domingo, 13 de dezembro de 2015

ARS SINE SCIENTIA NIHIL EST**


 Bernardo Bueno*
 
O pianista inglês James Rhodes diz que seis horas de sono por dia são mais que razoáveis, e que, mesmo considerando as oito horas diárias para trabalhar e, na média, mais umas quatro horas para resolver as tarefas do dia a dia (buscar as crianças no colégio, fazer as compras), nos restariam seis horas para realizar nossos sonhos. Ele mesmo diz ter abandonado um trabalho no centro financeiro em Londres para dedicar-se ao piano. Há quem acredite que o artista é um ser iluminado, inspirado pelas musas, e que, por isso, merece certa reverência. Ao resto de nós, seres de carne e osso, resta olhar para essas criaturas divinas e suspirar, murmurando: “Se eu tivesse o talento dele, eu também seria uma grande musicista” ou “se eu escrevesse como ela, eu seria um autor respeitado.” Do outro lado da moeda – e eu me coloco deste lado da moeda — estão os artesãos. “Ars sine scientia nihil est”: a arte sem o conhecimento é nada.

Era nisso que acreditava Jean Mignot, arquiteto francês que trabalhou na catedral de Milão. Conta a história que Mignot avisou, baseando- se em cálculos estruturais, que a catedral desmoronaria se os planos originais fossem seguidos, e graças a ele a construção permaneceu. É preciso conhecer para criar. Talento não é nada sem trabalho. Sucesso é um por cento inspiração e noventa e nove por cento transpiração etc. Ainda há defensores da outra teoria – a do talento inato, puro – mas isso é mais um preconceito de raízes profundas do que outra coisa. Mesmo assim, isso não quer dizer que não acredite em talento. Talvez minha definição de talento seja um pouquinho diferente: não a facilidade em desenvolver uma habilidade – é também a vontade de fazê-lo. A paixão em aprender. A paixão em criar.

Vamos deixar a discussão sobre se é possível aprender ou ensinar a escrever (e o quanto o talento tem a ver com essa história toda) de lado por um instante, e vamos pensar naquele brilho nos olhos – o brilho de quem está se realizando, de quem está legitimamente envolvido em um momento artístico. Robert Farrar Capon – padre, linguista, corredor, marceneiro e cozinheiro – disse: “Deixe que Deus se preocupe com a sua modéstia; eu quero ver o seu entusiasmo.” Eu tenho o privilégio de ler a novíssima literatura brasileira. De uma certa maneira, eu sou o ultimate hipster da literatura. Todas minhas conversas podem começar com “estou lendo uma autora nova, você provavelmente nunca ouviu falar dela.” Alguns dos meus alunos estão ali para experimentar. Alguns são estudantes de Letras.

A maioria vem de outros cursos: de arquitetura a medicina, de jornalismo a física. Alguns dizem “quero ser escritor”; outros dizem “eu nunca escrevi antes”. Para todos nós dizemos a mesma coisa: a arte sem conhecimento não é nada. A receita: primeiro é preciso afastar o medo da página em branco (a página em branco é a metáfora perfeita do novo: um novo emprego, uma nova cidade, um novo curso na universidade, infinitas possibilidades), e o medo de expor-se.

Tememos escrever bobagem (assim como tememos falar bobagem naquela reunião do trabalho, arrepender-se de mudar de cidade, achar que aquele curso foi uma escolha ruim), ou escrever “errado” (por outro lado, criar bobagem e escrever errado ainda é melhor do que não criar nada, não escrever nada). Depois de superar esse medo, vamos falar sobre as técnicas, a história, a tradição. James Rhodes deixou um emprego no centro financeiro de Londres para dedicar-se ao piano, e eu fico pensando sobre os textos que eu leio todos os dias, dos novíssimos autores e autoras da novíssima geração. Eu penso no talento, e na responsabilidade por trás de saber fazer alguma coisa. Na responsabilidade por trás do amor pela criação. Sim, eu sei – há o trabalho, as crianças, o tempo, o dinheiro, a empresa, o talento dos outros: todas essas coisas que entram na frente. E todo o caminho até aprender a fazer alguma coisa bem. E aí eu penso: a arte sem o conhecimento não é nada.
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*Escritor, professor da Faculdade de Letras (PUCRS
**Arte sem conhecimento não é nada
Fonte: Correio do Povo - Caderno de Sábado, 14/11/2015 pág.3
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