BRUNO TAVARES*
Há uma história sobre um rapaz distraído que quando foi à Alemanha lhe pediram que levasse uma encomenda para uma tal de Dona Erda. Um mês depois, ele bateu à porta do chalé e perguntou por Dona Osta. Nossa memória é vulnerável a esses pequenos atos falhos, que segundo algumas teorias são todos propositais. Embora não sejam propriamente nossos. São das criaturas trancafiadas que existem em nós, invisíveis para nós, e que somos nós. Toda vez que a gente erra, um desses avatares está querendo nos dizer alguma coisa.
O Padre Massote, diretor e professor da escola de cinema da
UCMG, era jesuíta, muito falador, discorria muito bem sobre tudo, porque lia
muito e adorava cinema. Pertencia, a certa distância, àquela corrente mista de
cineclubismo e igreja católica que no Nordeste teve também um papel tão
importante. Massote exibiu para nós,
seus alunos, Un Chien Andalou e L’Âge d’Or, dizendo: “Vocês têm que ver isso,
porque Buñuel é um dos maiores do mundo, apesar do infantilismo ateu dele. Mas
não amarra a chuteira de Antonioni”.
Uma vez ele estava falando, provavelmente sobre economia de
linguagem, sobre sintetizar uma cena inteira numa imagem, e disse: “Você pode
dizer tudo em uma simples frase. Drummond fez um poema para a cidade de Nova
Friburgo que diz apenas: ‘Um cravo na lapela’”. Anos depois me caiu sob os
olhos esse poema. O poema diz, na verdade: “Esqueci um ramo de flores no
sobretudo”. É Nova Friburgo também. A memória emotiva de Massote não lhe
faltou, nem a visual, porque ele apenas reduziu o que lembrava; e o que disse
está essencialmente certo, poeticamente certo.
Quantas vezes já me pediram para contar a história de um
filme que eu vi dez anos atrás e eu contei, mas pintando um filme novo por cima
do que eu não lembrava? Era uma mentira? Talvez, mas não pelo prazer de mentir,
e sim pela vertigem de inventar, e nem quem dela é capaz pode definir o
mistério que tem.
O pensamento abomina o esquecimento, tal como se diz
que a natureza “tem horror ao vácuo”. É preciso preencher aquele não-espaço. E
cada vez que a gente pensa num verso, numa melodia, num diálogo, numa lembrança
da vida real, a gente está na verdade abrindo um arquivo, mexendo nele, e salvando,
com alterações. Nossa memória pode até ter o Ur-documento de tudo, a
memória-prima de cada recordação, um filminho total para cada momento “x, y, z”
guardado até hoje num Fort Knox de segurança máxima nos subterrâneos da mente.
Mas está soterrado por décadas de reedições dele mesmo, revistas e melhoradas.
Toda lembrança é uma história de ficção baseada numa história real da qual se
perdeu o registro.
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* Escritor.
Fonte: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/acesso 05/12/2015
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