Anselmo Borges*
1 Era uma viagem de altíssimo risco, que muitos
desaconselharam. Mas Francisco achava ser seu dever visitar a África, o
continente pobre. E foi ao Quénia, ao Uganda, à República Centro
Africana, recusando colete à prova de bala e papamóvel blindado. Tinha
mensagens essenciais para entregar: a denúncia do abismo entre a riqueza
e a miséria; plantar uma árvore, num gesto simples, mas carregado de
significado: "a mudança climática é um problema global" e exige "um novo
estilo cultural": "frente à "cultura do descarte, "a cultura do
cuidado"; sobretudo, apelar ao diálogo ecuménico e inter-religioso, que
"não é um luxo, algo opcional, mas algo essencial" em ordem à paz. Na
mesquita central de Bangui, recordou que cristãos e muçulmanos são
"irmãos": "Juntos, digamos "não" ao ódio, à vingança, à violência, em
particular à que se comete em nome de Deus. Deus é paz, salam."
2 É absurdo, aterrador, jihadistas invocarem o santo
Nome de Deus - Allahu Akbar (Deus é o Maior) -, quando matam
indiscriminadamente inocentes, metralhando, degolando, fazendo-se
explodir. Ficamos atónitos e é preciso dizer: se esse deus existisse, só
haveria uma atitude humanamente digna: ser ateu.
Invocar o Nome de Deus para matar - "Deus o quer", foi também o grito
ao apelo do Papa Urbano II à guerra santa - obriga a reflectir. O que
aí fica quereria ser um contributo para a reflexão.
2. 1. Embora admita, como o filósofo J. Monserrat,
jesuíta, que há homens e grupos humanos sem Deus que cultivam uma
mística da inserção na natureza, da harmonia cósmica e da fraternidade
solidária, numa atitude quase-religiosa, mas, em última análise,
impessoal, considero que a essência da religião implica a fé enquanto
entrega confiada ao Mistério último, ao Sagrado, pessoal e dador de
sentido último, salvador/libertador da pessoa e da história.
2. 2. Na reflexão sobre a religião, é essencial
perceber que há um pólo objectivo, precisamente o Mistério último, Poder
Pessoal transcendente e criador, presente no mundo, sem se confundir
com ele. Assim, religioso em sentido estrito é aquele que se entrega
confiadamente a esse Mistério, o Deus oculto, de quem se espera
salvação.
2. 3. O pólo subjectivo é constituído pelas
religiões. É fundamental entender que as religiões são construções
humanas, e, assim, situadas num contexto temporal, cultural, social,
económico, político, geográfico... São mediações, inevitáveis, entre o
Mistério último, o Sagrado oculto e salvador, e os crentes, para
acolhê-lo, tentar dizê-lo, relacionar-se com ele. Estão referidas ao
Mistério, ao Deus libertador, mas elas não são o Mistério, de tal modo
que, no limite, alguém pode ser religioso no sentido profundo, estrito, e
não pertencer a nenhuma religião institucional, como pode acontecer
alguém pertencer a uma religião, viver até da religião enquanto
instituição e nada ter a ver com o Mistério, com Deus. Enquanto
mediações, as religiões têm do melhor e do pior e podem,
desgraçadamente, ser fonte de perversidades, confirmando-se que
"corruptio optimi pessima" (a corrupção do óptimo é péssima).
2. 4. Nenhuma religião tem a Verdade toda. Portanto,
se as religiões não são o Sagrado, o Mistério, e se, mesmo todas
juntas, o não possuem, devem dialogar para tentarem dizê-lo menos mal,
embora sempre na gaguez quase muda.
2. 5. Todas terem verdade não significa que sejam
todas igualmente verdadeiras, pois há assimetria entre elas: por
exemplo, uma religião que faz apelo à violência não é igual a uma
religião que proclama que Deus é amor e manda amar os inimigos.
2. 6. A verdade das religiões afirma-se na prática, no combate pela dignidade, justiça, direitos humanos.
2. 7. Essencial é a leitura histórico-crítica dos
textos sagrados. A sua leitura não pode ser literal, pois implica sempre
uma interpretação, e o fio condutor da leitura é a libertação/salvação
plena. O que neles se encontra de opressão e indignidade serve para
dizer o que Deus não é e o que o ser humano não deve ser.
2. 8. Conquista civilizacional decisiva é a
separação da Igreja e do Estado, da religião e da política: o Estado
laico não tem uma confissão religiosa, é confessionalmente neutro, para
garantir a liberdade religiosa de todos: ter esta religião ou aquela ou
nenhuma, mudar de religião.
2. 9. Mas a laicidade não é a mesma coisa que
laicismo, que pretenderia remeter a religião para a privacidade, "para a
sacristia", como costuma dizer-se, retirando-a, portanto, do espaço
público. As religiões têm direito ao espaço público, não só para se
manifestarem publicamente quanto ao culto, mas também para poderem
pronunciar-se livremente nos debates sobre as grandes temáticas da
sociedade: questões políticas, sociais, económicas, morais. A laicidade
apenas garante que, ao contrário do que se passa nos Estados
teocráticos, as leis não são automaticamente as da Igreja ou da
religião, pois são votadas democraticamente no Parlamento.
---------------* Presbítero português.
Fonte: http://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/interior/allahu-akbar-4926237.html
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