O 12º romance de Rushdie suscita a perplexidade e inquietação dos livros
escritos contra a morte ou guiados
por uma tentativa de arrumar o caos
em que a realidade se apresenta Olivier Douliery/ Abaca Press/ MCT
Um livro estranhamente actual e o regresso
de Rushdie à sua melhor forma
Numa entrevista de Setembro ao britânico The Guardian, Salman Rushdie dizia que este talvez seja o seu romance mais divertido. A afirmação pode causar surpresa a quem já leu Dois Anos, Oito Meses e Vinte e Oito Noites,
não porque o livro seja sisudo, mas porque ser engraçado não é a
característica imediata para o descrever. O 12º romance de Rushdie
suscita a perplexidade e inquietação dos livros escritos contra a morte
ou guiados por uma tentativa de arrumar o caos em que a realidade se
apresenta. E nessa urgência de escrita sobre o real, o recurso à
fantasia ou à imaginação apresenta-se como como o artifício mais eficaz,
aquele que é capaz de iludir o leitor e tornar suportável o mal-estar
de um tempo, o actual.
Não é a primeira vez que Rushdie, 68 anos, natural de Bombaim, pega no real para o devolver fantasiado. Em Os Filhos da Meia-Noite,
de 1980, vencedor do Booker dos Booker — ou seja, considerado o melhor
de todos os livros vencedores do maior prémio para ficção em língua
inglesa —, a narrativa segue a influência do realismo mágico, com
personagens a quem foram atribuídos dons sobrenaturais. Em Versículos Satânicos, de 1989, que lhe valeu a fatwa do então líder espiritual do Irão, Ayatollah Khomeini, um sobrevivente a um atentado conhece em sonhos o profeta Maomé. Neste Dois Anos, Oito Meses e Vinte e Oito Dias o
contágio com o mundo dos contos de fadas, e com as grandes narrativas
fundadoras que desafiam a fronteira entre realidade e ficção, ultrapassa
tudo o que Rushdie já escreveu no que se revela uma paródia literária
sabiamente construída.
As estranhezas começam à primeira página e
logo no título. Há um número: dois anos, oito meses e vinte e oito
noites. Só para se certificarem de que é mesmo isso, é fazerem as
contas, dá mil e uma noites. E são muitas as referências a Xerazade e
às Mil e Uma Noites ao longo do romance e ao seu modo
intrincado de narrar. Logo na página 23 lê-se: “...todas as nossas
histórias contêm as histórias de outros e estão elas próprias contidas
em narrativas maiores, mais grandiosas, as histórias das nossas
famílias, das nossas pátrias ou das nossas crenças. Mais bela ainda do
que as histórias dentro das histórias era a história da contadora de
histórias, uma princesa chamada Xarazade ou Xerazade, que contava os
seus contos a um marido assassino para evitar ser executada. Histórias
contadas contra a morte…” A tal narrativa enquanto urgência tem definido
também a vida de Rushdie. A contadora de histórias mais sedutora de
todos os tempos surge necessariamente equiparada ao contador destes
contos encadeados num romance, o escritor condenado à morte e que, com
as suas histórias, foi capaz de sobreviver, até hoje.
O leitor
está enquadrado num jogo de reconhecimento e auto-reconhecimento. De que
fala Rushdie a cada momento, a cada episódio? De catástrofes naturais,
de Nova Iorque no século XXI, de um homem que levita nessa cidade deste
tempo, da guerra, de uma mulher sem lóbulo nas orelhas e que tem muitas
crianças a cada parto num tempo recuado. Fala do real mas podendo iludir
sobre isso. Se o leitor quiser, tudo pode ser fantasia. Mas se o leitor
também quiser, tudo pode ser insuportavelmente real. “Contar uma
fantasia, uma história do imaginário, é também uma maneira de contar uma
história sobre o actual”, pensa um dos narradores do romance que começa
por uma personagem histórica, Ibn Rushd, o filósofo, médico, sábio
muçulmano-andaluz conhecido pelo nome de Averróis, que viveu entre 1126 e
1198. Um dia uma rapariga bate-lhe à porta, disse-lhe que era órfã e
pedia que a abrigasse. Chamava-se Dunia. “Sendo um homem da razão, ele
não adivinhou que ela era uma criatura sobrenatural, uma jiinnia, da
tribo dos jiinn femininos, as jiiniri: uma grandiosa princesa dessa
tribo, uma aventura terrestre, perseguindo os seu fascínio crescente
pelos homens humanos em geral e pelos homens brilhantes em particular.” A
cada noite, Dunia pede que Ibn Rushd lhe conte histórias, histórias de
homens.
E o que surge a partir daí é uma sucessão de fragmentos,
um cruzar de personagens e de tempos que, arrisque-se, tem dois
protagonistas: Mr. Geronimo, o homem que começou a levitar no dia
seguinte a uma grande tempestade, e Nova Iorque, a Nova Amesterdão onde
também vive Bento que se orgulha der ter o nome de Benedito Espinosa, “o
judeu português da Velha Amesterdão”. Nova Iorque surge aqui como
território da possibilidade da diferença onde podem viver os homens que
não podem viver noutros lugares — saiamos do livro por instantes,
Rushdie incluído.
O efeito do livro é o de encantamento, como
aquele que sugerem as histórias sobre contadores de histórias em voz
alta. A voz que aqui se escuta é por vezes só um sussurro. São tantas as
personagens, tantos enredos — principais e secundários — tantas as
referências filosóficas, políticas e religiosas, literárias. A fórmula é
a de um grande conto de fadas, mas o jogo é o da grande narrativa
contemporânea e é aí que entra a ironia. Ela entra, eficaz, numa
ambiciosa teia que explora e desafia os limites da linguagem sempre que a
linguagem se mostra incapaz ou insuficiente para comunicar o caos ou
enquadrar o medo, para ordenar num puzzle que se sabe
impossível de concluir os fragmentos soltos de uma realidade que escapa.
Mas mesmo assim tenta-se. Para sobreviver é preciso que se contem
histórias, que os fragmentos ganhem um sentido. Ibn Rushd, a quem o pai
de Rushdie se inspirou para nomear a família, sabia disso: “… ao
considerar aquela estranha era, a era dos anos, oito meses e vinte e
oito noites que é o assunto do presente relato, somos forçados a admitir
que o mundo se tinha tonado absurdo e que as leis há muito aceitadas
como princípios que governavam a realidade tinham entrado em colapso,
deixando os nossos antepassados perplexos e incapazes de imaginar quais
poderiam ser as novas leis.” O contexto é este “tempo de estranhezas”. É
aqui que este livro de Rushdie se situa, com alguns exageros no efeito,
dando pouco descanso ao tal realismo mágico. Um prato demasiado cheio.
Em todo o caso a gargalhada é possível. Aí está outra estranheza.
FOLHEANDO
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Salman Rushdie
primaveras apareceu à porta de Ibn
Rushd, a sorrir docemente, sem bater nem se intrometer nos seus pensamentos de qualquer
outra maneira, e simplesmente ficou ali a aguardar pacientemente até ele se
aperceber da sua presença e a convidar a entrar. Ela disse -lhe que era órfã
recente; que não tinha fonte de rendimento, mas preferia não trabalhar na casa
das putas; e que o seu nome era Dunia, que não soava a nome judeu, porque ela
não tinha autorização para dizer o seu nome judeu, e, como era analfabeta, não
sabia escrevê -lo. Ela disse -lhe que um viajante lhe tinha
dado o nome e lhe dissera que derivava do grego e significava «o mundo». Ibn
Rushd, o tradutor de Aristóteles, não disputou as suas palavras, sabendo que
significava «o mundo» num número suficiente de línguas para tornar desnecessário
esse pedantismo. «Porque é que tomaste o nome do mundo?», perguntou -lhe ele, e
ela respondeu, olhando -o nos olhos enquanto falava: «Porque um mundo fluirá de
mim e os que fluírem de mim espalhar –se-ão pelo mundo.»
Sendo um homem de razão, ele não
adivinhou que ela era uma criatura sobrenatural, uma jinnia, da tribo dos
jinnfemininos, as jiniri: uma grandiosa princesa dessa tribo, numa aventura terrestre,
perseguindo o seu fascínio crescente pelos homens humanos em geral e pelos
homens brilhantes em particular. Ele acolheu -a em sua casa como governanta e
amante e na noite abafada ela segredou -lhe ao ouvido o seu nome judeu
«verdadeiro» – quer dizer, o falso – e esse passou a ser um segredo dos dois.
Dunia, a jinnia, foi tão espetacularmente fértil como a sua profecia dera a
entender. Nos dois anos, oito meses e vinte e oito dias e noites que se
seguiram, esteve grávida três vezes e em cada uma dessas ocasiões deu à luz uma
multiplicidade de crianças, pelo menos sete em cada ocasião, ao que parece, e
numa ocasião onze, ou possivelmente dezanove, embora os registos existentes
sejam vagos e inexatos. Todos os filhos herdaram a sua característica mais
distintiva: não tinham lóbulos das orelhas.
Se Ibn Rushd fosse adepto da arcana
oculta teria compreendido então que os seus filhos eram rebentos de uma mãe não
humana, mas estava demasiado ensimesmado para o descobrir. O filósofo que não
podia filosofar receava que os filhos herdassem dele os tristes
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Dois Anos, Oito Meses e Vinte e Oito Noites
dons que eram o seu tesouro e a sua
maldição. «Ter pele fina, vistas largas e língua solta», dizia ele, «é sentir
demasiado agudamente, ver demasiado claramente, falar demasiado livremente. É
ser vulnerável ao mundo quando o mundo se crê invulnerável, compreender a sua
mutabilidade quando ele se julga imutável, pressentir o que aí vem antes dos
outros, saber que o bárbaro futuro está a derrubar os portões do presente
enquanto outros se agarram ao passado decadente e oco. Se os nossos filhos
forem afortunados, só herdarão as tuas orelhas, mas, por lástima, como eles são
inegavelmente meus, é provável que pensem demasiado, demasiado cedo, e ouçam
demasiado, demasiado cedo, incluindo coisas que não é permitido pensar ou
ouvir.» «Conta -me uma história», pedia Dunia muitas vezes na cama nos
primeiros tempos da sua coabitação. Ele rapidamente descobriu que, apesar da
sua aparente juventude, ela podia ser uma pessoa exigente e cheia de opiniões,
na cama e fora dela. Ele era um homem grande e ela era como uma pequena ave ou
um inseto, mas ele sentia muitas vezes que ela era a mais forte dos dois. Era a
alegria da sua velhice, mas exigia -lhe um nível de energia que lhe era difícil
manter. Na sua idade, por vezes o que ele queria fazer na cama era dormir, mas
Dunia encarava as suas tentativas de bater uma pestana como atos hostis. «Se
ficares acordado toda a noite a fazer amor», dizia ela, «vais sentir -te mais
repousado do que se ressonares horas e horas como um boi. Isso é bem sabido.»
Na sua idade nem sempre era fácil passar à condição requerida para o ato sexual,
especialmente em noites consecutivas, mas ela via as suas dificuldades de idoso
como provas da sua natureza desamorável. «Se achares uma mulher atraente, nunca
há problema», disse -lhe ela. «Não importa quantas noites seguidas.
Eu, eu estou sempre excitada, posso
continuar para sempre, não tenho ponto de paragem.»
A sua descoberta de que o ardor físico
dela podia ser apaziguado através de narrativas proporcionou -lhe algum alívio.
«Conta -me uma história», dizia ela, enroscando -se debaixo do braço do amante
de modo a que a mão dele ficasse pousada na sua cabeça, e ele pensava, bom,
estou dispensado esta noite; e dava -lhe, a pouco e pouco,
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Salman Rushdie
a história da sua mente. Usava palavras
que muitos dos seus contemporâneos achavam chocantes, incluindo «razão»,
«lógica» e «ciência», que eram os três pilares do seu pensamento, as ideias que
tinham feito com que os seus livros fossem queimados. Dunia receava essas
palavras, mas o receio excitava -a e ela aconchegava -se mais a ele e dizia:
«Segura -me na cabeça quando ma estás a encher com mentiras.»
Havia uma ferida funda e triste nele,
porque era um homem derrotado, perdera a maior batalha da sua vida para um
persa morto, Ghazali de Tus, um adversário que estava morto há oitenta e cinco
anos.
Cem anos antes, Ghazali escrevera um
livro chamado A Incoerência dos Filósofosno qual atacava gregos como
Aristóteles, os neoplatónicos e os seus aliados, os grandes precursores de Ibn
Rushd, Ibn Sina e al -Farabi. A certa altura, Ghazali tinha sofrido uma crise
de fé, mas regressara para se tornar o maior flagelador da filosofia na
história do mundo. A filosofia, troçava ele, era incapaz de provar a existência
de Deus ou até de provar a impossibilidade de haver dois deuses.
A filosofia acreditava na
inevitabilidade de causas e efeitos, que era uma diminuição do poder de Deus, o
qual podia intervir facilmente para alterar efeitos e tornar causas ineficazes
se assim o quisesse.
«O que acontece», perguntou Ibn Rushd a
Dunia quando a noite os envolveu em silêncio e puderam falar
de coisas proibidas, «quando um pau em chamas é posto em contacto com uma bola
de algodão?»
«O algodão incendeia -se, é claro»,
respondeu ela.
«E porque é que se incendeia?»
«Porque é assim mesmo», disse ela, «o
fogo lambe o algodão e o algodão torna -se parte do fogo, é como são as
coisas.»
«Pela lei da Natureza», disse ele, «as
causas têm os seus efeitos», e a cabeça dela acenou sob a carícia da mão dele.
«Ele discordava», disse Ibn Rushd, e
ela sabia que ele se referia ao inimigo, Ghazali, o que o tinha derrotado.
«Disse que o algodão pegava fogo porque Deus o obrigava a fazê -lo, porque no
universo de Deus a única lei é a vontade de Deus.»
«Então, se Deus quisesse que o algodão
apagasse o fogo, se Ele quisesse que o fogo se tornasse parte do algodão,
poderia fazer isso?»
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