Com
quase 85 anos, Fernando Henrique Cardoso diz que nunca assistiu a um período em
que a corrupção, “com a bênção do Governo”, fosse tão sistemática
Fernando Henrique Cardoso não nega o
papel de consciência crítica que lhe é internacionalmente reconhecido. Está em
Portugal para falar do futuro, mas é para o presente do Brasil que olha com
grande preocupação. E avisa: é urgente avançar com a renovação da política
brasileira
Bem disposto, Fernando Henrique
Cardoso, ex-Presidente do Brasil entre 1994 e 2002, eleito sempre à primeira
volta com maioria absoluta, recebe o Expresso no dia a seguir àquele em que foi
aberto o processo de destituição da atual chefe de Estado, Dilma Roussef.
Veio
falar do mundo nos próximos cem anos, partilhar clarividência, a convite da
Fundação Champalimaud, onde é curador. Mas as suas preocupações com o seu país
são mais urgentes. Tão urgentes que é com muita prudência que prefere falar.
Afinal, como disse na conversa com o Expresso, “as palavras de quem tem
responsabilidade não podem ser vãs”.
Apesar
de não abandonar a sensatez, fala sem meias palavras, hesitações ou temas tabu.
Quase a completar 85 anos, depois de ter sido um pouco de tudo na política do
seu país — senador, ministro das Relações Exteriores e das Finanças, duas vezes
Presidente —, intelectual de prestígio, sociólogo de reputação internacional e
depois de ter alcançado até a imortalidade da Academia Brasileira de Letras,
FHC é um homem tranquilo. Sabe que a posteridade lhe está assegurada e vê na
atualidade renascer a sua importância como voz crítica da nação.
Há
um mês, a prestigiada revista “The Economist” nomeou-o “líder não oficial da
oposição” e disse que a sua voz é mais influente do que nunca. Não perde tempo
com falsas modéstias, assumindo que há uma parte do Brasil que gostaria de o
ver ostentar de novo a faixa presidencial. Ele sorri e concorda, lembra que já
por várias vezes os homens do seu partido, o Partido da Social-Democracia
Brasileira (PSDB), pediram que voltasse ao palco político.
Mas
FHC sabe que, aos 84 anos, não seria fácil administrar um país com tantos
problemas: “É um emprego a tempo inteiro, muito desgastante.” Assim, prefere
apostar na renovação e avança logo com três nomes: Aécio Neves, líder do PSDB,
José Serra, senador e seu ex-ministro da Saúde, e Geraldo Alckmin, governador
de São Paulo. Todos já foram candidatos à presidência.
“As
palavras de quem tem responsabilidade
não podem ser vãs”
Sublinha
que neste momento “muitas pessoas têm visão crítica do que está a acontecer” e
que serão as vozes da rua que vão pressionar as mudanças na cena
político-partidária do Brasil. E mesmo que o processo de destituição de Dilma
Roussef não atinja o objetivo de afastar a atual Presidente, FHC alerta para a
fragilização da credibilidade do país e dos seus líderes. “Aberto o processo de
destituição, a sensação imediata é de perda do exercício do poder”, afirma.
Coerente
com afirmações anteriores, volta a pedir que seja Dilma Rousseff a ter o que
ele classifica de “um ato de grandeza” e que abandone o Palácio do Planalto,
sede do Governo brasileiro, pelos próprios pés. E volta a preservar a
idoneidade pessoal da Presidente: “A questão não é a falta de honradez de Dilma,
esta não é uma questão pessoal, mas de incumprimento da Lei de Responsabilidade
Fiscal.” Em causa, explica, está a utilização de verbas públicas para a compra
de votos pelo partido que suporta o Executivo, e não o enriquecimento
individual da Presidente.
“A
questão não é a falta de honradez de Dilma, esta
não é uma questão pessoal”
Democrata
por essência, é sempre ao conceito fundamental que retorna durante a conversa.
Até para explicar que “democracia não pode ser confundida com o voto da
maioria, é também preciso assegurar as leis e respeitar os direitos das
minorias”.
É
por isso que desdramatiza o momento atual da política portuguesa, entendido por
FHC como uma consequência do sistema parlamentarista. E quem não estiver
satisfeito, avisa, tem apenas de “conseguir outra maioria parlamentar”.
Defensor deste sistema — “é mais saudável do que o presidencialismo” —,
reconhece, no entanto, que o Brasil ainda não está preparado para avançar nesta
direção: “Temos poucos partidos.”
Mas
se o sistema político não pode ser substituído, deve ser reformado, defende.
Até porque, “um sistema político que chegou a ter 39 ministérios está doente,
tem de ser alterado”. Como? Com a apresentação de uma agenda e a construção de
uma coligação, capaz de assegurar a coesão nacional, defende FHC. Mas, avisa,
“é preciso criar uma nova maioria, que não surgirá apenas da capacidade de
somar pessoas, mas, sobretudo, de estas pessoas despertarem apoios na
sociedade”. Uma sociedade que, no Brasil, já não se revê nos seus
representantes: “É preciso voltar a despertar na população a crença de que os
políticos representam o povo, o que só vai acontecer se houver novas eleições.”
“A
democracia não pode ser confundida com o voto da maioria, é também preciso
assegurar as leis e respeitar
os direitos das minorias”
Defensor
da Justiça — “é o que garante o Estado de Direito” — não gostaria de ver o
Brasil transformado numa República de Juízes. Como este é atualmente o poder
com maior credibilidade junto da população, reconhece que o risco existe, mas
“na situação que o país vive, ainda bem que é assim”. Explica que a Justiça
ganhou tamanho protagonismo porque coube aos tribunais começar a desvendar os
escândalos da corrupção. Apesar de tudo, recorda que “no Brasil há liberdade,
as instituições estão preservadas, a justiça e os media funcionam”.
Lamenta
a perda de importância internacional da diplomacia brasileira, devido à
necessidade de concentrar esforços na frente interna. E dá o exemplo da Cimeira
do Clima em Paris, onde diz que a proposta levada pelo governo brasileiro era
boa, mas acabou por estar obscurecida pelos problemas da política nacional.
Em
fim de conversa, não se furta a falar de Luiz Inácio Lula da Silva, que lhe
sucedeu na Presidência do Brasil. Recusa qualquer participação na autoria do
fenómeno do lulismo e lamenta que o ex-chefe de Estado “esteja a enterrar a sua
própria história”. “Não sou eu, ele está a fazer isso sozinho”, conclui.
Desligado
o gravador e antes de se despedir, não se mostra inibido e, por iniciativa
própria, comenta o livro levado pelos jornalistas e que ficara esquecido sobre
a mesa. “Saga brasileira, a longa luta de um povo por sua moeda”, da jornalista
Miriam Leitão, que conta a história do Plano Real e da vitória de FHC e sua
equipa sobre a hiperinflação, no fim dos anos 90.
Os
jornalistas mostram-lhe então uma frase de Guimarães Rosa, usada na introdução
— “o real se dispõe para a gente é no meio da travessia” — e ele responde que
“sim, é uma metáfora do momento atual do Brasil”. Um momento decisivo e muito
real.
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Fonte: http://expresso.sapo.pt/politica/2015-12-06-E-preciso-voltar-a-despertar-na-populacao-a-crenca-de-que-os-politicos-representam-o-povo
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