura descontínua não busca essa relação. E a consequência é que todos os conceitos que associamos com a literatura, com o livro de filosofia, o de história etc. estão desafiados pela tecnologia eletrônica. São obras que têm sua lógica, na qual cada fragmento ocupava um lugar particular na narração da história ou na demonstração de uma teoria. [Essa mudança] pode permitir uma nova forma de demonstração intelectual ou de narração e também de edição. Mas pode significar também a perda do que constituía a base fundamental da propriedade intelectual e da definição de obra. Existe uma tensão entre a vontade de manter esses critérios tradicionais - em que tudo se liga a uma totalidade - e uma prática de leitura que aceita o fragmento como fragmento. Essa me parece ser a questão fundamental para distinguir, de um lado, os livros que foram concebidos de forma mais clássica (e, quando as editoras lançam o mesmo título impresso e numa versão eletrônica, trata-se de conservar uma forma clássica que encontra um novo suporte) e, de outro lado, a inovação: encontrar uma nova forma de obra que incorpore essas possibilidades e seja indubitavelmente eletrônica.
"Ler poucos livros não significa que uma
população não leia, porque há outros tipos de produção: as revistas, os
jornais,
a tela do computador"
Valor: O senhor já citou em entrevistas uma frase de Don McKenzie [1931-1999, pesquisador neozelandês especialista na história do livro] que diz que a forma altera o sentido do texto. Como isso ocorre?
Chartier: A mesma obra pode adquirir vários sentidos em diferentes formas de publicação. Isso já era verdadeiro no século XVII, quando uma mesma novela saía periodicamente num jornal, depois era publicada em um livro, depois nas obras completas do autor. Todas essas formas implicavam várias relações do leitor com a obra. Ninguém é obrigado a ler todas as páginas de uma novela ou de um livro de ciências sociais, mas a forma material localizava o fragmento dentro de algo. Num site, o fragmento não se liga facilmente com a totalidade. A escrita se transforma em um banco de dados do qual o leitor pode extrair fragmentos isolados. Para os textos que foram pensados, construídos e recebidos com uma outra lógica, isso pode ser, eventualmente, uma perda.
Valor: Essa tensão entre fragmento e totalidade parece afetar também a ideia de autoria. Nós tínhamos - e ainda temos - a ideia de obra como a expressão de uma individualidade. Como fica esse conceito no mundo digital?
Chartier: Uma promessa do mundo eletrônico foi a de, num certo sentido, apagar a noção de autoria. Quando falamos de textos móveis, abertos, que qualquer um pode modificar, a ideia de autoria é substituída pela noção de uma criação contínua de saber. Isso que foi tão sedutor na invenção dessa nova forma de comunicação: é um mundo de criação coletiva anônima. Qualquer texto pode ser transformado pelo leitor, que, por sua vez, se converte num autor. O problema é quando essa possibilidade é aplicada a obras que eram compreendidas como a expressão dos sentimentos, das ideias e das experiências de um autor. A partir do século XVIII, com o nascimento da ideia de propriedade intelectual, a obra é relacionada ao indivíduo. Nesse tipo de texto, a singularidade individual é fundamental para a produção e a recepção. O leitor de hoje pode perder essa relação. É uma tensão muito forte. Temos uma dificuldade para respeitar esses conceitos em um suporte tecnológico que pode apagá-los.
Valor: Mas, pelo que o senhor afirma em seus textos, tentar impor as mesmas regras que vigoravam desde o século XVIII nesse novo meio digital não parece ser uma solução.
Chartier: Não sei se é uma solução. A questão é ter
um diagnóstico lúcido e pensar que cada criação textual ou multimídia
pertence a um certo registro de invenção e de comunicação. O perigo me
parece ser que a tecnologia imponha um modelo único para várias formas
de criação sem respeitar os registros e a temporalidade dessa produção.
Por um lado, a nova tecnologia libera o leitor e o escritor do conceito
da propriedade intelectual, e essa é uma conquista interessante porque
qualquer um pode tornar públicos seus poemas, suas ideias. Ao mesmo
tempo, quando falamos de edição eletrônica, a tecnologia impõe
dificuldades para a conservação dos registros tradicionais, a
reivindicação do direito de autor, a proteção do texto pelas editoras. É
uma tensão fundamental entre uma comunicação eletrônica livre e
gratuita e uma edição eletrônica que permanece fiel aos termos clássicos
da propriedade intelectual.
Chartier: Qualquer um pode mostrar sua obra para o mundo inteiro - se o mundo quiser ler (risos). Mas isso é uma forma de comunicação, não de edição. Também no mundo eletrônico, o que define edição é a construção de um catálogo que tem lógica e coerência e um trabalho sobre os textos. O que sustenta e justifica a edição eletrônica é que ela pressupõe escolher, preparar e modificar o texto do autor. Ao mesmo tempo, há a ideia de proteção jurídica contra cópias piratas. O papel da editora não desaparece quando se pensa a edição como algo diferente da comunicação livre e espontânea.
Valor: Quando o senhor analisa o mundo editorial, presta atenção a best-sellers? Eles o fazem pensar na demanda dos leitores de hoje em relação aos livros?
Chartier: Há duas definições de best-seller. A primeira é a aplicação de regras que buscam atender ao que é definido como o gosto do público, seja no tema, seja na forma narrativa. Outra definição é a de um livro que não foi constituído a partir dessa expectativa, mas encontra um público inesperado. Há um paralelo com Marcel Proust, no começo do século XX, que teve dificuldades para publicar sua obra. Numa escala mais reduzida, isso também pode acontecer com livros de história e sociologia. Penso em "História dos Camponeses Franceses", de Emmanuel Le Roy Ladurie, que encontrou um público e teve muitas traduções - não como "Harry Potter", claro (risos). Na história, a biografia é sempre um gênero que tem mais êxito. Na ficção, não tenho lido muito, mas no Brasil se veem muitos livros sobre o mundo fantástico, em vez de uma descrição realista do mundo social. Isso me chama a atenção. No século XIX, era Honoré de Balzac, Machado de Assis, a literatura como uma forma de sociologia, descrevendo as relações sociais. Isso era o mais importante na leitura. Agora, o que domina é uma forma de literatura fantástica.
Valor: São livros que seguem um modelo clássico. Não são trabalhos que lidam com a fragmentação, com novas possibilidades narrativas.
Chartier: Tem razão. Há como um contraponto nesse mundo da velocidade, da linguagem descontinuada, e ele seria essas obras "gordas", livros pesados e publicados na forma impressa - o leitor mais tradicional não vai ler 600 páginas na tela do computador. É como a presença de uma forma do passado neste mundo que se afastou da leitura paciente. Há uma forma de compensação.
Valor: Recentemente, foram divulgados no Brasil os dados da pesquisa Retratos de Leitura, realizado pelo Instituto Pró-Livro. Eles mostraram que o brasileiro lê em média quatro livros por ano, e que metade não leu nem um livro inteiro ou parcialmente nos últimos três meses. Que medidas ajudariam a estimular a leitura?
Chartier: Em primeiro lugar, esse é um diagnóstico que se deve discutir, pois as pessoas leem poucos livros por várias razões: fatores econômicos, de distribuição, concorrência com outras formas de lazer... E ler poucos livros não significa que uma população não leia, porque há outros tipos de produção: as revistas, os jornais, a tela do computador. Isso não equivale a Machado de Assis, mas o que quero dizer é que há a leitura de outros escritos que circulam na sociedade. E me parece que as pesquisas que definem a leitura a partir do livro poderiam incluir essas outras práticas. E como utilizar, mobilizar essas práticas de leitura? A ideia seria ligá-las a questões que permitam refletir e levem o leitor a uma dimensão crítica. Para que isso exista, podemos pensar em todo tipo de intervenção. A escola é um lugar fundamental para a aprendizagem da relação que o leitor pode ter com várias formas da cultura escrita e outras produções simbólicas. Para mim, parece um paradoxo, porque você tem dados objetivos, mensuráveis, sobre a leitura, mas no Brasil que eu conheço, que é o das grandes cidades, há uma rede das livrarias, há uma preocupação do poder público e dos intelectuais com os livros. Isso permite ter uma certa esperança. O Brasil, que talvez tenha poucos leitores, é um país onde se encontram muitas livrarias, enquanto na Europa ocidental elas estão desaparecendo uma depois da outra, o que é terrível, porque na livraria podemos encontrar obras que não conhecemos ou não buscávamos, é também um espaço de socialização. Outro desafio do presente é o desaparecimento das livrarias, o que aumenta a dificuldade para manter um tipo de relação mais tradicional com a cultura escrita.
Valor: O senhor virá ao Brasil para um congresso sobre o livro digital. No Brasil, um dos principais propulsores do livro digital deve ser o mercado educacional. Que questões devem ser pensadas em relação ao uso do livro digital na sala de aula?
Chartier: Na escola, é possível mostrar que não se pode esperar o mesmo tipo de compreensão das várias formas de recepção do texto. Isso para evitar que a tecnologia imponha uma única maneira de leitura, nivele essa multiplicidade que permite ler o jornal, a revista, o livro impresso, o texto digital, utilizar o banco de dados. Com essa aprendizagem, o leitor pode ter uma distância crítica em relação a suas práticas ou ao mundo, o que seria, para mim, o essencial. As políticas que introduzem novos objetos eletrônicos nas escolas dão ao professor a oportunidade de formar um cidadão mais consciente das possibilidades extraordinárias oferecidas pelo mundo contemporâneo. Temos finalmente três formas dominantes da cultura escrita: o manuscrito, o impresso e o digital. É inédito ter três formas dominantes para a transmissão de conteúdos intelectuais ou estéticos. Essa riqueza deve ser vista não como algo que deve desaparecer ou virar um sistema com um modelo exclusivo e, sim, como a possibilidade de termos um leitor melhor.
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Fonte: Valor Econômico on line, 13/04/2012
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