“TORNA-TE QUEM TU ÉS”. Essa é uma
frase de Nietzsche que, como outras, pega o desescolarizado em filosofia
(de Pondé a Kataguri, de Frota a Mainardi) do mesmo modo que a frase de
Simone de Beauvoir, a célebre “Não se nasce mulher, torna-se”.
Na frase de Nietzsche, alguns acham que o
filósofo está dizendo para que sejamos algo que está já
em nossa essência. Mas Nietzsche é o primeiro a cair fora de qualquer
essencialismo. Sua frase é um imperativo ético: faça-se, reconstrua-se,
seja o que você decidiu e que, enfim, é o
que você é, pois talvez não exista outro para ser você senão aquele que
você vai colocar na jogada por decisão sua. É uma opção pelo filósofo
americano Emerson, em oposição ao imperativo categórico de Kant. É uma
traição à Velha Europa. (1)
A frase
de Beauvoir é tomada como quem diz que é necessário uma participação na
cultura para vir a ser do sexo feminino, mas ela não está dizendo isso
e, sim, que o feminino é um “modo de ser” além de ser sexo, é “gênero”.
Então, mulher é algo da vida social, não exclusivamente algo da ordem e
determinação biológica. Não se pode ser mulher senão aprendendo a ser
mulher, e isso depende de geografia, história e decisões. Pode-se nascer
mulher do ponto de vista de marcas convencionais a respeito de órgãos
genitais, hormônios etc., mas isso não coloca ninguém no gênero
“feminino”, no ser mulher. É uma traição de Simone ao biologismo
conservador da Velha Europa.
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Paulo Ghiraldelli, 58, filósofo.
PS: Ler Nietzsche traçando um imperativo ético não exclui lê-lo como tendo uma tese cosmológica. Penso que dá para conciliar.
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Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/torna-te-quem-tu-es/
Leitor sobre o post:
Daniel says:
Quando li os livros de Nietzsche pude perceber que o “Torna-te
quem tu és” mais do que ética pode ser considerado um modo de ver o ser
humano no mundo como uma transitoriedade no seu tempo. Ou seja, tornar a
ser quem tu és é confirmar a vida como ela é, portanto, tornar a ser
sempre uma possibilidade no mundo, já que não é fixo e nem absoluto
nenhum valor. Então, Simone pode estar dizendo, se estiver de acordo com
Nietzsche, que a mulher se torna mulher pela cultura, mas é preciso que
a mulher volte a tornar-se uma possibilidade para confirmá-la como
mortal, como transitória para que não possa ser um rótulo ambulante. Mas
o que me intriga mesmo é que esse projeto de Nietzsche passa por
necessidade de uma nova linguagem, uma nova expressão que não é de nossa
formação científica, nossa escrita científica e talvez seja a forma de
escrever e falar que Nietzsche tanto quis se diferenciar do modo
dissertativo científico que virou tradição na filosofia. Esse projeto é o
que me intriga.
Daniel, não quis estabelecer nenhuma ligação entre Nietzsche e
Simone (mas seria uma boa se voCê fosse por esse caminha criativo),
quanto ao resto, você está certo. A cosmologia de Nietzsche é coadunável
com o que seria uma ética. Não é necessário separar ambos. Por exemplo,
pode-se escrever no lugar de imperativo ético apenas diretriz
cosmológica. Perfeito. Peguei pelo lado da traição à Europa, pois me
interessou aí o legado de Emerson. Mas ler Nietzsche como uma cosmólogo,
como Scarlet faz, também é excelente pedida. Obrigado por ler minhas
coisas.