Eduardo
Anizelli/Folhapres
Como
a moradia passou de direito a ativo financeiro? Por que este novo modelo, tão
dependente de construtoras quanto de empréstimos bancários, foi implementado no
Brasil justamente no governo Lula, em 2009, no programa Minha Casa,
Minha Vida.
Essas
são duas das várias perguntas difíceis cujas respostas, tão reveladoras quanto
complexas, estão no livro "Guerra dos Lugares - A Colonização da Terra e
da Moradia na Era das Finanças", da professora da USP e colunista da Folha
Raquel Rolnik
A obra tem relação íntima com a experiência da urbanista como relatora especial
das Nações Unidas para o Direito à Moradia Adequada, cujo mandato durou seis
anos, e teve início em 2008, ano em que estourou a crise hipotecária e
financeira, ligada à questão habitacional.
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Com
isso, Rolnik viu de perto efeitos da crise no território americano e em lugares
tão longínquos quanto o Casaquistão, onde a falência de construtoras turcas
levou quem havia pago por um apartamento que não receberia a fazer greve de
fome.
"Desenrolei
um novelo que evidenciou uma mudança radical de paradigma dentro do campo da
política habitacional", diz Rolnik. Segundo ela, a moradia como direito
proporcionado pelo Estado se transformou em mercadoria consumida
individualmente e em ativo financeiro.
"A
habitação se tornou uma nova fronteira para o mercado financeiro e expôs a casa
das pessoas, o lugar básico de vivência, à volatilidade do fluxo internacional
de capital e a seus riscos."
De
que maneira o livro "Guerra dos Lugares" está ligado a sua experiência
como relatora especial das Nações Unidas para o Direito à Moradia Adequada?
Raquel Rolnik - Impossível entender o livro sem entender o mandato -um mecanismo externo do Conselho de Direitos Humanos da ONU para monitorar a implementação de tratados e pactos. Em seis anos como relatora especial, fiz missões em vários países e encontrei tanto autoridades locais quanto comunidades que acreditavam que seus direitos estavam sendo violados. Logo no primeiro ano do mandato, em 2008, estourou a crise hipotecária-financeira, intimamente ligada ao tema da moradia. A crise virou tema de um relatório especial. Essa experiência virou minha tese de livre docência, que virou o livro.
Raquel Rolnik - Impossível entender o livro sem entender o mandato -um mecanismo externo do Conselho de Direitos Humanos da ONU para monitorar a implementação de tratados e pactos. Em seis anos como relatora especial, fiz missões em vários países e encontrei tanto autoridades locais quanto comunidades que acreditavam que seus direitos estavam sendo violados. Logo no primeiro ano do mandato, em 2008, estourou a crise hipotecária-financeira, intimamente ligada ao tema da moradia. A crise virou tema de um relatório especial. Essa experiência virou minha tese de livre docência, que virou o livro.
De
que maneira a crise de 2008 direcionou seu olhar sobre a questão da moradia durante
o mandato na ONU?
Logo que a crise estourou, fui para os EUA não só para ver os efeitos da crise sobre a moradia, as execuções hipotecárias e as pessoas que ficaram sem ter onde morar mas também para estudar as origens desta crise.
Logo que a crise estourou, fui para os EUA não só para ver os efeitos da crise sobre a moradia, as execuções hipotecárias e as pessoas que ficaram sem ter onde morar mas também para estudar as origens desta crise.
Descobri,
seguindo este rastro, que no Casaquistão -ou seja, do outro lado do mundo, na
Ásia, numa ex-república soviética- havia gente fazendo greve de fome por causa
da crise hipotecária. A crise havia causado a falência das construtoras turcas,
que pegaram seu dinheiro e foram embora, deixando as pessoas que pagaram por
seus apartamentos sem casa.
E
eu comecei a desenrolar um novelo mostrando como nos últimos 30, 40 anos, a
gente viveu uma mudança radical de paradigma dentro do campo da politica
habitacional.
Que
mudança é essa?
É a mudança da ideia de moradia como direito proporcionado em distintas maneiras e formas pelo Estado, para o conceito de moradia como mercadoria consumida individualmente e como ativo financeiro, ou seja, como uma das novas fronteiras abertas para a financeirização do capital.
É a mudança da ideia de moradia como direito proporcionado em distintas maneiras e formas pelo Estado, para o conceito de moradia como mercadoria consumida individualmente e como ativo financeiro, ou seja, como uma das novas fronteiras abertas para a financeirização do capital.
E
vi as distintas versões desta mudança de paradigma pelo mundo e no Brasil, com
a criação do Minha Casa, Minha Vida [programa habitacional do governo federal],
que tem tudo a ver com essa nova lógica.
São mudanças na política de moradia, mas também no tratamento da terra urbana e políticas fundiárias.
Como
a moradia passou de direito a ativo financeiro?
Essa mudança tem duas dimensões: a de destruição da ordem anterior e a de construção de uma nova ordem. Houve um desmonte das políticas de moradia nos países que tinham algo deste tipo, como Reino Unido e diversos países da Europa. Mesmo os EUA, que sempre promoveram a casa própria via hipoteca, tiveram desde o New Deal atividades importantes de construção de conjuntos habitacionais integralmente financiados pelo Estado, com aluguel subsidiado. E há os casos mais radicais, como nos países do comunismo e socialismo real, onde o Estado construía massivamente conjuntos habitacionais públicos, coletivos ou cooperativados.
Essa mudança tem duas dimensões: a de destruição da ordem anterior e a de construção de uma nova ordem. Houve um desmonte das políticas de moradia nos países que tinham algo deste tipo, como Reino Unido e diversos países da Europa. Mesmo os EUA, que sempre promoveram a casa própria via hipoteca, tiveram desde o New Deal atividades importantes de construção de conjuntos habitacionais integralmente financiados pelo Estado, com aluguel subsidiado. E há os casos mais radicais, como nos países do comunismo e socialismo real, onde o Estado construía massivamente conjuntos habitacionais públicos, coletivos ou cooperativados.
No
caso inglês, que é pioneiro, o desmonte ocorre via privatização deste estoque
habitacional, vendido a preços módicos para quem morava lá. Ao transformar a
classe trabalhadora em proprietários de imóveis, o partido conservador e o
Tatcherismo [era em que Margareth Tatcher era primeira-ministra do Reino Unido,
de 1979 a 1990] penetraram com tudo nas bases do partido trabalhador.
A
Espanha, que nunca teve política de moradia, tinha controle de aluguel e
proteção de inquilinos. E isso também foi desmontado.
Então, a única política que foi sendo construída no lugar de várias que existiam foi a compra do imóvel individual via crédito bancário. É o paradigma dominante no mundo todo.
Onde
está a financeirização neste novo paradigma?
Na medida em que a moradia se torna um produto que é comercializado, o mercado é ampliado. Como se trata de um produto caro, é necessária a intermediação financeira, ampliando fronteiras para o capital.
Na medida em que a moradia se torna um produto que é comercializado, o mercado é ampliado. Como se trata de um produto caro, é necessária a intermediação financeira, ampliando fronteiras para o capital.
No
âmbito da globalização do mercado financeiro, a partir do final dos anos 1970,
passa a haver grande quantidade de capital pairando sobre o planeta e
procurando novos campos para investimento. A produção residencial se tornou um
desses novos campos para a atuação do capital financeiro global.
Tem
uma ideia do economista norte-americano Nouriel Roubini que se aplica em alguns
desses casos: a moradia como um caixa eletrônico. Como ela se torna um ativo
territorial, funciona como garantia para empréstimos. E isso gerou um mercado
primário e um mercado secundário de hipotecas, que foi empacotado junto a
outros produtos e girou de mão em mão para gerar juros e estourar na crise
financeira-hipotecária de 2008.
Como
existe um processo de arrocho salarial histórico, uso dos ativos da própria
moradia acaba servindo para financiar o consumo: comprar carro, faculdade dos
filhos etc.
Com isso, a casa das pessoas, o lugar básico de vivência das pessoas, passou a estar exposto à volatilidade do fluxo internacional de capital e a seus riscos. Na hora que vem uma crise, perde-se tudo, inclusive a casa.
E
como a moradia era vista antes dessa mudança? Já não existia o "sonho da
casa própria"?
Essa experiência varia muito de um país para outro. Mas a ideia de casa própria não é nova em absoluto. Nos 1964, no Brasil, quando foi criado o BNH (Banco Nacional de Habitação), seu lema era fazer de cada trabalhador um proprietário. Isso tem um sentido ideológico.
Essa experiência varia muito de um país para outro. Mas a ideia de casa própria não é nova em absoluto. Nos 1964, no Brasil, quando foi criado o BNH (Banco Nacional de Habitação), seu lema era fazer de cada trabalhador um proprietário. Isso tem um sentido ideológico.
Em
boa parte da Europa e certamente nos países do Leste Europeu, havia a ideia de
que você não precisava ser proprietário de uma casa, mas tinha de ter acesso a
ela de forma adequada e independente de sua renda.
Essa relação passou a ser de proporcionalidade entre o que você ganha, o lugar onde você mora e a rentabilidade que aquela moradia pode prover.
Nada
parece ter mudado neste modelo desde a crise de 2008.
A reação dos governos foi salvar os bancos e não rever suas políticas habitacionais. A resposta à crise hipotecária foi mais do mesmo. Houve, aqui e ali, o surgimento de algum tipo de controle do mercado de hipotecas.
A reação dos governos foi salvar os bancos e não rever suas políticas habitacionais. A resposta à crise hipotecária foi mais do mesmo. Houve, aqui e ali, o surgimento de algum tipo de controle do mercado de hipotecas.
Historicamente, há uma parcela da população, de menor renda, que não tem acesso a propriedade privada individual e a hipoteca. E os mecanismos subprime [créditos de risco] surgiram para integrar essas populações ao mercado. Quando mais arriscado é o empréstimo, mais juros são cobrados.
Como
o Brasil se insere neste contexto?
O aumento da disponibilidade de crédito e da dinâmica econômica que o país passou recentemente, aliado a zero política fundiária capaz de controlar preços e fazer reservas, teve como efeito um enorme boom nos preços dos terrenos e dos imóveis. Isso aconteceu em todas as grandes cidades. Há uma grande discussão se isso é ou não uma bolha etc., mas esse crescimento deu uma parada em função da atual recessão. Ainda assim já foi suficiente para aprofundar a crise da moradia no Brasil. Em qualquer capital, a narrativa nos movimentos sem-teto se repete: "Eu pagava aluguel e começou a ficar muito caro, aí eu fiquei sem ter pra onde ir e vim pro movimento etc.".
O aumento da disponibilidade de crédito e da dinâmica econômica que o país passou recentemente, aliado a zero política fundiária capaz de controlar preços e fazer reservas, teve como efeito um enorme boom nos preços dos terrenos e dos imóveis. Isso aconteceu em todas as grandes cidades. Há uma grande discussão se isso é ou não uma bolha etc., mas esse crescimento deu uma parada em função da atual recessão. Ainda assim já foi suficiente para aprofundar a crise da moradia no Brasil. Em qualquer capital, a narrativa nos movimentos sem-teto se repete: "Eu pagava aluguel e começou a ficar muito caro, aí eu fiquei sem ter pra onde ir e vim pro movimento etc.".
Qual
o efeito disso sobre a cidade?
A política de produção massiva de moradias nas periferias se aliou à financeirização da terra urbana e da política urbana. E aí estamos falando de outro processo: grandes projetos de transformação urbana que produziram a remoção ou o deslocamento dos setores mais vulneráveis das cidades ao mesmo tempo em que a produção em massa de moradia funcionou como alternativa para que esses deslocamentos pudessem se dar.
A política de produção massiva de moradias nas periferias se aliou à financeirização da terra urbana e da política urbana. E aí estamos falando de outro processo: grandes projetos de transformação urbana que produziram a remoção ou o deslocamento dos setores mais vulneráveis das cidades ao mesmo tempo em que a produção em massa de moradia funcionou como alternativa para que esses deslocamentos pudessem se dar.
E
isso não é só no Brasil. Ocorre também na Turquia e em vários países também.
No
Chile, cujo modelo o Brasil copiou, é o Estado quem paga o cidadão para que ele
adquira um produto porcaria que o mercado está oferecendo para ele. Por que o
produto ofertado neste esquema de produção em massa pelo mercado, financiado
pelo Estado, é de quinta categoria. Embora seja uma casa com condição mais
confortável, com água encanada e luz, ela está situada em uma localização muito
pior. Como há um teto para o valor do financiamento, só tem uma maneira de as
construtoras ganharem dinheiro: comprando uma terra de quinta. É uma terra ou
contaminada ou no meio da zona rural ou longe da cidade, portanto, sem
infraestrutura, o que dificulta o acesso das pessoas que vão morar nela a
outros direitos. Estruturalmente esses modelos produzem guetos.
Os
conjuntos do Chile são os locais hoje de grande concentração de todo tipo de
problema social: violência doméstica, crime, dependência de drogas etc. Eles
estão demolindo parte desses conjuntos.
De
que maneira o Minha Casa Minha Vida é um espelho deste novo paradigma?
O programa é muito parecido com modelo chileno, e as favelas removidas tem seus moradores deslocados para esses conjuntos habitacionais.
O programa é muito parecido com modelo chileno, e as favelas removidas tem seus moradores deslocados para esses conjuntos habitacionais.
No
Brasil há um diferencial: a faixa um de financiamento do programa, para
população que recebe de um a três salários mínimos, é praticamente toda
subsidiado pelo governo. É uma casa dada. Só que isso gera outro problema: como
manter esses condomínios, essas novas casas próprias, se seus moradores ganham
zero, meio, um salário mínimo? Isso não se sustenta e só mostra que não dá pra
termos um modelo único na área de moradia.
O
Minha Casa, Minha Vida se sobrepôs a outros programas?
Várias cidades tiveram políticas locais de moradia e abandonaram tudo. Hoje só tem Minha Casa Minha Vida porque ele traz vantagens para as prefeituras, que fica com os dividendos políticos e não têm ônus de organizar, encontrar terra, construir etc. Também só traz vantagens para o setor privado, que tem certeza de retorno porque o governo dá dinheiro para as pessoas comprarem seu produto.
Até o governo do PSDB acabou com sua produção de moradia no CDHU [Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano] para pegar carona no Minha Casa, Minha Vida!
Várias cidades tiveram políticas locais de moradia e abandonaram tudo. Hoje só tem Minha Casa Minha Vida porque ele traz vantagens para as prefeituras, que fica com os dividendos políticos e não têm ônus de organizar, encontrar terra, construir etc. Também só traz vantagens para o setor privado, que tem certeza de retorno porque o governo dá dinheiro para as pessoas comprarem seu produto.
Até o governo do PSDB acabou com sua produção de moradia no CDHU [Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano] para pegar carona no Minha Casa, Minha Vida!
Por
que é justamente em 2009, na segunda gestão Lula, que se dá esse processo no
Brasil?
Eu fui pesquisar as origens da relação entre o sindicalismo e o complexo imobiliário-financeiro.
Historicamente, o campo imobiliário foi um dos grandes setores de investimentos dos fundos de pensão e foi por aí que ocorreram os primeiros vínculos entre o complexo imobiliário-financeiro e as lideranças sindicais, portanto, partidárias.
Eu fui pesquisar as origens da relação entre o sindicalismo e o complexo imobiliário-financeiro.
Historicamente, o campo imobiliário foi um dos grandes setores de investimentos dos fundos de pensão e foi por aí que ocorreram os primeiros vínculos entre o complexo imobiliário-financeiro e as lideranças sindicais, portanto, partidárias.
Essa
relação se deu pela luta do movimento sindical para estar na direção dos fundos
de pensão dos trabalhadores, na década passada, o que gerou a conexão destes
atores sindicais, gestores dos fundos, com o setor imobiliário.
Estou
falando da gênese desta relação no campo urbano, que é aquele que eu pude
observar. E isso ajuda explicar por que e como justamente na era Lula se dá
essa financeirização do mercado imobiliário.
Como
megaeventos como a Rio 2016 vão impactar a moradia no Rio de Janeiro?
Esse processo que eu descrevo no livro vem acompanhado de uma fragilização de todo tipo de vínculo com a terra que não a propriedade individual registrada, ou seja, as formas tradicionais de posse, as áreas habitadas por populações tradicionais (ribeirinhos, quilombolas, povos indígenas, assentamentos informais) etc.
Esse processo que eu descrevo no livro vem acompanhado de uma fragilização de todo tipo de vínculo com a terra que não a propriedade individual registrada, ou seja, as formas tradicionais de posse, as áreas habitadas por populações tradicionais (ribeirinhos, quilombolas, povos indígenas, assentamentos informais) etc.
Isso
porque a propriedade privada individual registrada é aquela completamente
adaptada à linguagem das finanças, que pode servir de lastro para empréstimos e
que pode circular no mercado financeiro internacional. Como transacionar uma
terra coletiva de uma comunidade? Impossível!
O
Morro da Providência, por exemplo, tem cem anos de ocupação. Mas ele é visto
pela política urbana atual como um espaço ambíguo no sentido de que nunca está
claro se é permanente ou se a população vai sair, se é regular ou irregular.
Essa resposta nunca é dada porque a ambiguidade permite que esses locais
funcionem como reservas de terras potenciais para expansão do capital financeiro
no momento oportuno. Os megaeventos funcionam como catalizadores deste
processo.
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Reportagem por FERNANDA
MENA DE SÃO PAULO
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/12/1714708-livro-de-raquel-rolnik-retrata-a-moradia-na-era-das-financas.shtml
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