quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

TUDO É DESERTO

 
 O escritor Ivan Chmeliov integrou a primeira grande vaga de exilados, emigrados, refugiados ou expatriados russos 
provocada pela Revolução de Outubro de 1917 e pela guerra civil que se lhe
 seguiu e que se prolongou praticamente até 1923 DR 

Tal como Ivan Búnin, Alexei Tolstói, Máximo Gorki ou Vladimir Nabokov (para darmos aqui uma amostragem suficientemente heteróclita e, simultaneamente, “familiar”), o escritor Ivan Chmeliov (Moscovo, 1873 – Paris, 1950) integrou a primeira grande vaga de exilados, emigrados, refugiados ou expatriados russos provocada pela Revolução de Outubro de 1917 e pela guerra civil que se lhe seguiu e que se prolongou praticamente até 1923. Dissemos exilados, emigrados, refugiados ou expatriados porque diversas foram as motivações (nem todas elas de natureza ideológica ou política) que nesses anos levaram inumeráveis artistas e poetas e escritores e intelectuais russos a trocarem São Petersburgo ou Moscovo por Paris ou por Berlim. Diversos foram também os destinos dos protagonistas dessa riquíssima diáspora: uns (Alexei Tolstói e Gorki, por exemplo) depressa regressaram à Rússia, entretanto transformada em União Soviética; outros adaptaram-se tão bem à sua nova condição que acabaram por adoptar outras nacionalidades e até mesmo outras línguas de trabalho literário (talvez o mais radical exílio ao qual possa aspirar um escritor) – foi o caso de Nabokov, que passou a escrever em inglês e que se tornou cidadão norte-americano; muitos outros, não obstante nunca terem conseguido integrar-se bem nos países que os acolheram, também nunca conseguiram regressar à Rússia, mas continuaram a escrever e a publicar em língua russa – e é o caso de Chmeliov (apesar de nunca ter voltado à Rússia, Búnin, para nos mantermos nos exemplos citados, não se deu mal em França e acabou tornando-se o primeiro escritor russo a receber o Nobel, em 1933).
O Sol dos Mortos (tradução, introdução e notas de Nina Guerra e Filipe Guerra) é a revelação de Ivan Chmeliov em língua portuguesa. Foi o primeiro livro escrito pelo autor depois de, em 1922, ter abandonado a Crimeia, onde vivia desde 1918. Está assim datado, no final: “Março – Setembro de 1923, Grasse”. Chmeliov tê-lo-á escrito, portanto, na casa que Búnin possuía naquela localidade dos Alpes Marítimos, e na qual passou uma temporada, ao chegar a França. Simultaneamente lírico (na linguagem), épico (no assunto) e dramático (pois a tragédia que testemunha e denuncia não pode deixar de suscitar em nós a piedade e o horror), O Sol dos Mortos é uma revelação magnífica que, para mais conveniente apreciação, convida o leitor a suspender excessivas preocupações quanto ao seu estatuto gnosiológico, digamos assim. Igualmente dispensável, por improfícua, será a tentativa de enquadrar num “género” literário este livro – que é, sobretudo, memorial e crónica da fome férrea e fera que mordeu a Crimeia entre 1921 e 1923.

Inicia-se a narração numa bela manhã de Agosto, “em plena Crimeia, à beira-mar”, próximo de Ialta, com “um sol tão deslumbrante e sumptuoso que o mar faz doer os olhos, pica-os, esfaqueia-os” (pp. 15-16). O esplendor neutral da natureza distante, tal como o fulgor faccioso da memória, só acentua a miséria e a solidão do que está próximo e presente. O narrador tenta encontrar uma razão para se levantar: “É preciso começar o dia, fugir dos pensamentos, entrar na roda-viva da rotina de maneira a que possa dizer a mim próprio: matei mais um dia!” Numa casa que dantes era sua, mas que “agora é de ninguém”. Como tudo: “Há cães de ninguém, há também pessoas de ninguém”. Às plantas e aos animais (um pavão, galinhas, alguns porcos, uma vaca), a pedras e nuvens, aos seres e às casas, aos mais humildes gestos quotidianos, procura o narrador devolver a espiritualidade grave de um sentido que a “vassoura de ferro” bolchevique parece ter varrido da Crimeia. “Agora é permitido tudo”, lamenta: agora, “não há lei nem juízo” e “o medo cresce todos os dias, e uma mão-cheia de trigo tem mais valor do que um ser humano” (p. 22). Agora, até “as pedras – imóveis – podem ser misericordiosas”, mas não os homens (p. 118). E depressa a desolação e o deserto abarcam tudo, a alma e o corpo do narrador, o céu, as aves, o mar, abarcam o próximo e o longínquo, os campos e os montes, abarcam o tempo (um presente eterno), que se tornou uma “prisão perpétua” (p. 14). A narração, feita sempre no presente, oprime. A secura, repetida, de algumas imagens não dá tréguas: “o mar azul e vazio”, “o céu azul é vazio”, a “vinha vazia”, “o sol vazio”; “o deserto grita”, “secou tudo”, “o sol rasteja”.

Chmeliov era, obviamente, um conservador, e não viu com bons olhos o avanço do Exército Vermelho na Crimeia, após a derrota, em 1920, do Exército Branco comandado por Wrangel. Nesse mesmo ano, o filho único do escritor, que servira nas fileiras dos Brancos, foi fuzilado (entre vários milhares de outros opositores ao novo regime, alguns dos quais já haviam estado nas frentes de batalha da Primeira Guerra Mundial). No ano seguinte uma prolongada seca somou-se aos efeitos da devastadora guerra civil e ao avanço violento dos bolcheviques, resultando na morte pela fome de dezenas de milhares de pessoas. O Sol dos Mortos é uma lamentação pungente: “Ainda hoje sinto o cheiro forte e agudo do suor e do estrume das vacas. Qua fartura abençoada! Que mar de leite!... Que sol generoso!...” (p. 111). É também um libelo amargo contra a arrogância “das pessoas que descobriram o segredo” e que, para “tornar feliz a humanidade”, estão dispostas a “começar pelos matadouros humanos”. E não esquece a venal e traiçoeira prosápia dos intelectuais e artistas de todos os regimes (“A fome domestica…”), nem a complacência de sempre da bem-pensante Europa desses “admiradores entusiastas de ‘ousadias’” que, “nostálgicos dos altos voos aplaudem, […] perdoando generosamente os pormenores, repetindo obrigatoriamente que só não erra quem não… Bem, já é sabido” (p. 109). Pois é.
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REPORTAGEM POR MÁRIO SANTOS.
FONTE:  http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/tudo-e-deserto-1715508

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