O poeta Armando Freitas Filho sempre escreve para o crítico
literário Antonio Candido -
Ana Branco / Agência O Globo
RIO
- A história do Brasil também existe em forma de cartas. Nosso documento
inaugural, escrito em maio de 1500 por Pero Vaz de Caminha, foi uma missiva.
Relatava ao rei Dom Manuel I, de Portugal, as belezas de uma terra fértil e
inexplorada, onde as moças, ingênuas, andavam com “as vergonhas tão nuas”. Mais
tarde viria a escravidão (e com ela, as cartas de alforria); a chegada da Corte
(e com ela, as cartas de amor entre Dom Pedro I e a Marquesa de Santos); a
instauração da República (e com ela, a carta-testamento que antecedeu o
suicídio de Getúlio Vargas, em 1954). Desde então, a tradição epistolar ficou
algo restrita aos rincões da literatura.
Até
que o vice-presidente da República, Michel Temer, do PMDB, resolveu resgatar a
nobre tradição. Duas semanas atrás, descontente com os rumos do país, ele
enviou uma missiva à mandatária Dilma Rousseff. Poeta e jurista — com livros
publicados em ambas as áreas —, abriu o texto com uma citação em latim: “Verba
volant, scripta manent’’ (“As palavras voam, os escritos permanecem’’). Depois,
usou mais 879 palavras para queixar-se da falta de protagonismo (“Passei os
quatro primeiros anos do governo como vice decorativo”), da falta de cargos (“A
senhora não teve a menor preocupação em eliminar do governo o deputado Edinho
Araújo, deputado de São Paulo e a mim ligado”) e da falta de prestígio (“A
senhora, na posse, manteve reunião de duas horas com o vice-presidente
americano Joe Biden — com quem construí boa amizade — sem convidar-me”).
A
carta, que vazou à imprensa no mesmo dia em que entregue, tornou-se um novo
marco nacional. Ainda que explicitasse uma notória inabilidade política da
presidente — e antecipasse um possível rompimento entre PT e PMDB —, acabou
dizendo mais sobre o remetente. Cássio Cunha Lima, líder do PSDB no Senado,
descreveu-a como “uma demonstração de fisiologismo puro”. Ciro Gomes, voltando
a flertar com a ideia de concorrer à Presidência, disse nunca ter visto “uma
coisa tão ridícula, de tão baixo nível, absolutamente cretina e risível”. Nas
24 horas que se seguiram à divulgação, o documento foi citado na internet ao menos
120 mil vezes (em geral, de forma irônica).
Mas,
para além de rusgas pessoais e políticas, o fato fez surgir uma pergunta mais
mundana na cabeça do brasileiro. Quem, num mundo dominado por Gmail, Facebook,
Skype, FaceTime e WhatsApp, ainda se dignifica a enviar uma carta em papel?
O escritor Marco Lucchesi trocou correspondência com a
psiquiatra Nise da Silveira e ainda envia cartas para autores na Romênia e na
Itália
- Ana Branco / Agência O Globo
—
A carta tem o cheiro, a delicadeza, a cor do selo, o atraso do correio, o
oxigênio da expectativa. É uma estética de grande beleza, que vai desde a
escolha do papel até o contorno da caligrafia — teoriza o escritor Marco
Lucchesi, de 52 anos, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL). — Ela
segue uma liturgia, como o namoro. Te desnuda, exige que você se ponha no
papel. É um confessionário, um divã psicanalítico.
Lucchesi
conta ter se iniciado no métier aos 12 anos, quando enviou uma carta ao
programa de rádio “A voz da América’’. No começo da vida adulta, passou a se
corresponder com a psiquiatra Nise da Silveira, pioneira no tratamento
humanizado em manicômios.
—
Eu tinha ficado atordoado com o que vi após uma visita a um hospital
psiquiátrico — relembra Lucchesi. — Passei a ler tudo sobre o assunto até que
dei de cara com o livro dela. Eu era um velho de 23 anos, e a doutora Nise, uma
jovem de 82. Escrevi dizendo que a amava.
Como
morassem em cidades distintas — ele no Rio, ela em Niterói —, passaram a se
corresponder. Trocaram mensagens por 13 anos, até que Nise adoeceu. Lucchesi
tentou então animá-la, descrevendo uma suposta viagem dos dois a Florença — que
jamais existiu. Em 1999, Nise respondeu: “A b c d não posso escrever mais.
Estou muito doente, abandonada e tentando fazer amizade com a morte. Não é tão
difícil.” Foi sua última missiva. Lucchesi publicou o conjunto em livro, quatro
anos depois:
—
Tinha medo que se perdessem.
Hoje
ele ainda troca cartas com um escritor da Romênia (em romeno) e com um autor da
Itália (em italiano). Também se corresponde com o pintor Israel Pedrosa e com
um detento do Complexo Penitenciário de Bangu (onde vez por outra dá aulas de
Literatura). Está prestes a lançar mais um livro, de cartas trocadas com o
padre italiano Paolo Dall Oglio.
—
Conheci Paolo na Síria, em 1996. Ele tentava proporcionar um encontro entre
judeus, muçulmanos e cristãos. Foi um dos primeiros a ser raptados pelo Estado
Islâmico — diz. — Doei metade das cartas à Biblioteca Nacional, metade à ABL.
Ao contrário da carta do Temer, eram muito bem escritas.
Ele
faz uma longa crítica à carta do vice-presidente, que define como “vergonhosa,
primária, freudiana e horrivelmente escrita”:
—
Um dos protocolos essenciais da carta é a reserva. Uma carta não pode ser
reservada e aberta ao mesmo tempo. Por isso entra no museu das coisas mais
deploráveis que atingiram a política brasileira nos últimos dois anos. Torço
para que o texto não tenha sido escrito pelo Temer, não só pelo desastre moral,
mas pela qualidade, que é péssima.
A
INTIMIDADE DA LETRA E DO PAPEL
O
sentimento é endossado pelo poeta Armando Freitas Filho, de 75 anos:
—
Achei a carta do Temer infantil. Não porque eu seja um homem de esquerda, mas
porque é um chororô de um vice-presidente da República. Parece um ginasiano se
queixando à mãe.
Missivista
contumaz, Freitas Filho já trocou correspondências com Ana Cristina Cesar e com
Carlos Drummond de Andrade. Diz que a carta carrega “a intimidade da letra e do
papel”:
—
Eu, por exemplo, tenho papel de carta timbrado com meu nome. Passo um risco em
cima do Freitas Filho quando quero que ela ganhe um teor mais íntimo.
É
assim quando escreve a Antonio Candido, maior crítico literário do Brasil, com
quem se corresponde há 15 anos:
—
Ele não usa computador, não gosta. Escreve à mão, sem nenhuma rasura, em papel
branco, sem pauta. Eu também, para acompanhar aquela letra linda. Até fiz um
poema chamado “Família de Letras”, que fala da linhagem ortográfica que vem de
Machado de Assis e passa por Graciliano Ramos. O traço dos três é o mesmo.
Diz
ter no crítico um conselheiro não apenas literário:
—
Se tenho alguma dúvida, as soluções estão com ele. Ao dormir, fico pensando na
carta. Rememoro o que ele diz, como diz, num estilo perfeito, nada afetado.
Exemplifica:
—
Quando minha mãe morreu, Antonio Candido me escreveu, dizendo se sentir órfão
até hoje. Foi um esclarecimento, clareou aquele estado de luto, trouxe uma luz
e uma companhia. Ele é como Carlos Drummond, que não deixava nada sem resposta.
Drummond respondia a todos. Nunca perguntei a ele como tinha tempo para tudo:
poema, trabalho, falar no telefone e responder cartas.
A
‘CARTEIRA’ E O POETA
A
professora aposentada Helena Vicari, de 75 anos, também não perguntou. Preferiu
exercer o privilégio sem questionar o que levou o cânone da poesia brasileira a
se corresponder com alguém que não conhecia ao longo de 26 anos.
—
Minhas cartinhas não eram fenomenais; foi uma coisa que jamais imaginei —
lembra. — Eu ficava comovida em saber que o maior poeta do Brasil respondia à
professorinha dos confins de Guaporé. Ele era e sempre foi muito querido,
terno. Eram três, quatro cartas por ano.
A
troca começou quando Helena ainda estudava Literatura, no interior gaúcho.
Indignada com uma professora que reprovava os versos de Drummond, resolveu
escrever ao próprio, defendendo-o. Recebeu em troca uma resposta polida,
datilografada, e um cartão com um autógrafo. Helena chegou a vir ao Rio duas
vezes, mas não teve coragem de visitá-lo. Na terceira, com Drummond já
falecido, encontrou seu neto, Pedro Augusto. Abraçou-o e disse: “Esse abraço
era para o seu avô.” A correspondência rendeu texto na revista “Piauí” e
inspirou a diretora Mirela Kruel a filmar o documentário “O último poema”
(2015).
Helena
ainda se corresponde com Maria Esenilde da Costa, professora da Paraíba que
conheceu (por carta) há 33 anos.
—
Escrevi para uma revista procurando pessoas para me corresponder — conta. — Várias
responderam. Selecionei 19, e acabei me afeiçoando a ela e a uma menina de Belo
Horizonte.
Dois
anos atrás, Maria Esenilde resolveu migrar da troca escrita para o encontro
pessoal. Tomou um avião da Paraíba para o Rio Grande do Sul; passou 17 dias na casa
de Helena. Depois, voltaram à rotina missivista.
—
Meu pai vendia sapatos, tecidos, viajava muito, escrevia cartas às filhas. Eu
ficava encantada — conta Helena. — A gente se sente mais próximo quando recebe
uma carta. É uma visita. A alma que vai junto com o envelope.
No
caso de Temer, ela não viu alma nem visita:
—
Aquela carta parece uma ciranda. Vai escrever pra dizer isso? Não confio.
Cartas do poeta Cruz e Sousa para a mulher Gavita Rosa,
preservadas na Fundaçao Casa de Rui Barbosa
- Ana Branco / Agência O Globo
Embora
date de cinco séculos atrás, o acervo epistolar brasileiro só começou a ser
estudado a fundo nos anos 1990, quando a USP publicou um livro com as cartas de
Mário de Andrade. Hoje, as mais importantes coleções estão com a Fundação Casa
de Rui Barbosa e com o Instituto Moreira Salles, ambos no Rio. Eliane
Vasconcellos, pesquisadora da Casa de Rui, diz que alguma cartas, como as de
Cruz e Sousa, ainda a emocionam.
—
Há cartas de amor, cartas com pedido de emprego, cartas que falam de livros que
seriam publicados e não foram — enumera. — Algumas do Manuel Bandeira têm
esboços de poemas. Já o Fernando Sabino escreveu a Clarice Lispector sugerindo
edições em “Laços de família’’.
Ela
acredita que, no futuro, a instituição passará a receber um acervo cada vez
maior de e-mails:
—
Já contamos com uma coleção, do Rodrigo Souza Leão, mas a linguagem é distinta.
As cartas chegavam a ter sete páginas. O e-mail é pontual, sucinto.
Ela
mesma só escreve cartas em situações específicas:
—
Outro dia escrevi para a síndica do meu prédio, com uma reclamação. A carta é
algo formal, que você entrega em mãos. Fazia sentido.
Cartas
anunciam amores, brigas, cobranças, rompimentos. Idosos enviam cartas de
reclamação, adultos enviam cartas de aniversário, nubentes enviam cartas com
convite de casamento. Segundo dados dos Correios, das sete bilhões de cartas e
correspondências enviadas no Brasil em 2015, 133 milhões eram de pessoas
físicas (não comerciais). Ao menos 500 mil eram endereçadas ao Papai Noel
(graças ao programa voluntário em que é possível “adotar” uma carta para
realizar o pedido de uma criança). Em tempos menos analógicos, o número
surpreende: em 2010, foram 66 milhões de cartas na mesma categoria. Mas nada
que supere as 6,9 bilhões de missivas comerciais enviadas por pessoas jurídicas
este ano. Ou mesmo em 2010: 6,8 bilhões.
Na
música, cartas foram cantadas por Odair José, Waldick Soriano, Erasmo Carlos,
Maria Bethânia, João Mineiro e Marciano. Na televisão, Xuxa fermentou o
imaginário infantil (e adulto) com a chuva de cartas que lançava ao alto nos
anos 1980. No cinema, Fernanda Montenegro recebeu a indicação ao Oscar pelo
papel de escrevedora de cartas em “Central do Brasil’’.
O designer Kammal João transformou em livro as cartas que
escreveu para o irmão durante uma viagem
- Guito Moreto / Agência O Globo
Seis
anos atrás, quando viajou ao Norte e ao Nordeste, o designer Kammal João lançou
mão da prática. Enviou uma série de cartas a Amir, o irmão caçula, então com 7
anos.
—
Eu havia achado alguns papéis antigos do nosso avô. Desenhava neles todo dia,
durante a viagem, e enviava uma vez por semana, porque alguns lugares não
tinham Correios. As cartas eram mais notas, impressões de viagem. Era uma
pesquisa sobre o olhar do artista viajante. Escolhi meu irmão como interlocutor
para simplificar a linguagem, torná-la mais lúdica.
No
começo do ano, a correspondência foi lançada em livro.
Já
Luiza Helena Rizzo Perez, de 19 anos, começou a se corresponder há um ano,
quando inscreveu-se num dos vários sites dedicados a aficionados por cartas
(eles existem).
—
Como eu estudo Turismo, quis trocar cartas com pessoas de outros países —
conta. — Acabou sendo muito mais interessante do que conversar pela internet.
Você vê a letra, recebe fotos, postais. Guardo tudo numa caixinha.
Dentre
as interlocutoras há uma que mora nos Estados Unidos e outra que vive no Japão
(são brasileiras; Luiza desistiu de se corresponder com homens após dois
episódios em que as missivas estavam mais para Fórum da “Ele e Ela’’).
—
A menina do Japão é a Talita. Tem 27 anos, mora em Tóquio, a família é japonesa
— conta. — Ela é dona de uma loja de motos. Mora lá desde os 18 anos.
As
duas trocaram sete cartas. Luiza enviou fotos de amigos e de pontos turísticos.
Talita respondeu com desenhos e retratos do gato.
Ensinou-lhe
também a balbuciar o japonês:
—
Quando leio as cartas, vejo como é diferente a religião, a cultura, o modo como
as pessoas vivem. Fiquei sabendo que tudo por lá é voltado para a tecnologia, e
que todo mundo usa quimono.
A
última carta foi mandada há duas semanas por Luiza. Ela perguntava o que Talita
faria no fim do ano, se tinha planos de viagem. Também contava que havia
reativado seu aquário e que ganharia um cachorro no próximo ano. Foi mandada de
uma agência dos Correios no Grajaú, a alguns quilômetros de sua casa. O envio
custou cerca de R$ 4.
A atriz Keli Freitas coleciona cartas antigas compradas em
feiras do Rio e já usou trechos em vários trabalhos
- Daniel Marenco /
Agência O Globo
Tudo
começou com Geraldo e Marina. Nos idos de 1950, ele escrevia para ela. Seus
textos, lidos hoje, dão a pista de que aquele era um caso mal resolvido. “Ai,
não escreve isso, Geraldo, ela vai querer que você suma”, pensava a atriz Keli
Freitas, enquanto se aprofundava no material. Aquelas eram apenas as primeiras
cartas das quase duas mil que Keli guarda em casa, grande parte delas adquirida
em feiras de antiguidade, como a da Praça XV. No começo, ela ficou apenas
encantada com todos aqueles escritos. Com o tempo, este conteúdo deu origem a
trabalhos acadêmicos, peças de teatro, carimbos...
—
Um dos projetos que desenvolvi foi o Carimbaria. Pinço frases que praticamente
saltam das cartas e as transformo em carimbos, todos feitos do jeito antigo —
explica.
São
frases como “Estamos tão velhos. Agora é que precisamos um do outro”. Ou “Que
aflição que tanta coisa ficará por conhecer, não?”. Hoje a atriz estará no Bazar
da Passagem (Rua da Passagem 142), das 15h às 20h, expondo este material.
Além
dos projetos que ela mesma se propõe a fazer a partir das cartas, vários
trabalhos dos quais participa têm relação com troca de correspondência. Um
acaso sempre bem-vindo. Em janeiro, Keli será Emília, na série “Ligações
perigosas”, da Globo, que é baseada em um romance epistolar. Já a peça
“Incêndios”, com a qual ficou meses em cartaz, começava com a leitura de duas
cartas:
—
Receber uma carta é receber também o papel em que a pessoa escreveu,
transportou a algum
lugar,
colocou em um envelope... Uma pessoa que você ama ou tem
saudades. Este universo é fascinante.
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Reportagem por Roberto Kaz
http://oglobo.globo.com/cultura/depois-da-polemica-carta-de-temer-escritores-debatem-correspondencias-18333083
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