Política e milagre na TV
Eugênio Bucci
Jornalista
e Professor da Escola de Comunicação e Artes da USP
Ambiciosos, herdeiros de Billy Graham no Brasil querem
o poder.
E estão quase lá!
A telenovela brasileira não
vive da ficção, mas da realidade. Seu sucesso depende de sua capacidade de
sintetizar um pacto de convivência imaginária do telespectador com suas
aflições cotidianas. Você pode dizer que a literatura, o cinema ou o teatro
propõem pactos semelhantes, mas há uma diferença crucial: a temporalidade
desses pactos não se confina ao presente imperioso. O lastro de verdade de um
grande romance não evoca o noticiário da semana passada; o lastro de verdade da telenovela inscreve-se no imediato. Vem daí a sensação de que as novelas,
depois de exibidas, envelhecem aceleradamente, até virarem fósseis da indústria
cultural. Seu brilho é tão intenso quanto passageiro – a sua arte é o
efêmero.
O
retumbante fenômeno televisivo da temporada, Os Dez Mandamentos, cujo
capítulo final foi ao ar na segunda-feira pela Rede Record, não foi exceção. Nessa novela um tanto outsider [estranha, intrusa], o Moisés mítico não entrou em cena como
personagem antigo, descolado do nosso tempo, mas como um líder político para o
presente. Sua força dramática é uma força do presente. Seu milagre não foi abrir as águas do Mar Vermelho, mas ultrapassar a Globo em algumas curvas da corrida do
Ibope, e isso tem tudo que ver com o agora.
A
maior parte dos comentadores não entendeu esse recado. O que quase todos
repetem (e repetem, e repetem, e repetem) é que o êxito de Os Dez Mandamentos se deve ao enredo quase inocente, sem baixarias
do mundo-cão, sem tiroteio e sem anabolizantes eróticos. Repetem e erram. O trunfo da mais nova campeã de audiência
não está na pureza de intenções de seus personagens planos, nem nos
cenários fake [de imitação, falsos] com
ares de reserva ecológica do moralismo primitivo, nem nos efeitos especiais defasados, que davam um ar de inocência
tecnológica ao enredo bíblico. O que arrebatou a plateia não foi uma
proposta de fuga da realidade, como tanta gente supõe, mas o oposto: onde a crítica especializada viu escapismo,
a Record levou a público uma
conclamação de engajamento e de mobilização social.
A novela Os Dez Mandamentos celebrou a fusão
definitiva entre fé e política, entre igreja e Estado, por meio da qual
prometeu vencer o vício e a corrupção. Ela deu certo não por ter sido uma quimera pinçada
aleatoriamente do Velho Testamento,
mas por ter sabido estetizar (ainda que
de modo rudimentar) uma plataforma conservadora que encontra eco profundo na
sociedade. O telespectador que se deixou embevecer encontrou seu pacto
instantâneo de convivência imaginária com as suas aflições cotidianas –
sobretudo as aflições de fundo político.
Se
você ainda duvida, olhe um pouco em volta da TV. Atentemos para dois aspectos
disso a que damos o nome de “realidade”
(apenas dois aspectos bastarão).
[1º aspecto que chama a atenção:] O primeiro é a cristalização de um escândalo institucional que seria impensável em
qualquer democracia madura: a convergência entre partidos políticos, igrejas e
redes de rádio e televisão, numa triangulação promíscua que atenta frontalmente
contra os princípios do Estado laico. Lembremos que a radiodifusão é definida na Constituição federal como “serviço
público” e, como tal, jamais poderia ser conduzida segundo diretrizes
religiosas. Quando se desmancham os limites institucionais que deveriam
separar partidos políticos, igrejas e a radiodifusão, algo está muito, mas
muito fora de lugar.
[2º aspecto:] O segundo aspecto que temos o dever de anotar é de natureza litúrgica, ou mesmo carismática. De uns tempos para cá, uma dessas agremiações religiosas que
reluzem na televisão passou a adotar em suas celebrações paramentos e
iconografias típicas do judaísmo, invocando para si uma tradição que remete à
Torá. Uma réplica do que teria sido o Templo de Salomão foi construída na
cidade de São Paulo, numa forma ritualística um tanto paródica, uma espiritualidade “disneyca” [à la Disneylândia], no adjetivo criado
por Paul Virilio. O mesmo efeito estético é perceptível em Os Dez Mandamentos da Record, que por vezes pareceu uma chanchada
tardia do filme homônimo de Cecil B. DeMille.
À
luz do desarranjo institucional da radiodifusão brasileira e da operação
mística de proporções perfeitamente industriais que açambarca a cena política,
não é difícil de constatar que vem
recrudescendo um modelo, por assim dizer, “tele-eclesiástico” de organização
política das massas. Para muitos dos agentes desse novo modelo de
estetização da política, que se imaginam
seguidores de Moisés ao pé da letra, a separação
entre igreja e Estado é uma concessão ao pecado. Esses agentes têm milhões
de seguidores, resolutos e fervorosos. Nesse caldo de cultura, a novela Os Dez Mandamentos vem para ordenar a
paixão popular.
BILLY GRAHAM (97 anos) Este famoso pregador evangélico-televisivo norte-americano inspirou vários outros aqui no Brasil. No entanto, os daqui são mais ambiciosos! |
Num
ensaio escrito 1991, o crítico americano Harold
Bloom descreveu o tele-evangelista Billy
Graham como “o papa da América protestante”. Bloom não via o pregador pop
como ameaça: “Ele não faz quase nenhum
mal e quase nenhum bem; é praticamente desprovido de sentido religioso”.
Graham seria apenas um “enterteiner sem nenhuma originalidade” (An American Religion, Simon &
Schuster, 1992, pág. 75).
Os herdeiros de Graham no
Brasil também não primam pela originalidade. Só são um pouquinho mais
ambiciosos. Querem o poder, e estão quase lá. Dizem inspirar-se no profeta hebreu que
tinha canal direto com o Deus único, libertou seu povo do Egito e lançou a ira
divina sobre o culto das imagens. Sem se
dar conta, caem em contradições clamorosas. Dedicam-se ao culto da televisão,
esse bezerro de ouro inventado no século 20 que ainda opera milagres no século
21. Puseram a profana imagem eletrônica
a serviço do figurino do Velho Testamento.
É
bem verdade que em matéria de imagens a Igreja Católica foi a primeira mídia de
massa, como sinalizou Régis Debray.
Mas o espetáculo pirotécnico de
sincretismo evangélico que está vindo por aí (e por aqui) vai deixar no
chinelo a velha idolatria apostólica romana. Basta olhar e ver a realidade da
novela.
Fonte: O Estado de S. Paulo –
Espaço aberto
– Quinta-feira, 26 de novembro de 2015 – Pg. A2 – Internet: clique aqui.
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