domingo, 20 de dezembro de 2015

Depois da polêmica carta de Temer, escritores debatem correspondências 'É uma estética bela, que vai da escolha do papel até a caligrafia', teoriza Marco Lucches


O poeta Armando Freitas Filho sempre escreve para o crítico literário Antonio Candido -
 Ana Branco / Agência O Globo

RIO - A história do Brasil também existe em forma de cartas. Nosso documento inaugural, escrito em maio de 1500 por Pero Vaz de Caminha, foi uma missiva. Relatava ao rei Dom Manuel I, de Portugal, as belezas de uma terra fértil e inexplorada, onde as moças, ingênuas, andavam com “as vergonhas tão nuas”. Mais tarde viria a escravidão (e com ela, as cartas de alforria); a chegada da Corte (e com ela, as cartas de amor entre Dom Pedro I e a Marquesa de Santos); a instauração da República (e com ela, a carta-testamento que antecedeu o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954). Desde então, a tradição epistolar ficou algo restrita aos rincões da literatura.

Até que o vice-presidente da República, Michel Temer, do PMDB, resolveu resgatar a nobre tradição. Duas semanas atrás, descontente com os rumos do país, ele enviou uma missiva à mandatária Dilma Rousseff. Poeta e jurista — com livros publicados em ambas as áreas —, abriu o texto com uma citação em latim: “Verba volant, scripta manent’’ (“As palavras voam, os escritos permanecem’’). Depois, usou mais 879 palavras para queixar-se da falta de protagonismo (“Passei os quatro primeiros anos do governo como vice decorativo”), da falta de cargos (“A senhora não teve a menor preocupação em eliminar do governo o deputado Edinho Araújo, deputado de São Paulo e a mim ligado”) e da falta de prestígio (“A senhora, na posse, manteve reunião de duas horas com o vice-presidente americano Joe Biden — com quem construí boa amizade — sem convidar-me”).

A carta, que vazou à imprensa no mesmo dia em que entregue, tornou-se um novo marco nacional. Ainda que explicitasse uma notória inabilidade política da presidente — e antecipasse um possível rompimento entre PT e PMDB —, acabou dizendo mais sobre o remetente. Cássio Cunha Lima, líder do PSDB no Senado, descreveu-a como “uma demonstração de fisiologismo puro”. Ciro Gomes, voltando a flertar com a ideia de concorrer à Presidência, disse nunca ter visto “uma coisa tão ridícula, de tão baixo nível, absolutamente cretina e risível”. Nas 24 horas que se seguiram à divulgação, o documento foi citado na internet ao menos 120 mil vezes (em geral, de forma irônica).
Mas, para além de rusgas pessoais e políticas, o fato fez surgir uma pergunta mais mundana na cabeça do brasileiro. Quem, num mundo dominado por Gmail, Facebook, Skype, FaceTime e WhatsApp, ainda se dignifica a enviar uma carta em papel?
 
O escritor Marco Lucchesi trocou correspondência com a psiquiatra Nise da Silveira e ainda envia cartas para autores na Romênia e na Itália 
- Ana Branco / Agência O Globo

— A carta tem o cheiro, a delicadeza, a cor do selo, o atraso do correio, o oxigênio da expectativa. É uma estética de grande beleza, que vai desde a escolha do papel até o contorno da caligrafia — teoriza o escritor Marco Lucchesi, de 52 anos, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL). — Ela segue uma liturgia, como o namoro. Te desnuda, exige que você se ponha no papel. É um confessionário, um divã psicanalítico.

Lucchesi conta ter se iniciado no métier aos 12 anos, quando enviou uma carta ao programa de rádio “A voz da América’’. No começo da vida adulta, passou a se corresponder com a psiquiatra Nise da Silveira, pioneira no tratamento humanizado em manicômios.

— Eu tinha ficado atordoado com o que vi após uma visita a um hospital psiquiátrico — relembra Lucchesi. — Passei a ler tudo sobre o assunto até que dei de cara com o livro dela. Eu era um velho de 23 anos, e a doutora Nise, uma jovem de 82. Escrevi dizendo que a amava.

Como morassem em cidades distintas — ele no Rio, ela em Niterói —, passaram a se corresponder. Trocaram mensagens por 13 anos, até que Nise adoeceu. Lucchesi tentou então animá-la, descrevendo uma suposta viagem dos dois a Florença — que jamais existiu. Em 1999, Nise respondeu: “A b c d não posso escrever mais. Estou muito doente, abandonada e tentando fazer amizade com a morte. Não é tão difícil.” Foi sua última missiva. Lucchesi publicou o conjunto em livro, quatro anos depois:

— Tinha medo que se perdessem.

Hoje ele ainda troca cartas com um escritor da Romênia (em romeno) e com um autor da Itália (em italiano). Também se corresponde com o pintor Israel Pedrosa e com um detento do Complexo Penitenciário de Bangu (onde vez por outra dá aulas de Literatura). Está prestes a lançar mais um livro, de cartas trocadas com o padre italiano Paolo Dall Oglio.

— Conheci Paolo na Síria, em 1996. Ele tentava proporcionar um encontro entre judeus, muçulmanos e cristãos. Foi um dos primeiros a ser raptados pelo Estado Islâmico — diz. — Doei metade das cartas à Biblioteca Nacional, metade à ABL. Ao contrário da carta do Temer, eram muito bem escritas.

Ele faz uma longa crítica à carta do vice-presidente, que define como “vergonhosa, primária, freudiana e horrivelmente escrita”:

— Um dos protocolos essenciais da carta é a reserva. Uma carta não pode ser reservada e aberta ao mesmo tempo. Por isso entra no museu das coisas mais deploráveis que atingiram a política brasileira nos últimos dois anos. Torço para que o texto não tenha sido escrito pelo Temer, não só pelo desastre moral, mas pela qualidade, que é péssima.

A INTIMIDADE DA LETRA E DO PAPEL

O sentimento é endossado pelo poeta Armando Freitas Filho, de 75 anos:

— Achei a carta do Temer infantil. Não porque eu seja um homem de esquerda, mas porque é um chororô de um vice-presidente da República. Parece um ginasiano se queixando à mãe.

Missivista contumaz, Freitas Filho já trocou correspondências com Ana Cristina Cesar e com Carlos Drummond de Andrade. Diz que a carta carrega “a intimidade da letra e do papel”:

— Eu, por exemplo, tenho papel de carta timbrado com meu nome. Passo um risco em cima do Freitas Filho quando quero que ela ganhe um teor mais íntimo.

É assim quando escreve a Antonio Candido, maior crítico literário do Brasil, com quem se corresponde há 15 anos:

— Ele não usa computador, não gosta. Escreve à mão, sem nenhuma rasura, em papel branco, sem pauta. Eu também, para acompanhar aquela letra linda. Até fiz um poema chamado “Família de Letras”, que fala da linhagem ortográfica que vem de Machado de Assis e passa por Graciliano Ramos. O traço dos três é o mesmo.

Diz ter no crítico um conselheiro não apenas literário:

— Se tenho alguma dúvida, as soluções estão com ele. Ao dormir, fico pensando na carta. Rememoro o que ele diz, como diz, num estilo perfeito, nada afetado.

Exemplifica:

— Quando minha mãe morreu, Antonio Candido me escreveu, dizendo se sentir órfão até hoje. Foi um esclarecimento, clareou aquele estado de luto, trouxe uma luz e uma companhia. Ele é como Carlos Drummond, que não deixava nada sem resposta. Drummond respondia a todos. Nunca perguntei a ele como tinha tempo para tudo: poema, trabalho, falar no telefone e responder cartas.

A ‘CARTEIRA’ E O POETA

A professora aposentada Helena Vicari, de 75 anos, também não perguntou. Preferiu exercer o privilégio sem questionar o que levou o cânone da poesia brasileira a se corresponder com alguém que não conhecia ao longo de 26 anos.

— Minhas cartinhas não eram fenomenais; foi uma coisa que jamais imaginei — lembra. — Eu ficava comovida em saber que o maior poeta do Brasil respondia à professorinha dos confins de Guaporé. Ele era e sempre foi muito querido, terno. Eram três, quatro cartas por ano.

A troca começou quando Helena ainda estudava Literatura, no interior gaúcho. Indignada com uma professora que reprovava os versos de Drummond, resolveu escrever ao próprio, defendendo-o. Recebeu em troca uma resposta polida, datilografada, e um cartão com um autógrafo. Helena chegou a vir ao Rio duas vezes, mas não teve coragem de visitá-lo. Na terceira, com Drummond já falecido, encontrou seu neto, Pedro Augusto. Abraçou-o e disse: “Esse abraço era para o seu avô.” A correspondência rendeu texto na revista “Piauí” e inspirou a diretora Mirela Kruel a filmar o documentário “O último poema” (2015).

Helena ainda se corresponde com Maria Esenilde da Costa, professora da Paraíba que conheceu (por carta) há 33 anos.

— Escrevi para uma revista procurando pessoas para me corresponder — conta. — Várias responderam. Selecionei 19, e acabei me afeiçoando a ela e a uma menina de Belo Horizonte.

Dois anos atrás, Maria Esenilde resolveu migrar da troca escrita para o encontro pessoal. Tomou um avião da Paraíba para o Rio Grande do Sul; passou 17 dias na casa de Helena. Depois, voltaram à rotina missivista.

— Meu pai vendia sapatos, tecidos, viajava muito, escrevia cartas às filhas. Eu ficava encantada — conta Helena. — A gente se sente mais próximo quando recebe uma carta. É uma visita. A alma que vai junto com o envelope.

No caso de Temer, ela não viu alma nem visita:

— Aquela carta parece uma ciranda. Vai escrever pra dizer isso? Não confio.
 
Cartas do poeta Cruz e Sousa para a mulher Gavita Rosa, preservadas na Fundaçao Casa de Rui Barbosa
 - Ana Branco / Agência O Globo

Embora date de cinco séculos atrás, o acervo epistolar brasileiro só começou a ser estudado a fundo nos anos 1990, quando a USP publicou um livro com as cartas de Mário de Andrade. Hoje, as mais importantes coleções estão com a Fundação Casa de Rui Barbosa e com o Instituto Moreira Salles, ambos no Rio. Eliane Vasconcellos, pesquisadora da Casa de Rui, diz que alguma cartas, como as de Cruz e Sousa, ainda a emocionam.

— Há cartas de amor, cartas com pedido de emprego, cartas que falam de livros que seriam publicados e não foram — enumera. — Algumas do Manuel Bandeira têm esboços de poemas. Já o Fernando Sabino escreveu a Clarice Lispector sugerindo edições em “Laços de família’’.

Ela acredita que, no futuro, a instituição passará a receber um acervo cada vez maior de e-mails:

— Já contamos com uma coleção, do Rodrigo Souza Leão, mas a linguagem é distinta. As cartas chegavam a ter sete páginas. O e-mail é pontual, sucinto.

Ela mesma só escreve cartas em situações específicas:

— Outro dia escrevi para a síndica do meu prédio, com uma reclamação. A carta é algo formal, que você entrega em mãos. Fazia sentido.

Cartas anunciam amores, brigas, cobranças, rompimentos. Idosos enviam cartas de reclamação, adultos enviam cartas de aniversário, nubentes enviam cartas com convite de casamento. Segundo dados dos Correios, das sete bilhões de cartas e correspondências enviadas no Brasil em 2015, 133 milhões eram de pessoas físicas (não comerciais). Ao menos 500 mil eram endereçadas ao Papai Noel (graças ao programa voluntário em que é possível “adotar” uma carta para realizar o pedido de uma criança). Em tempos menos analógicos, o número surpreende: em 2010, foram 66 milhões de cartas na mesma categoria. Mas nada que supere as 6,9 bilhões de missivas comerciais enviadas por pessoas jurídicas este ano. Ou mesmo em 2010: 6,8 bilhões.

Na música, cartas foram cantadas por Odair José, Waldick Soriano, Erasmo Carlos, Maria Bethânia, João Mineiro e Marciano. Na televisão, Xuxa fermentou o imaginário infantil (e adulto) com a chuva de cartas que lançava ao alto nos anos 1980. No cinema, Fernanda Montenegro recebeu a indicação ao Oscar pelo papel de escrevedora de cartas em “Central do Brasil’’.

 
O designer Kammal João transformou em livro as cartas que escreveu para o irmão durante uma viagem
 - Guito Moreto / Agência O Globo

Seis anos atrás, quando viajou ao Norte e ao Nordeste, o designer Kammal João lançou mão da prática. Enviou uma série de cartas a Amir, o irmão caçula, então com 7 anos.

— Eu havia achado alguns papéis antigos do nosso avô. Desenhava neles todo dia, durante a viagem, e enviava uma vez por semana, porque alguns lugares não tinham Correios. As cartas eram mais notas, impressões de viagem. Era uma pesquisa sobre o olhar do artista viajante. Escolhi meu irmão como interlocutor para simplificar a linguagem, torná-la mais lúdica.

No começo do ano, a correspondência foi lançada em livro.

Já Luiza Helena Rizzo Perez, de 19 anos, começou a se corresponder há um ano, quando inscreveu-se num dos vários sites dedicados a aficionados por cartas (eles existem).

— Como eu estudo Turismo, quis trocar cartas com pessoas de outros países — conta. — Acabou sendo muito mais interessante do que conversar pela internet. Você vê a letra, recebe fotos, postais. Guardo tudo numa caixinha.

Dentre as interlocutoras há uma que mora nos Estados Unidos e outra que vive no Japão (são brasileiras; Luiza desistiu de se corresponder com homens após dois episódios em que as missivas estavam mais para Fórum da “Ele e Ela’’).

— A menina do Japão é a Talita. Tem 27 anos, mora em Tóquio, a família é japonesa — conta. — Ela é dona de uma loja de motos. Mora lá desde os 18 anos.

As duas trocaram sete cartas. Luiza enviou fotos de amigos e de pontos turísticos. Talita respondeu com desenhos e retratos do gato.

Ensinou-lhe também a balbuciar o japonês:

— Quando leio as cartas, vejo como é diferente a religião, a cultura, o modo como as pessoas vivem. Fiquei sabendo que tudo por lá é voltado para a tecnologia, e que todo mundo usa quimono.

A última carta foi mandada há duas semanas por Luiza. Ela perguntava o que Talita faria no fim do ano, se tinha planos de viagem. Também contava que havia reativado seu aquário e que ganharia um cachorro no próximo ano. Foi mandada de uma agência dos Correios no Grajaú, a alguns quilômetros de sua casa. O envio custou cerca de R$ 4.

 
A atriz Keli Freitas coleciona cartas antigas compradas em feiras do Rio e já usou trechos em vários trabalhos 
- Daniel Marenco / Agência O Globo

Tudo começou com Geraldo e Marina. Nos idos de 1950, ele escrevia para ela. Seus textos, lidos hoje, dão a pista de que aquele era um caso mal resolvido. “Ai, não escreve isso, Geraldo, ela vai querer que você suma”, pensava a atriz Keli Freitas, enquanto se aprofundava no material. Aquelas eram apenas as primeiras cartas das quase duas mil que Keli guarda em casa, grande parte delas adquirida em feiras de antiguidade, como a da Praça XV. No começo, ela ficou apenas encantada com todos aqueles escritos. Com o tempo, este conteúdo deu origem a trabalhos acadêmicos, peças de teatro, carimbos...

— Um dos projetos que desenvolvi foi o Carimbaria. Pinço frases que praticamente saltam das cartas e as transformo em carimbos, todos feitos do jeito antigo — explica.

São frases como “Estamos tão velhos. Agora é que precisamos um do outro”. Ou “Que aflição que tanta coisa ficará por conhecer, não?”. Hoje a atriz estará no Bazar da Passagem (Rua da Passagem 142), das 15h às 20h, expondo este material.

Além dos projetos que ela mesma se propõe a fazer a partir das cartas, vários trabalhos dos quais participa têm relação com troca de correspondência. Um acaso sempre bem-vindo. Em janeiro, Keli será Emília, na série “Ligações perigosas”, da Globo, que é baseada em um romance epistolar. Já a peça “Incêndios”, com a qual ficou meses em cartaz, começava com a leitura de duas cartas:

— Receber uma carta é receber também o papel em que a pessoa escreveu, transportou a algum
lugar, colocou em um envelope... Uma pessoa que você ama ou tem saudades. Este universo é fascinante.
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Reportagem por Roberto Kaz
http://oglobo.globo.com/cultura/depois-da-polemica-carta-de-temer-escritores-debatem-correspondencias-18333083

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