Shirin Ebadi foi a 1ª mulher juíza no Irão e a 1ª mulher muçulmana a
receber o Nobel da Paz. Em entrevista, diz que a discriminação é como a
"hemofilia" e não aceita que 2 mulheres valham por 1 homem.
Shirin Ebadi foi a primeira mulher juíza no Irão e a primeira mulher muçulmana a receber um Prémio Nobel da Paz, em 2003. Aos 68 anos, os Direitos Humanos são causa de profissão e de vida. Hoje, a também professora
de Direitos Humanos na Universidade de Teerão (Irão) abraça um tema bem
atual: os direitos das mulheres e a igualdade de género.
Dá ténis cor-de-rosa ao neto de quatro anos
e vê um filme cómico todas as noites, antes de adormecer, para acordar
todos os dias com otimismo para continuar. “O meu trabalho é lidar com a
dor e com o sofrimento”. Diz que a cultura patriarcal é como a hemofilia.
E são as mães que têm a responsabilidade de não passar essa doença aos
filhos. A advogada esteve em Portugal por ocasião da conferência “The
Unknown, 100 years from now”, organizada pela Fundação Champalimaud, e conversou com o Observador.
Foi a primeira mulher juíza no Irão, em 1975, mas
quatro anos depois teve de abandonar o cargo porque as mulheres foram
proibidas de ser juízas. Depois só conseguiu a licença de advogada em
1992. Ser mulher no Irão exige persistência?
Depois da
revolução de 1979 foram adotadas muitas leis anti-mulheres no Irão. Por
exemplo: o valor da vida de uma mulher é metade do valor da vida de um
homem. Se eu e o meu irmão estivermos a andar na rua, e se alguém nos
atacar e nos ferir, a indemnização por perdas e danos que vai ser paga
ao meu irmão vai ser o dobro da que vai ser paga a mim. Um testemunho de
duas mulheres em tribunal é equivalente ao testemunho de um homem. Um
homem pode casar com quatro mulheres. Uma mulher casada não pode viajar
nem trabalhar sem a autorização do marido.
Veja este caso
interessante: recentemente uma mulher foi nomeada embaixadora para a
Malásia. Ou seja, o governo quer mostrar ao mundo que está a avançar no
reconhecimento das mulheres. Esta mulher foi nomeada embaixadora mas não
o pode ser sem permissão do marido. Agora imagine se na noite antes do
avião de partida ela e o marido discutem e ele proíbe-a de ir. O que é
que vai acontecer à embaixada? Vai ficar fechada? Porque a embaixadora
não pode viajar porque o marido não quer?
Porque é que existe esta discriminação contra as mulheres?
Esta
situação foi criada depois da revolução. Antes não era assim. O Irão é
um país em que 50% dos estudantes universitários são mulheres. As
mulheres iranianas têm muitos estudos. Quando eu me tornei juíza no meu
país, acho que não havia nenhuma no vosso. As mulheres iranianas
conseguiram o direito de voto e de serem eleitas para o Parlamento antes
de as mulheres suíças terem esse direito. Por isso, é natural que as
mulheres no Irão não concordem com estas políticas e leis de
discriminação. Elas lutam. No momento em que estamos a falar, há muitas
feministas que estão na prisão.
Na Europa e nos Estados
Unidos, a igualdade de género é uma das questões do momento. Fala-se
muito da igualdade de salários. São vários lados da mesma história,
certo?
É verdade e, mesmo nas zonas mais desenvolvidas,
ainda não atingimos a completa igualdade. É sempre o mesmo assunto — o
tipo de discriminação é que varia de sítio para sítio. As raízes da
discriminação contra as mulheres, seja em que país for, está na cultura
patriarcal — a cultura que não aceita a igualdade entre homens e
mulheres. Nos países em que esta cultura é mais forte, a democracia é
mais fraca e os direitos das mulheres são muito baixos.
Há vantagens na igualdade de género? Em termos de desenvolvimento económico?
Claro.
A sociedade ignora 50% da sua população e isso é visto como normal. A
sociedade está a ignorar 50% do seu potencial de crescimento e de
desenvolvimento. Nenhum governo que ignore 50% da sua população pode
aspirar a dizer-se democrático. Por exemplo, no Irão o regime não
reconhece metade da população, ou seja, as mulheres. Como é que pode ser
um país democrático?
Há mulheres que dizem não ser feministas e que consideram que a igualdade de género não é uma necessidade.
No
Irão o movimento feminista é muito forte. Mas eu entendo o que está a
dizer. Isso acontece integrado em culturas patriarcais, onde vemos
mulheres que são oprimidas a transferirem essa cultura para os próximos.
Não nos podemos esquecer que cada homem opressor nasceu e cresceu num
lar e com uma mãe.
Eu comparo a cultura patriarcal a uma doença
chamada hemofilia. Hemofilia é uma doença em que o sangue não coagula.
Se tiver uma pequena ferida no corpo, vai sangrar muito. O interessante
nesta doença é que é a mãe que a transfere, que carrega esse gene, e
transfere esse gene para o filho. Não para a filha, mas para o filho. E o
filho fica doente. É assim que a cultura patriarcal funciona: as
mulheres são as vítimas desta cultura mas são também, muitas vezes, as
portadoras desta cultura.
E qual é o tratamento para esta doença?
O
tratamento passa pelo conhecimento e pela consciência. As mulheres têm
de se de se aperceber das convenções erradas que estão enraizadas nesta
cultura, para que possam preveni-la. Por exemplo, há pessoas que
consideram que as mulheres são mais emocionais, mais sentimentais, e que
por isso há empregos que não são bons para elas. Isto são
interpretações masculinas dos assuntos.
Vou partilhar uma memória
minha consigo. O meu neto tem 4 anos e vive nos Estados Unidos. Está num
jardim de infância muito bom. Uma vez comprei-lhe uns ténis e a cor era
rosa. Ele adorou os ténis, levou-os para o jardim e, quando voltou,
estava a chorar. E eu perguntei: ‘Porque é que estás a chorar?’, e ele
disse: ‘Não quero usar mais estes ténis porque os outros meninos gozaram
comigo e disseram que isto era para meninas, não para mim’. Agora, de
onde é que isto vem? De onde é que vem esta categorização? Vem de
interpretações erradas que devem ser combatidas. Para este meu neto, eu
compro tanto carros como bonecas. Porquê? Porque quero mostrar-lhe que
um dia ele vai ser pai e se tiver filhas, raparigas, vai ter de ser
capaz de as apoiar, de as compreender, de as amar e também de lhes
comprar este tipo de ferramentas.
E os pais dele? Não olham para si tipo: ‘não lhe compre isso… Só carros, só azul’?
Felizmente,
não. Os pais pensam como eu. E não se esqueça que a mãe dele é minha
filha, a filha que eu fiz crescer, com a mentalidade que eu tenho, por
isso ela pensa como eu. É esta a chave. É como a hemofilia — é passada
pela mãe. Se a mãe não tiver noção dos perigos desta doença, não pode
educar a criança para desconstruir estas ideias.
O que é que nos impede de atingir a totalidade dos direitos humanos?
Há
muitas questões. Os regimes de ditaduras, a ausência ou a falta de
justiça social e o fosso grande entre ricos e pobres. Atualmente
preocupa-me muito que as crianças pobres não tenham as mesmas
possibilidades de aceder à educação como as crianças ricas. O meu neto
de 4 anos já se entende bem com computadores, conhece vários programas,
sabe jogar, fala comigo todas as noites por Skype. E o mais giro é que
quando eu tenho problemas com computadores, pergunto-lhe a ele. Agora
imagine a diferença entre o meu neto, de 4 anos, e outra criança de 4
anos que viva na Somália. Esta diferença na educação traz muitos
problemas e é muito inglória. Infelizmente eu sou testemunha de que o
mundo está num caminho em que o conhecimento se tornou propriedade dos
ricos.
Disse um dia que acorda sempre otimista mas depois vai dormir a pensar ‘hoje ainda não foi o dia’. Ainda é assim?
É
verdade. Eu acordo sempre otimista a pensar que hoje é que vai ser o
dia em que muita coisa vai mudar. No meu trabalho lido muito com pessoas
que estão em sofrimento, em dor. Quando vou para a cama, tenho sempre a
cabeça muito cansada. Para conseguir acordar no dia seguinte otimista
de novo, para conseguir seguir em frente, o que eu faço é ver um filme
cómico todas as noites antes de dormir. Enquanto estiver viva, vou
continuar a lutar. E tenho de dizer que uma das minhas filhas optou pela
mesma carreira que eu, é jurista, e trabalha na mesma área. E eu espero
que este meu neto de 4 anos, a quem eu compro bonecas, aprenda a ser
feminista no futuro.
Comentário/Leitor
- Terça-feira, Dezembro 29th, 2015“Dou bonecas ao meu neto. Dei-lhe uns ténis cor de rosa. De onde vêm estas categorias?”Percorrida a entrevista constata-se algo curioso. Não se vislumbra o termo: Islão. Chama-lhe “cultura patriarcal”. E relativiza com o que “consta” passar-se nos países democráticos mais desenvolvidos. Como o que comprovado estatisticamente (e nunca particularizado), fosse comparável com o que se passa realmente nos países islâmicos. Mesmo nos “mais desenvolvidos”. Omitindo também que o acesso das mulheres a altos cargos da administração, foi resultado da guerra Irão Iraque. Algo que o regime tenta reverter por ser contrário aos princípios islâmicos (não esquecendo que as políticas liberais do Xá, foi o que justificou a revolução. A corrupção, essa, não diminuiu, até aumentou). Deve ser isto que se considera “narrativa de islâmica moderada” Se tivesse algum efeito o “dar uma boneca” ao neto, significaria que criança que tivesse acesso a armas de brinquedo, seria um “macho” violento. O que não acontece. E se o neto continuar a viver nos USA, não será pelas bonecas que respeitará as mulheres, mas pela força da lei. Porque a “libertação” da mulher não pode depender da “boa vontade” de homens bem-educados. Há direitos a respeitar mesmo pelos que nunca “brincaram com bonecas”.
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