É oficial e público. Clara Ferreira
Alves já é romancista. O livro, há tanto tempo prometido, foi finalmente
publicado. Está no meio de nós. Chama-se Pai Nosso e traz o terrorismo islâmico até Portugal.
A entrevista começou mal. Perguntámos a
Clara Ferreira Alves se o “empenho” que solicitara, numa das suas
últimas crónicas no jornal Expresso, ao ministro da Cultura, João Soares, obtivera resposta.
Era só para aquecer, mas a autora do romance Pai Nosso recusou
responder: “Faço comentário político para ganhar a vida. Não é a minha
vocação. Ponto final, parágrafo. Não falo. Estou farta de política.”
Mudámos de rumo, como a formiga na velha canção de José Afonso.
Esquecemos a cronista e a comentadora política de “Eixo do Mal” e entrevistámos apenas a romancista estreante. Acabou bem. A entrevista.
Finalmente, um romance. Por que é que demorou tanto tempo?
Eu era muito jovem quando comecei a falar em escrever um romance. Toda a gente quer escrever um romance aos 20 anos. Era outro livro. Era um romance passado em Jerusalém. A matéria que tinha não era suficiente, e abandonei-o. Mas, como viajo muito para aquela região, fui tomando notas e apontando coisas que me interessavam do ponto de vista da ficção. Tinha resmas sobre o livro, mas ainda não tinha o diagrama do livro, era preciso encontrá-lo. Depois aconteceu o 11 de Setembro. Mudou a minha cabeça, tive a sensação de que era algo novo, de que havia uma primeira vez na História. É muito importante, quando uma coisa acontece pela primeira vez. Tem grandes consequências. E teve. Comecei a rever tudo, comecei a fazer muita pesquisa que não tinha feito, sobre as religiões, sobre terrorismo, sobre a Al-Qaeda. Gastei muito dinheiro a viajar para esses lugares, falei com muita gente. E o terrorismo começou a ser o eixo central da história. O terrorismo e a religião são os dois eixos centrais. Nos anos a seguir ao 11 de Setembro havia muita coisa que não fazia sentido e li centenas de livros para tentar perceber. Passei largos anos a pesquisar. Nos últimos cinco anos as coisas começaram a tomar forma, as personagens, a intriga. Sobretudo no último ano, quando decidi que tinha de terminar o livro. Mas, se houve uma data em que este livro começou, poderia dizer que foi no dia 11 de Setembro de 2001.
Eu era muito jovem quando comecei a falar em escrever um romance. Toda a gente quer escrever um romance aos 20 anos. Era outro livro. Era um romance passado em Jerusalém. A matéria que tinha não era suficiente, e abandonei-o. Mas, como viajo muito para aquela região, fui tomando notas e apontando coisas que me interessavam do ponto de vista da ficção. Tinha resmas sobre o livro, mas ainda não tinha o diagrama do livro, era preciso encontrá-lo. Depois aconteceu o 11 de Setembro. Mudou a minha cabeça, tive a sensação de que era algo novo, de que havia uma primeira vez na História. É muito importante, quando uma coisa acontece pela primeira vez. Tem grandes consequências. E teve. Comecei a rever tudo, comecei a fazer muita pesquisa que não tinha feito, sobre as religiões, sobre terrorismo, sobre a Al-Qaeda. Gastei muito dinheiro a viajar para esses lugares, falei com muita gente. E o terrorismo começou a ser o eixo central da história. O terrorismo e a religião são os dois eixos centrais. Nos anos a seguir ao 11 de Setembro havia muita coisa que não fazia sentido e li centenas de livros para tentar perceber. Passei largos anos a pesquisar. Nos últimos cinco anos as coisas começaram a tomar forma, as personagens, a intriga. Sobretudo no último ano, quando decidi que tinha de terminar o livro. Mas, se houve uma data em que este livro começou, poderia dizer que foi no dia 11 de Setembro de 2001.
No livro, compara-se o 11 de Setembro à Revolução Francesa. Não será exagerado?
Olhe o que está a acontecer na Europa. As consequências do 11 de Setembro vão redefinir toda a história do seculo XXI, ou pelo menos da primeira metade do século XXI, como já está a acontecer. A todos os níveis. Normalmente, o terrorismo era uma coisa que acontecia aos outros. Agora, é uma coisa que acontece a nós.
Olhe o que está a acontecer na Europa. As consequências do 11 de Setembro vão redefinir toda a história do seculo XXI, ou pelo menos da primeira metade do século XXI, como já está a acontecer. A todos os níveis. Normalmente, o terrorismo era uma coisa que acontecia aos outros. Agora, é uma coisa que acontece a nós.
Foi muitas vezes ao Médio Oriente enquanto repórter?
Sim, várias vezes, e acho que se percebe que conheço bem toda aquela região. Mas percebi que o jornalismo me ia sugar se continuasse a escrever reportagens, ia sugar-me as ideias do livro. Muitas vezes fui e não cheguei a escrever reportagens, porque guardei aquilo que ia aprendendo sobre aquela realidade para o romance. E com isto, evidentemente, perdi muito dinheiro. Não vendi.
Sim, várias vezes, e acho que se percebe que conheço bem toda aquela região. Mas percebi que o jornalismo me ia sugar se continuasse a escrever reportagens, ia sugar-me as ideias do livro. Muitas vezes fui e não cheguei a escrever reportagens, porque guardei aquilo que ia aprendendo sobre aquela realidade para o romance. E com isto, evidentemente, perdi muito dinheiro. Não vendi.
Portanto, o jornalismo rouba à literatura…
Rouba. Rouba nas ideias, rouba nas imagens. O jornalismo suga-nos.
Rouba. Rouba nas ideias, rouba nas imagens. O jornalismo suga-nos.
E o que é que a literatura dá que o jornalismo não tenha?
Tudo. Dá liberdade total, criatividade e imaginação. Podemos pegar nos factos e fazer deles o que quisermos, podemos criar personagens, podemos criar um mundo inteiramente novo. Para mim, as minhas personagens são mais reais, às vezes, do que as pessoas. Existem, mexem-se, têm uma cara, viveram comigo durante tanto tempo e continuam ainda a viver comigo. O jornalismo que eu faço é muito literário, as minhas reportagens sempre foram muito literárias, mas não se pode inventar. Por outro lado, quando se vai para a próxima história tem que se esquecer a anterior, tem que se rasurar. E agora, a voracidade é ainda maior. Uma grande reportagem, um grande texto de crítica literária – e eu escrevi muitos textos de crítica literária que estão sepultados –, não sobrevivem a não ser que estejam dentro de um livro. O jornalismo é a arte do esquecimento. A ficção é exactamente o oposto. A ficção é a duração e a memória.
Tudo. Dá liberdade total, criatividade e imaginação. Podemos pegar nos factos e fazer deles o que quisermos, podemos criar personagens, podemos criar um mundo inteiramente novo. Para mim, as minhas personagens são mais reais, às vezes, do que as pessoas. Existem, mexem-se, têm uma cara, viveram comigo durante tanto tempo e continuam ainda a viver comigo. O jornalismo que eu faço é muito literário, as minhas reportagens sempre foram muito literárias, mas não se pode inventar. Por outro lado, quando se vai para a próxima história tem que se esquecer a anterior, tem que se rasurar. E agora, a voracidade é ainda maior. Uma grande reportagem, um grande texto de crítica literária – e eu escrevi muitos textos de crítica literária que estão sepultados –, não sobrevivem a não ser que estejam dentro de um livro. O jornalismo é a arte do esquecimento. A ficção é exactamente o oposto. A ficção é a duração e a memória.
Há quem defenda que o jornalismo potencia a literatura.
É uma grande oficina, é a melhor oficina. Porque um livro tem muita carpintaria, muita estrutura, muita técnica, muita gramática. Para se ter isso, é preciso ter o músculo desenvolvido, porque quanto mais se escreve melhor se escreve e quanto mais se lê melhor se escreve e quanto mais se lê melhor se lê. Não acredito muito em romances escritos por amadores que leram três ou quatro livros e que nunca escreveram profissionalmente. A não ser que sejam génios de geração espontânea. Normalmente, os grandes livros são escritos por pessoas na idade madura, que tiveram uma experiência de vida considerável, que leram muitos livros, e que já escreveram antes.
É uma grande oficina, é a melhor oficina. Porque um livro tem muita carpintaria, muita estrutura, muita técnica, muita gramática. Para se ter isso, é preciso ter o músculo desenvolvido, porque quanto mais se escreve melhor se escreve e quanto mais se lê melhor se escreve e quanto mais se lê melhor se lê. Não acredito muito em romances escritos por amadores que leram três ou quatro livros e que nunca escreveram profissionalmente. A não ser que sejam génios de geração espontânea. Normalmente, os grandes livros são escritos por pessoas na idade madura, que tiveram uma experiência de vida considerável, que leram muitos livros, e que já escreveram antes.
No caso do romance?
No caso do romance, que é uma maratona.
No caso do romance, que é uma maratona.
E a poesia?
Há muita gente que escreve versos, mas há muita má poesia, a maior parte da poesia não presta. A grande poesia é como a grande música. É como dizia o outro: eu escrevo com a mesmas notas de Beethoven mas não consigo compor uma sinfonia…
Há muita gente que escreve versos, mas há muita má poesia, a maior parte da poesia não presta. A grande poesia é como a grande música. É como dizia o outro: eu escrevo com a mesmas notas de Beethoven mas não consigo compor uma sinfonia…
Teremos sempre Rimbaud…
Há muita gente a escrever com as mesmas palavras de Rimbaud, mas não escreve “Une Saison en Enfer”.
Há muita gente a escrever com as mesmas palavras de Rimbaud, mas não escreve “Une Saison en Enfer”.
Nunca foi tentada pela poesia?
Não!
Sou como o José Cardoso Pires: jamais farei um verso. Não é a minha
vocação. Sempre escrevi prosa, desde criança. Meto a poesia na prosa.
Mas gosto de poesia, leio muita poesia, gosto muito do Pessoa. Tal como
gosto muito de música e não sei compor música. Tenho muito respeito
pelos poetas mas cada macaco no seu galho.
O romance exige uma disciplina diversa?
Muito diferente. Eu escrevo de manhã, tenho de ter uma rotina de escrita, tenho de estar muitas horas sentada. Sobretudo, não consigo escrever jornalismo e ficção na mesma semana. Foi outra coisa que me impediu de publicar mais cedo. O jornalismo distraía-me. Tinha de parar de escrever jornalismo e foi isso que fiz nos últimos meses, e isso economicamente e financeiramente é complicado. Mas não consigo escrever uma crónica à segunda, pegar no livro à terça, fazer uma peça para outro sítio à quarta. Há dias em que é glorioso e a cabeça funciona bem, e há dias absolutamente atrozes em que só saem lugares-comuns. É preciso não desesperar, mas é um trabalho de grande disciplina física e mental. Nem consigo ter muita interacção com outras pessoas porque isso me distrai, tenho de estar sozinha com as minhas personagens. E faço diagramas, faço mapas. A secretária fica juncada desses diagramas, parecem fórmulas matemáticas. Não posso atender telefonemas, não posso ir jantar fora…
Muito diferente. Eu escrevo de manhã, tenho de ter uma rotina de escrita, tenho de estar muitas horas sentada. Sobretudo, não consigo escrever jornalismo e ficção na mesma semana. Foi outra coisa que me impediu de publicar mais cedo. O jornalismo distraía-me. Tinha de parar de escrever jornalismo e foi isso que fiz nos últimos meses, e isso economicamente e financeiramente é complicado. Mas não consigo escrever uma crónica à segunda, pegar no livro à terça, fazer uma peça para outro sítio à quarta. Há dias em que é glorioso e a cabeça funciona bem, e há dias absolutamente atrozes em que só saem lugares-comuns. É preciso não desesperar, mas é um trabalho de grande disciplina física e mental. Nem consigo ter muita interacção com outras pessoas porque isso me distrai, tenho de estar sozinha com as minhas personagens. E faço diagramas, faço mapas. A secretária fica juncada desses diagramas, parecem fórmulas matemáticas. Não posso atender telefonemas, não posso ir jantar fora…
Socorre-se de algum ritual ou de algum lugar que favoreça essa disciplina?
Bebo litros de chá. Chá verde, chá preto. E agora, que o livro foi publicado, faz-me falta essa rotina. Sinto-me um bocado desempregada, digamos assim. O último ano foi muito solitário, por escolha própria, porque resolvi não sair de casa. Tenho que escrever frente a uma parede, sem distracções. E não tinha luz directa da rua. Houve mesmo algumas semanas em que eu não sabia se fazia sol ou se chovia, ou em que mês é que estávamos, porque estava completamente dentro da intriga, e estava a tentar sentir as emoções das minhas personagens. Ficava muito irritada quando tinha que interromper. A certa altura deixei também de atender a campainha e de ver o correio.
Bebo litros de chá. Chá verde, chá preto. E agora, que o livro foi publicado, faz-me falta essa rotina. Sinto-me um bocado desempregada, digamos assim. O último ano foi muito solitário, por escolha própria, porque resolvi não sair de casa. Tenho que escrever frente a uma parede, sem distracções. E não tinha luz directa da rua. Houve mesmo algumas semanas em que eu não sabia se fazia sol ou se chovia, ou em que mês é que estávamos, porque estava completamente dentro da intriga, e estava a tentar sentir as emoções das minhas personagens. Ficava muito irritada quando tinha que interromper. A certa altura deixei também de atender a campainha e de ver o correio.
Mostra a alguém o que vai escrevendo?
Não, mas ando pela casa a ler alto. Às vezes é um pouco bizarro. Todo este livro foi lido alto. Como se fosse teatro.
Não, mas ando pela casa a ler alto. Às vezes é um pouco bizarro. Todo este livro foi lido alto. Como se fosse teatro.
Uma questão de ritmo?
Sim, e porque preciso de ler o livro no “print”, depois de escrevê-lo no computador, e tenho que ouvir as vozes. Porque a narrativa começou por ser uma arte oral, a magia da narrativa era a magia da oralidade.
Sim, e porque preciso de ler o livro no “print”, depois de escrevê-lo no computador, e tenho que ouvir as vozes. Porque a narrativa começou por ser uma arte oral, a magia da narrativa era a magia da oralidade.
Oral e em verso.
Sim, Homero. A grande literatura tem instantes de enorme poesia. Sobretudo na literatura russa, isso é muto evidente. Dostoievski ou Tolstoi, ou Chekov, têm parágrafos de grande poesia. Isso, eu acho que procuro quando escrevo, sobretudo na descrição das paisagens.
Sim, Homero. A grande literatura tem instantes de enorme poesia. Sobretudo na literatura russa, isso é muto evidente. Dostoievski ou Tolstoi, ou Chekov, têm parágrafos de grande poesia. Isso, eu acho que procuro quando escrevo, sobretudo na descrição das paisagens.
A protagonista deste livro é fotógrafa. Porquê?
É o problema de passar pelas vidas dos outros, registando-as, sem interferir. Porque o fotógrafo de guerra tem que ir em frente. Há uma fotografia de um grande repórter de guerra sul-africano, Kevin Carter, de uma criança encolhida e moribunda e há um abutre que está pousado à espera. A fotografia foi publicada no “New York Times” e houve um escândalo formidável, com leitores a perguntarem como era possível que o fotógrafo se tivesse preocupado em fotografar e em vender a fotografia, em vez de resgatar a criança. Na verdade, ele ajudou a criança, a criança não morreu. Mas os fotógrafos não estão lá para salvar as pessoas. É um problema filosófico interessante e a verdade é que esse fotógrafo se suicidou. O peso de olhar a desgraça humana, de olhar a miséria humana e de a registar, é um peso brutal nos fotógrafos de guerra, que raramente chegam a velhos. Sebastião Salgado, no filme que o Wim Wenders fez dele, diz isso. Ele agora fotografa a natureza. Porque viu o horror absoluto, e passar incólume pelo horror absoluto é impossível. Eu queria uma dessas personagens.
É o problema de passar pelas vidas dos outros, registando-as, sem interferir. Porque o fotógrafo de guerra tem que ir em frente. Há uma fotografia de um grande repórter de guerra sul-africano, Kevin Carter, de uma criança encolhida e moribunda e há um abutre que está pousado à espera. A fotografia foi publicada no “New York Times” e houve um escândalo formidável, com leitores a perguntarem como era possível que o fotógrafo se tivesse preocupado em fotografar e em vender a fotografia, em vez de resgatar a criança. Na verdade, ele ajudou a criança, a criança não morreu. Mas os fotógrafos não estão lá para salvar as pessoas. É um problema filosófico interessante e a verdade é que esse fotógrafo se suicidou. O peso de olhar a desgraça humana, de olhar a miséria humana e de a registar, é um peso brutal nos fotógrafos de guerra, que raramente chegam a velhos. Sebastião Salgado, no filme que o Wim Wenders fez dele, diz isso. Ele agora fotografa a natureza. Porque viu o horror absoluto, e passar incólume pelo horror absoluto é impossível. Eu queria uma dessas personagens.
O problema também se põe ao jornalista que escreve.
Mas eu não queria alguém que escrevesse como personagem principal. Por isso arranjei uma personagem que depois encontra a protagonista e que é quem escreve a história. Eu queria o olhar. É o problema da neutralidade, no fundo. Como é que permanecemos neutros perante o horror, perante o terror, perante a morte. O fotógrafo tem de deslizar sobre as coisas.
Mas eu não queria alguém que escrevesse como personagem principal. Por isso arranjei uma personagem que depois encontra a protagonista e que é quem escreve a história. Eu queria o olhar. É o problema da neutralidade, no fundo. Como é que permanecemos neutros perante o horror, perante o terror, perante a morte. O fotógrafo tem de deslizar sobre as coisas.
O jornalista também.
O jornalista também. Por isso é que a memória é um peso terrível.
O jornalista também. Por isso é que a memória é um peso terrível.
Maria foi a personagem que aglutinou as outras?
Não. A primeira personagem que me surgiu foi a do terrorista, o Tariq. Mas eu precisava de um contraponto e, logo a seguir, a personagem da Maria começou a ganhar contornos. É difícil entrar na cabeça de um terrorista.
Não. A primeira personagem que me surgiu foi a do terrorista, o Tariq. Mas eu precisava de um contraponto e, logo a seguir, a personagem da Maria começou a ganhar contornos. É difícil entrar na cabeça de um terrorista.
É difícil entrar na cabeça de seja quem for.
Mas quando você vai pela estrada, a sua sanidade e a sua percepção do mundo assentam numa realidade simples: a de que os tipos da outra faixa da estrada não vão guinar de repente e mandar o carro para cima de si. Ou quando está à beira de uma linha de metro, você funciona com base na ideia de que ninguém vai lá e, ao acaso, o vai empurrar e matá-lo. Toda a vida humana funciona com base nesta realidade, a de que não vamos deliberadamente matar-nos uns aos outros sem um motivo. O crime, em princípio, tem uma razão. Nos romances policiais há o móbil do crime. O crime sem móbil, sem aparente explicação, destrói a base da vida em comunidade.
Mas quando você vai pela estrada, a sua sanidade e a sua percepção do mundo assentam numa realidade simples: a de que os tipos da outra faixa da estrada não vão guinar de repente e mandar o carro para cima de si. Ou quando está à beira de uma linha de metro, você funciona com base na ideia de que ninguém vai lá e, ao acaso, o vai empurrar e matá-lo. Toda a vida humana funciona com base nesta realidade, a de que não vamos deliberadamente matar-nos uns aos outros sem um motivo. O crime, em princípio, tem uma razão. Nos romances policiais há o móbil do crime. O crime sem móbil, sem aparente explicação, destrói a base da vida em comunidade.
Não será uma incapacidade ocidental, certa dificuldade de ver o móbil do terrorismo?
Nós queremos encontrar uma justificação, mas não há uma justificação. Há muitas. Acho que demonstro isso. As coisas não começaram ontem. Há a I Guerra Mundial, há o processo histórico do petróleo, há a II Guerra Mundial e o nazismo, que tem que ver já com o nascimento de Israel. E depois há o niilismo, que já vinha do anarquismo e do terrorismo no século XIX, e que está no Conrad: o professor que anda com dinamite em O Agente Secreto, que anda pelas ruas delirante com a hipótese de poder explodir-se a todo o tempo. É uma ideia nova. Que tem hoje no Daesh a sua versão mais brutal.
Nós queremos encontrar uma justificação, mas não há uma justificação. Há muitas. Acho que demonstro isso. As coisas não começaram ontem. Há a I Guerra Mundial, há o processo histórico do petróleo, há a II Guerra Mundial e o nazismo, que tem que ver já com o nascimento de Israel. E depois há o niilismo, que já vinha do anarquismo e do terrorismo no século XIX, e que está no Conrad: o professor que anda com dinamite em O Agente Secreto, que anda pelas ruas delirante com a hipótese de poder explodir-se a todo o tempo. É uma ideia nova. Que tem hoje no Daesh a sua versão mais brutal.
A certa altura, a protagonista regressa ao catolicismo. Qual é a sua relação com a religião?
Sou uma católica do tipo Graham Greene, muito pouco ortodoxa. Fui sempre. Fui educada como católica e costuma-se dizer que o catolicismo é como o comunismo: uma vez comunista, sempre comunista; uma vez católico, sempre católico. De certa forma é verdade, no meu caso. Sou católica, frequento igrejas, tenho fé. A minha racionalidade às vezes soergue-se contra isso, timidamente, mas nunca cortei com a religião católica. Tenho muitas dúvidas sobre o Vaticano, sobre a hierarquia, sobre o dogma, sobre a desumanidade de que o catolicismo dogmático hoje se reveste e, nesse sentido, sou uma católica na versão Graham Greene. Quando o li pela primeira vez, disse: eis uma razão para escrever, fazer isto! Para mim, é o mestre absoluto.
Sou uma católica do tipo Graham Greene, muito pouco ortodoxa. Fui sempre. Fui educada como católica e costuma-se dizer que o catolicismo é como o comunismo: uma vez comunista, sempre comunista; uma vez católico, sempre católico. De certa forma é verdade, no meu caso. Sou católica, frequento igrejas, tenho fé. A minha racionalidade às vezes soergue-se contra isso, timidamente, mas nunca cortei com a religião católica. Tenho muitas dúvidas sobre o Vaticano, sobre a hierarquia, sobre o dogma, sobre a desumanidade de que o catolicismo dogmático hoje se reveste e, nesse sentido, sou uma católica na versão Graham Greene. Quando o li pela primeira vez, disse: eis uma razão para escrever, fazer isto! Para mim, é o mestre absoluto.
Aproveitando a deixa, tem outros mestres?
O Conrad e o Greene são dois mestres absolutos. Depois Nabokov, que é muito importante para mim, e os russos, adoro os russos: Tchekov, Tolstoi e Dostoieveski
O Conrad e o Greene são dois mestres absolutos. Depois Nabokov, que é muito importante para mim, e os russos, adoro os russos: Tchekov, Tolstoi e Dostoieveski
A clássica trindade russa.
Sim, a minha santíssima trindade. Depois há a minha outra santíssima trindade: Nabokov, Greene e Conrad. Já são duas santíssimas trindades. Não sei se isto é admissível.
Sim, a minha santíssima trindade. Depois há a minha outra santíssima trindade: Nabokov, Greene e Conrad. Já são duas santíssimas trindades. Não sei se isto é admissível.
E em português?
Eça de Queirós, com uns laivos de Camilo, e Alexandre O’Neill. E José Cardoso Pires. Fernando Pessoa, Campos. Pessoa e Camões são os pais de todos nós, ou o pai e o pai ou a mãe e a mãe. Adoro os sonetos camonianos, gosto muito de Pessoa, não todo o Campos e não todo o Pessoa. Gosto muito do Herberto, gosto imenso do Jorge de Sena. Mas matricial, matricial mesmo, foi Graham Greene: eu quero poder trabalhar as palavras daquela maneira.
Eça de Queirós, com uns laivos de Camilo, e Alexandre O’Neill. E José Cardoso Pires. Fernando Pessoa, Campos. Pessoa e Camões são os pais de todos nós, ou o pai e o pai ou a mãe e a mãe. Adoro os sonetos camonianos, gosto muito de Pessoa, não todo o Campos e não todo o Pessoa. Gosto muito do Herberto, gosto imenso do Jorge de Sena. Mas matricial, matricial mesmo, foi Graham Greene: eu quero poder trabalhar as palavras daquela maneira.
Não lhe parece que tendemos a atribuir aos escritores demasiada importância e demasiada responsabilidade?
Sim, é uma arte muito autocelebratória, muito autojubilatória, mas toda a gente faz isso. Porque as pessoas reconhecem que a escrita é uma grande arte. A escrita e a música são absolutamente a mesma coisa, são as grandes artes. E são artes combinatórias. Está tudo escrito e nada está escrito, e está tudo composto e nada está composto. É preciso ter um grande ego para achar, quando se escreve um livro, que se vai inovar.
Sim, é uma arte muito autocelebratória, muito autojubilatória, mas toda a gente faz isso. Porque as pessoas reconhecem que a escrita é uma grande arte. A escrita e a música são absolutamente a mesma coisa, são as grandes artes. E são artes combinatórias. Está tudo escrito e nada está escrito, e está tudo composto e nada está composto. É preciso ter um grande ego para achar, quando se escreve um livro, que se vai inovar.
Mas não se exige demasiado do escritor (do escritor que reflexiona e perora sobre o destino da pátria, etc.)?
Não sei, mas as pessoas atribuem qualidades délficas ao escritor, sim. Mas olhe que isso agora perdeu-se muito. Já foi mais. O mundo está cada vez mais caótico e as pessoas tentam encontrar na escrita – enfim, as que ainda lêem – uma resposta.
Não sei, mas as pessoas atribuem qualidades délficas ao escritor, sim. Mas olhe que isso agora perdeu-se muito. Já foi mais. O mundo está cada vez mais caótico e as pessoas tentam encontrar na escrita – enfim, as que ainda lêem – uma resposta.
Ninguém se lembraria de perguntar a um músico como é que se há-de governar a república…
Pois não. O Houellebecq, por exemplo, escreve livros sobre a França, e agora até se está a meter um pouco em política, e as pessoas dirigem-se a ele à procura de soluções para a vida política na França. Isso não compete a um escritor, e espero até que ele não as tenha, porque normalmente não são soluções muito democráticas. A escrita não é um processo democrático. Não compete a um escritor ter soluções para as alterações climáticas… E normalmente, quando os escritores se metem na política, sai asneira.
Pois não. O Houellebecq, por exemplo, escreve livros sobre a França, e agora até se está a meter um pouco em política, e as pessoas dirigem-se a ele à procura de soluções para a vida política na França. Isso não compete a um escritor, e espero até que ele não as tenha, porque normalmente não são soluções muito democráticas. A escrita não é um processo democrático. Não compete a um escritor ter soluções para as alterações climáticas… E normalmente, quando os escritores se metem na política, sai asneira.
Retomando a questão religiosa: será a
secularização do Ocidente que nos torna incapazes de integrar
racionalmente o problema do terrorismo fundamentalista e o peso da
religião nas sociedades islâmicas?
Sim, a secularização, que herdámos da Revolução Francesa, a grande república laica – e eu acredito na separação do Estado e da religião –,esvaziou-nos do ponto de vista da espiritualidade. Com essa secularização forçada pelas grandes doutrinas marxistas do princípio do século XX, que evidentemente tiraram muita gente da pobreza, rechaçámos a nossa necessidade de transcendência. Secularizámos à força, e isso deixou-nos muito mais niilistas, muito mais materialistas, muito mais vazios. Também destruiu algum sentido de comunidade e destruiu a nossa capacidade para entendermos o apego religioso dos outros.
Sim, a secularização, que herdámos da Revolução Francesa, a grande república laica – e eu acredito na separação do Estado e da religião –,esvaziou-nos do ponto de vista da espiritualidade. Com essa secularização forçada pelas grandes doutrinas marxistas do princípio do século XX, que evidentemente tiraram muita gente da pobreza, rechaçámos a nossa necessidade de transcendência. Secularizámos à força, e isso deixou-nos muito mais niilistas, muito mais materialistas, muito mais vazios. Também destruiu algum sentido de comunidade e destruiu a nossa capacidade para entendermos o apego religioso dos outros.
Também o capitalismo é desprovido de qualquer transcendência…
E nem faz uma tentativa de compreensão dessa transcendência, porque a transcendência contraria o lucro. O capitalismo, que é uma máquina fabulosa e triunfante, não pode consignar o desejo de transcendência dos homens porque isso ameaça a estrutura do capitalismo, o mercado. Falo disso no livro: o mercado sobrepõe-se à guerra, o mercado sobrepõe-se a tudo. A nova catedral é o centro comercial e o mercado é a nova religião. Já não temos medo de Deus, temos medo do mercado, ou dessa entidade divina e mais abstracta do que Deus: os mercados! São verdadeiramente os novos senhores do mundo e os senhores da nova espiritualidade, que é o materialismo. Nisso, o velho Marx não se enganou completamente. Se ler O Capital, encontra coisas de uma lucidez extraordinária.
E nem faz uma tentativa de compreensão dessa transcendência, porque a transcendência contraria o lucro. O capitalismo, que é uma máquina fabulosa e triunfante, não pode consignar o desejo de transcendência dos homens porque isso ameaça a estrutura do capitalismo, o mercado. Falo disso no livro: o mercado sobrepõe-se à guerra, o mercado sobrepõe-se a tudo. A nova catedral é o centro comercial e o mercado é a nova religião. Já não temos medo de Deus, temos medo do mercado, ou dessa entidade divina e mais abstracta do que Deus: os mercados! São verdadeiramente os novos senhores do mundo e os senhores da nova espiritualidade, que é o materialismo. Nisso, o velho Marx não se enganou completamente. Se ler O Capital, encontra coisas de uma lucidez extraordinária.
Isso
não torna mais incompreensível o modo como o Ocidente tem cometido
sucessivos erros no Médio Oriente? No livro recorda-se o “erro
histórico” que foi a invasão do Iraque…
A nossa necessidade de petróleo é uma das razões desses erros. No caso do Iraque, a estupidez obscena de Dick Cheney, de Paul Bremer e de toda aquela gente, é qualquer coisa que ainda hoje me revolta profundamente. São eles os responsáveis por tudo o que está acontecer hoje, pelo buraco enorme que é hoje o Médio Oriente, e que não vai ser resolúvel nos próximos anos. Não é resolúvel militarmente, nem politicamente, e do ponto de vista económico e financeiro é uma desgraça absoluta. Acho extraordinário que o senhor Tony Blair vá para a cama todas as noites sem que a consciência lhe morda.
A nossa necessidade de petróleo é uma das razões desses erros. No caso do Iraque, a estupidez obscena de Dick Cheney, de Paul Bremer e de toda aquela gente, é qualquer coisa que ainda hoje me revolta profundamente. São eles os responsáveis por tudo o que está acontecer hoje, pelo buraco enorme que é hoje o Médio Oriente, e que não vai ser resolúvel nos próximos anos. Não é resolúvel militarmente, nem politicamente, e do ponto de vista económico e financeiro é uma desgraça absoluta. Acho extraordinário que o senhor Tony Blair vá para a cama todas as noites sem que a consciência lhe morda.
E agora?
Não vejo nenhuma saída. Acho que vai piorar. Vai piorar para nós, europeus. Isto está ainda a começar.
Não vejo nenhuma saída. Acho que vai piorar. Vai piorar para nós, europeus. Isto está ainda a começar.
Até já querem a Turquia na UE…
Pois é! A França e a Alemanha não quiseram a Turquia porque não lhes convinha. A Turquia tornou-se entretanto uma potência, o senhor Erdogan é um ditador democraticamente eleito, e agora perceberam que a Turquia era o Estado-tampão para aquele mundo e que sem a Turquia nada se faz. Vai isso ser possível? Não sei, mas para Erdogan é certamente uma grande vitória. Porque a humilhação que infligimos aos turcos, ao rechaçá-los das negociações para a entrada na UE, foi um erro inacreditável.
Pois é! A França e a Alemanha não quiseram a Turquia porque não lhes convinha. A Turquia tornou-se entretanto uma potência, o senhor Erdogan é um ditador democraticamente eleito, e agora perceberam que a Turquia era o Estado-tampão para aquele mundo e que sem a Turquia nada se faz. Vai isso ser possível? Não sei, mas para Erdogan é certamente uma grande vitória. Porque a humilhação que infligimos aos turcos, ao rechaçá-los das negociações para a entrada na UE, foi um erro inacreditável.
Voltando a “Pai Nosso”, interessou-lhe mais debater o “conflito” e a “situação” do Médio Oriente ou escrever um romance?
Interessou-me a natureza humana: o que é que leva as pessoas a cometer determinados actos? Seja o acto de se apaixonar, seja o acto de matar. Actos emocionais extremos. No fundo são sempre os grandes temas. É evidente que há uma trama romanesca. Porque eu queria que Portugal e os portugueses fossem também actores de grandes dramas históricos. Queria que, no país onde nunca acontece nada, como dizia o Ruy Belo, acontecesse qualquer coisa. Mas, em última análise, o que me interessava era conduzir estas personagens até determinado desfecho.
Interessou-me a natureza humana: o que é que leva as pessoas a cometer determinados actos? Seja o acto de se apaixonar, seja o acto de matar. Actos emocionais extremos. No fundo são sempre os grandes temas. É evidente que há uma trama romanesca. Porque eu queria que Portugal e os portugueses fossem também actores de grandes dramas históricos. Queria que, no país onde nunca acontece nada, como dizia o Ruy Belo, acontecesse qualquer coisa. Mas, em última análise, o que me interessava era conduzir estas personagens até determinado desfecho.
Tariq aparece esporadicamente. Porquê?
Porque eu quis mantê-lo misterioso, não quis dissecá-lo. Se o fizesse, estragava o desfecho.
Porque eu quis mantê-lo misterioso, não quis dissecá-lo. Se o fizesse, estragava o desfecho.
Das motivações dele pouco sabemos…
Estão lá todas. Sabemos dele pelos actos dele e pelas outras personagens. Era importante não desvendar completamente o mistério, que nós não vamos aqui dizer qual é.
Estão lá todas. Sabemos dele pelos actos dele e pelas outras personagens. Era importante não desvendar completamente o mistério, que nós não vamos aqui dizer qual é.
Já há notícias de Maria?
Não, não tem que haver. Isto não é Hollywood! Às duas principais personagens, que são ela e o Tariq, não sabemos o que é que lhes aconteceu.
Não, não tem que haver. Isto não é Hollywood! Às duas principais personagens, que são ela e o Tariq, não sabemos o que é que lhes aconteceu.
Poderão então reaparecer?
Uma sequela? Não creio. O próximo livro não tem nada a ver com o Médio Oriente, felizmente. Tem duas personagens portuguesas e é sobre Portugal e o império português. No século XVI e no princípio do século XX. Quero escrever também um livro sobre refugiados da II Guerra Mundial. Em Portugal, mas não só. Eu tenho para aí um milhão e oitocentos mil caracteres de coisas que nunca publiquei, por grosso. Imagine a quantidade de livros. E grandes!
Uma sequela? Não creio. O próximo livro não tem nada a ver com o Médio Oriente, felizmente. Tem duas personagens portuguesas e é sobre Portugal e o império português. No século XVI e no princípio do século XX. Quero escrever também um livro sobre refugiados da II Guerra Mundial. Em Portugal, mas não só. Eu tenho para aí um milhão e oitocentos mil caracteres de coisas que nunca publiquei, por grosso. Imagine a quantidade de livros. E grandes!
Vai, portanto, dedicar-se mais a literatura?
Sim, vou tentar fazer menos jornalismo sem morrer de fome. O que é difícil.
Sim, vou tentar fazer menos jornalismo sem morrer de fome. O que é difícil.
Interessa-lhe a recepção que este livro possa ter?
Não. Tenho uma total indiferença. Escrevo para mim, escrevo porque sempre escrevo, às vezes escrevo coisas que podia publicar em jornais e não publico. Mas todos os dias escrevo.
Não. Tenho uma total indiferença. Escrevo para mim, escrevo porque sempre escrevo, às vezes escrevo coisas que podia publicar em jornais e não publico. Mas todos os dias escrevo.
Não receia que a sua escrita literária seja lida à luz da imagem construída na televisão e nas crónicas jornalísticas?
Eu pensei publicar este livro com pseudónimo.
Eu pensei publicar este livro com pseudónimo.
E não o fez porquê?
Porque fui desaconselhada vivamente pelos meus editores.
Porque fui desaconselhada vivamente pelos meus editores.
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Reportagem por Mário Santos
Fonte: http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/-e-preciso-ter-um-grande-ego-para-achar-quando-se-escreve-um-livro-que-se-vai-inovar-1716673
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