quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

A realidade não chega para entender o real

 
 O 12º romance de Rushdie suscita a perplexidade e inquietação dos livros escritos contra a morte ou guiados 
por uma tentativa de arrumar o caos em que a realidade se apresenta Olivier Douliery/ Abaca Press/ MCT 

 Um livro estranhamente actual e o regresso 
de Rushdie à sua melhor forma

Numa entrevista de Setembro ao britânico The Guardian, Salman Rushdie dizia que este talvez seja o seu romance mais divertido. A afirmação pode causar surpresa a quem já leu Dois Anos, Oito Meses e Vinte e Oito Noites, não porque o livro seja sisudo, mas porque ser engraçado não é a característica imediata para o descrever. O 12º romance de Rushdie suscita a perplexidade e inquietação dos livros escritos contra a morte ou guiados por uma tentativa de arrumar o caos em que a realidade se apresenta. E nessa urgência de escrita sobre o real, o recurso à fantasia ou à imaginação apresenta-se como como o artifício mais eficaz, aquele que é capaz de iludir o leitor e tornar suportável o mal-estar de um tempo, o actual.
Não é a primeira vez que Rushdie, 68 anos, natural de Bombaim, pega no real para o devolver fantasiado. Em Os Filhos da Meia-Noite, de 1980, vencedor do Booker dos Booker — ou seja, considerado o melhor de todos os livros vencedores do maior prémio para ficção em língua inglesa —, a narrativa segue a influência do realismo mágico, com personagens a quem foram atribuídos dons sobrenaturais. Em Versículos Satânicos, de 1989, que lhe valeu a fatwa do então líder espiritual do Irão, Ayatollah Khomeini, um sobrevivente a um atentado conhece em sonhos o profeta Maomé. Neste Dois Anos, Oito Meses e Vinte e Oito Dias o contágio com o mundo dos contos de fadas, e com as grandes narrativas fundadoras que desafiam a fronteira entre realidade e ficção, ultrapassa tudo o que Rushdie já escreveu no que se revela uma paródia literária sabiamente construída.

As estranhezas começam à primeira página e logo no título. Há um número: dois anos, oito meses e vinte e oito noites. Só para se certificarem de que é mesmo isso, é fazerem as contas, dá mil e uma noites. E são muitas as referências a Xerazade e às Mil e Uma Noites ao longo do romance e ao seu modo intrincado de narrar. Logo na página 23 lê-se: “...todas as nossas histórias contêm as histórias de outros e estão elas próprias contidas em narrativas maiores, mais grandiosas, as histórias das nossas famílias, das nossas pátrias ou das nossas crenças. Mais bela ainda do que as histórias dentro das histórias era a história da contadora de histórias, uma princesa chamada Xarazade ou Xerazade, que contava os seus contos a um marido assassino para evitar ser executada. Histórias contadas contra a morte…” A tal narrativa enquanto urgência tem definido também a vida de Rushdie. A contadora de histórias mais sedutora de todos os tempos surge necessariamente equiparada ao contador destes contos encadeados num romance, o escritor condenado à morte e que, com as suas histórias, foi capaz de sobreviver, até hoje.

O leitor está enquadrado num jogo de reconhecimento e auto-reconhecimento. De que fala Rushdie a cada momento, a cada episódio? De catástrofes naturais, de Nova Iorque no século XXI, de um homem que levita nessa cidade deste tempo, da guerra, de uma mulher sem lóbulo nas orelhas e que tem muitas crianças a cada parto num tempo recuado. Fala do real mas podendo iludir sobre isso. Se o leitor quiser, tudo pode ser fantasia. Mas se o leitor também quiser, tudo pode ser insuportavelmente real. “Contar uma fantasia, uma história do imaginário, é também uma maneira de contar uma história sobre o actual”, pensa um dos narradores do romance que começa por uma personagem histórica, Ibn Rushd, o filósofo, médico, sábio muçulmano-andaluz conhecido pelo nome de Averróis, que viveu entre 1126 e 1198. Um dia uma rapariga bate-lhe à porta,  disse-lhe que era órfã e pedia que a abrigasse. Chamava-se Dunia. “Sendo um homem da razão, ele não adivinhou que ela era uma criatura sobrenatural, uma jiinnia, da tribo dos jiinn femininos, as jiiniri: uma grandiosa princesa dessa tribo, uma aventura terrestre, perseguindo os seu fascínio crescente pelos homens humanos em geral e pelos homens brilhantes em particular.” A cada noite, Dunia pede que Ibn Rushd lhe conte histórias, histórias de homens.

E o que surge a partir daí é uma sucessão de fragmentos, um cruzar de personagens e de tempos que, arrisque-se, tem dois protagonistas: Mr. Geronimo, o homem que começou a levitar no dia seguinte a uma grande tempestade, e Nova Iorque, a Nova Amesterdão onde também vive Bento que se orgulha der ter o nome de Benedito Espinosa, “o judeu português da Velha Amesterdão”. Nova Iorque surge aqui como território da possibilidade da diferença onde podem viver os homens que não podem viver noutros lugares — saiamos do livro por instantes, Rushdie incluído.

O efeito do livro é o de encantamento, como aquele que sugerem as histórias sobre contadores de histórias em voz alta. A voz que aqui se escuta é por vezes só um sussurro. São tantas as personagens, tantos enredos — principais e secundários — tantas as referências filosóficas, políticas e religiosas, literárias. A fórmula é a de um grande conto de fadas, mas o jogo é o da grande narrativa contemporânea e é aí que entra a ironia. Ela entra, eficaz, numa ambiciosa teia que explora e desafia os limites da linguagem sempre que a linguagem se mostra incapaz ou insuficiente para comunicar o caos ou enquadrar o medo, para ordenar num puzzle que se sabe impossível de concluir os fragmentos soltos de uma realidade que escapa. Mas mesmo assim tenta-se. Para sobreviver é preciso que se contem histórias, que os fragmentos ganhem um sentido. Ibn Rushd, a quem o pai de Rushdie se inspirou para nomear a família, sabia disso: “… ao considerar aquela estranha era, a era dos anos, oito meses e vinte e oito noites que é o assunto do presente relato, somos forçados a admitir que o mundo se tinha tonado absurdo e que as leis há muito aceitadas como princípios que governavam a realidade tinham entrado em colapso, deixando os nossos antepassados perplexos e incapazes de imaginar quais poderiam ser as novas leis.” O contexto é este “tempo de estranhezas”. É aqui que este livro de Rushdie se situa, com alguns exageros no efeito, dando pouco descanso ao tal realismo mágico. Um prato demasiado cheio. Em todo o caso a gargalhada é possível. Aí está outra estranheza.

FOLHEANDO

 
18
Salman Rushdie

primaveras apareceu à porta de Ibn Rushd, a sorrir docemente, sem bater nem se intrometer nos seus pensamentos de qualquer outra maneira, e simplesmente ficou ali a aguardar pacientemente até ele se aperceber da sua presença e a convidar a entrar. Ela disse -lhe que era órfã recente; que não tinha fonte de rendimento, mas preferia não trabalhar na casa das putas; e que o seu nome era Dunia, que não soava a nome judeu, porque ela não tinha autorização para dizer o seu nome judeu, e, como era analfabeta, não sabia escrevê -lo. Ela disse -lhe que um viajante lhe tinha dado o nome e lhe dissera que derivava do grego e significava «o mundo». Ibn Rushd, o tradutor de Aristóteles, não disputou as suas palavras, sabendo que significava «o mundo» num número suficiente de línguas para tornar desnecessário esse pedantismo. «Porque é que tomaste o nome do mundo?», perguntou -lhe ele, e ela respondeu, olhando -o nos olhos enquanto falava: «Porque um mundo fluirá de mim e os que fluírem de mim espalhar –se-ão pelo mundo.»
 
Sendo um homem de razão, ele não adivinhou que ela era uma criatura sobrenatural, uma jinnia, da tribo dos jinnfemininos, as jiniri: uma grandiosa princesa dessa tribo, numa aventura terrestre, perseguindo o seu fascínio crescente pelos homens humanos em geral e pelos homens brilhantes em particular. Ele acolheu -a em sua casa como governanta e amante e na noite abafada ela segredou -lhe ao ouvido o seu nome judeu «verdadeiro» – quer dizer, o falso – e esse passou a ser um segredo dos dois. Dunia, a jinnia, foi tão espetacularmente fértil como a sua profecia dera a entender. Nos dois anos, oito meses e vinte e oito dias e noites que se seguiram, esteve grávida três vezes e em cada uma dessas ocasiões deu à luz uma multiplicidade de crianças, pelo menos sete em cada ocasião, ao que parece, e numa ocasião onze, ou possivelmente dezanove, embora os registos existentes sejam vagos e inexatos. Todos os filhos herdaram a sua característica mais distintiva: não tinham lóbulos das orelhas.

Se Ibn Rushd fosse adepto da arcana oculta teria compreendido então que os seus filhos eram rebentos de uma mãe não humana, mas estava demasiado ensimesmado para o descobrir. O filósofo que não podia filosofar receava que os filhos herdassem dele os tristes 

19
Dois Anos, Oito Meses e Vinte e Oito Noites

dons que eram o seu tesouro e a sua maldição. «Ter pele fina, vistas largas e língua solta», dizia ele, «é sentir demasiado agudamente, ver demasiado claramente, falar demasiado livremente. É ser vulnerável ao mundo quando o mundo se crê invulnerável, compreender a sua mutabilidade quando ele se julga imutável, pressentir o que aí vem antes dos outros, saber que o bárbaro futuro está a derrubar os portões do presente enquanto outros se agarram ao passado decadente e oco. Se os nossos filhos forem afortunados, só herdarão as tuas orelhas, mas, por lástima, como eles são inegavelmente meus, é provável que pensem demasiado, demasiado cedo, e ouçam demasiado, demasiado cedo, incluindo coisas que não é permitido pensar ou ouvir.» «Conta -me uma história», pedia Dunia muitas vezes na cama nos primeiros tempos da sua coabitação. Ele rapidamente descobriu que, apesar da sua aparente juventude, ela podia ser uma pessoa exigente e cheia de opiniões, na cama e fora dela. Ele era um homem grande e ela era como uma pequena ave ou um inseto, mas ele sentia muitas vezes que ela era a mais forte dos dois. Era a alegria da sua velhice, mas exigia -lhe um nível de energia que lhe era difícil manter. Na sua idade, por vezes o que ele queria fazer na cama era dormir, mas Dunia encarava as suas tentativas de bater uma pestana como atos hostis. «Se ficares acordado toda a noite a fazer amor», dizia ela, «vais sentir -te mais repousado do que se ressonares horas e horas como um boi. Isso é bem sabido.» Na sua idade nem sempre era fácil passar à condição requerida para o ato sexual, especialmente em noites consecutivas, mas ela via as suas dificuldades de idoso como provas da sua natureza desamorável. «Se achares uma mulher atraente, nunca há problema», disse -lhe ela. «Não importa quantas noites seguidas. 

Eu, eu estou sempre excitada, posso continuar para sempre, não tenho ponto de paragem.»

A sua descoberta de que o ardor físico dela podia ser apaziguado através de narrativas proporcionou -lhe algum alívio. «Conta -me uma história», dizia ela, enroscando -se debaixo do braço do amante de modo a que a mão dele ficasse pousada na sua cabeça, e ele pensava, bom, estou dispensado esta noite; e dava -lhe, a pouco e pouco,

20
Salman Rushdie
a história da sua mente. Usava palavras que muitos dos seus contemporâneos achavam chocantes, incluindo «razão», «lógica» e «ciência», que eram os três pilares do seu pensamento, as ideias que tinham feito com que os seus livros fossem queimados. Dunia receava essas palavras, mas o receio excitava -a e ela aconchegava -se mais a ele e dizia: «Segura -me na cabeça quando ma estás a encher com mentiras.»

Havia uma ferida funda e triste nele, porque era um homem derrotado, perdera a maior batalha da sua vida para um persa morto, Ghazali de Tus, um adversário que estava morto há oitenta e cinco anos. 

Cem anos antes, Ghazali escrevera um livro chamado A Incoerência dos Filósofosno qual atacava gregos como Aristóteles, os neoplatónicos e os seus aliados, os grandes precursores de Ibn Rushd, Ibn Sina e al -Farabi. A certa altura, Ghazali tinha sofrido uma crise de fé, mas regressara para se tornar o maior flagelador da filosofia na história do mundo. A filosofia, troçava ele, era incapaz de provar a existência de Deus ou até de provar a impossibilidade de haver dois deuses. 

A filosofia acreditava na inevitabilidade de causas e efeitos, que era uma diminuição do poder de Deus, o qual podia intervir facilmente para alterar efeitos e tornar causas ineficazes se assim o quisesse.

«O que acontece», perguntou Ibn Rushd a Dunia quando a noite os envolveu em silêncio e puderam falar de coisas proibidas, «quando um pau em chamas é posto em contacto com uma bola de algodão?»
«O algodão incendeia -se, é claro», respondeu ela.
«E porque é que se incendeia?»
«Porque é assim mesmo», disse ela, «o fogo lambe o algodão e o algodão torna -se parte do fogo, é como são as coisas.»
«Pela lei da Natureza», disse ele, «as causas têm os seus efeitos», e a cabeça dela acenou sob a carícia da mão dele.
«Ele discordava», disse Ibn Rushd, e ela sabia que ele se referia ao inimigo, Ghazali, o que o tinha derrotado. «Disse que o algodão pegava fogo porque Deus o obrigava a fazê -lo, porque no universo de Deus a única lei é a vontade de Deus.»
«Então, se Deus quisesse que o algodão apagasse o fogo, se Ele quisesse que o fogo se tornasse parte do algodão, poderia fazer isso?»
 
---------------
Reportagem por 

Nenhum comentário:

Postar um comentário