O escritor Ivan Chmeliov integrou a primeira grande vaga de exilados,
emigrados, refugiados ou expatriados russos
provocada pela Revolução de
Outubro de 1917 e pela guerra civil que se lhe
seguiu e que se prolongou
praticamente até 1923 DR
Tal como Ivan Búnin, Alexei Tolstói, Máximo Gorki ou Vladimir Nabokov
(para darmos aqui uma amostragem suficientemente heteróclita e,
simultaneamente, “familiar”), o escritor Ivan Chmeliov (Moscovo, 1873 –
Paris, 1950) integrou a primeira grande vaga de exilados, emigrados,
refugiados ou expatriados russos provocada pela Revolução de Outubro de
1917 e pela guerra civil que se lhe seguiu e que se prolongou
praticamente até 1923. Dissemos exilados, emigrados, refugiados ou
expatriados porque diversas foram as motivações (nem todas elas de
natureza ideológica ou política) que nesses anos levaram inumeráveis
artistas e poetas e escritores e intelectuais russos a trocarem São
Petersburgo ou Moscovo por Paris ou por Berlim. Diversos foram também os
destinos dos protagonistas dessa riquíssima diáspora: uns (Alexei
Tolstói e Gorki, por exemplo) depressa regressaram à Rússia, entretanto
transformada em União Soviética; outros adaptaram-se tão bem à sua nova
condição que acabaram por adoptar outras nacionalidades e até mesmo
outras línguas de trabalho literário (talvez o mais radical exílio ao
qual possa aspirar um escritor) – foi o caso de Nabokov, que passou a
escrever em inglês e que se tornou cidadão norte-americano; muitos
outros, não obstante nunca terem conseguido integrar-se bem nos países
que os acolheram, também nunca conseguiram regressar à Rússia, mas
continuaram a escrever e a publicar em língua russa – e é o caso de
Chmeliov (apesar de nunca ter voltado à Rússia, Búnin, para nos
mantermos nos exemplos citados, não se deu mal em França e acabou
tornando-se o primeiro escritor russo a receber o Nobel, em 1933).
O Sol dos Mortos (tradução, introdução e notas de Nina
Guerra e Filipe Guerra) é a revelação de Ivan Chmeliov em língua
portuguesa. Foi o primeiro livro escrito pelo autor depois de, em 1922,
ter abandonado a Crimeia, onde vivia desde 1918. Está assim datado, no
final: “Março – Setembro de 1923, Grasse”. Chmeliov tê-lo-á escrito,
portanto, na casa que Búnin possuía naquela localidade dos Alpes
Marítimos, e na qual passou uma temporada, ao chegar a França.
Simultaneamente lírico (na linguagem), épico (no assunto) e dramático
(pois a tragédia que testemunha e denuncia não pode deixar de suscitar
em nós a piedade e o horror), O Sol dos Mortos é uma revelação magnífica
que, para mais conveniente apreciação, convida o leitor a suspender
excessivas preocupações quanto ao seu estatuto gnosiológico, digamos
assim. Igualmente dispensável, por improfícua, será a tentativa de
enquadrar num “género” literário este livro – que é, sobretudo, memorial
e crónica da fome férrea e fera que mordeu a Crimeia entre 1921 e 1923.
Inicia-se
a narração numa bela manhã de Agosto, “em plena Crimeia, à beira-mar”,
próximo de Ialta, com “um sol tão deslumbrante e sumptuoso que o mar faz
doer os olhos, pica-os, esfaqueia-os” (pp. 15-16). O esplendor neutral
da natureza distante, tal como o fulgor faccioso da memória, só acentua a
miséria e a solidão do que está próximo e presente. O narrador tenta
encontrar uma razão para se levantar: “É preciso começar o dia, fugir
dos pensamentos, entrar na roda-viva da rotina de maneira a que possa
dizer a mim próprio: matei mais um dia!” Numa casa que dantes era sua,
mas que “agora é de ninguém”. Como tudo: “Há cães de ninguém, há também
pessoas de ninguém”. Às plantas e aos animais (um pavão, galinhas,
alguns porcos, uma vaca), a pedras e nuvens, aos seres e às casas, aos
mais humildes gestos quotidianos, procura o narrador devolver a
espiritualidade grave de um sentido que a “vassoura de ferro”
bolchevique parece ter varrido da Crimeia. “Agora é permitido tudo”,
lamenta: agora, “não há lei nem juízo” e “o medo cresce todos os dias, e
uma mão-cheia de trigo tem mais valor do que um ser humano” (p. 22).
Agora, até “as pedras – imóveis – podem ser misericordiosas”, mas não os
homens (p. 118). E depressa a desolação e o deserto abarcam tudo, a
alma e o corpo do narrador, o céu, as aves, o mar, abarcam o próximo e o
longínquo, os campos e os montes, abarcam o tempo (um presente eterno),
que se tornou uma “prisão perpétua” (p. 14). A narração, feita sempre
no presente, oprime. A secura, repetida, de algumas imagens não dá
tréguas: “o mar azul e vazio”, “o céu azul é vazio”, a “vinha vazia”, “o
sol vazio”; “o deserto grita”, “secou tudo”, “o sol rasteja”.
Chmeliov
era, obviamente, um conservador, e não viu com bons olhos o avanço do
Exército Vermelho na Crimeia, após a derrota, em 1920, do Exército
Branco comandado por Wrangel. Nesse mesmo ano, o filho único do
escritor, que servira nas fileiras dos Brancos, foi fuzilado (entre
vários milhares de outros opositores ao novo regime, alguns dos quais já
haviam estado nas frentes de batalha da Primeira Guerra Mundial). No
ano seguinte uma prolongada seca somou-se aos efeitos da devastadora
guerra civil e ao avanço violento dos bolcheviques, resultando na morte
pela fome de dezenas de milhares de pessoas. O Sol dos Mortos é
uma lamentação pungente: “Ainda hoje sinto o cheiro forte e agudo do
suor e do estrume das vacas. Qua fartura abençoada! Que mar de leite!...
Que sol generoso!...” (p. 111). É também um libelo amargo contra a
arrogância “das pessoas que descobriram o segredo” e que, para “tornar
feliz a humanidade”, estão dispostas a “começar pelos matadouros
humanos”. E não esquece a venal e traiçoeira prosápia dos intelectuais e
artistas de todos os regimes (“A fome domestica…”), nem a complacência
de sempre da bem-pensante Europa desses “admiradores entusiastas de
‘ousadias’” que, “nostálgicos dos altos voos aplaudem, […] perdoando
generosamente os pormenores, repetindo obrigatoriamente que só não erra
quem não… Bem, já é sabido” (p. 109). Pois é.
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REPORTAGEM POR MÁRIO SANTOS.
FONTE: http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/tudo-e-deserto-1715508
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