Fernando Gabeira*
Não há governo para responder ao desemprego, empobrecimento, epidemias, mar de lama e ao sofrimento cotidiano dos brasileiros...
O Brasil está se desintegrando...
É preciso uma conversa geral e irrestrita
entre todos os que querem mudar,
tirando da frente os obstáculos
encalhados em Brasília.
Agora
que tudo está em ruínas, exceto algumas instituições que resistem, não
me preocupo em parecer pessimista. Quando anexei às listas das crises o
grave momento ambiental, algumas pessoas ironizaram: el Niño? Naquele momento falava apenas da seca, da tensão hídrica, das queimadas e enchentes. Depois disso veio o desastre de Mariana, revelando o descaso do governo e das empresas que, não se contentando em levar a montanha, transformam o Doce num rio de lama.
No fim de semana compreendi ainda outra dimensão da crise. O Brasil, segundo especialistas, vive uma situação única no mundo: três epidemias produzidas pelo Aedes Aegypti
(dengue, chikungunya e o zika vírus). O zika está sendo apontado como o
responsável pelo crescimento dos casos de microcefalia. Sabe-se
relativamente pouco sobre ele. E é preciso aprender com urgência. O
dr. Artur Timerman, presidente da Sociedade Brasileira de Dengue e
Arboviroses, considera a situação tão complexa como nos primeiros
momentos da epidemia de aids.
Agora
que está tudo em ruínas, restam os passos das instituições que
funcionam, o prende aqui, prende lá, delata ou não delata, atmosfera de
cena final, polícia nos calcanhares. Lembra-me a triste cena final do
filme Cinzas e Diamantes, de Andrzej Wajda. A Polônia
trocava um invasor, os nazistas, por outro, os comunistas: momento
singular. No entanto, há algo de uma tristeza universal na Polonaise desafinada e no passeio do jovem casal por uma cripta semidestruída pelos bombardeios.
Aqui,
a cena não é de filme de guerra, ocupação militar, mas de um thriller
policial em que a quadrilha descoberta vai sendo presa progressivamente.
Enquanto isso, não há governo para responder ao desemprego,
empobrecimento, epidemias, mar de lama e ao sofrimento cotidiano dos
brasileiros.
As
cenas finais são eletrizantes e a ausência de um roteirista tornou o
filme político ainda mais atraente. Mas perto da hora de acender a luz
os cinemas se preparam, abrem as cortinas e já se pode ver, de dentro,
como é sombria a noite lá fora.
Quase
todos concordam com a gravidade da crise, nunca antes neste país o
governo errou tanto, corrompeu tão disciplinadamente a vida política,
corroeu tanto os alicerces da jovem democracia, engrandecida com a luta
pelas diretas. Naquele
momento, a bandeira das diretas tinha conotação positiva, era a
esperança que nos movia. Muitos acham que só ela nos move. Mas diante
das circunstâncias ameaçadoras é o instinto de sobrevivência que nos pode mover: o Brasil está se desintegrando.
Hoje a esperança só pode ser construída na luta pela sobrevivência. Chegou a hora de conversarmos por baixo, uma vez que do sistema político não vem resposta. Naturalmente, saindo do pequeno universo, abrindo-se para as diferentes posições no campo dos que querem a mudança. Nada que ver com conversa de ex-presidentes ou com essa história de que oposição e governo têm de se entender.
O governo tem de entender que chegou sua hora, pois é o grande bloqueio no caminho da esperança. Não
é possível que, no auge de uma crise econômica, epidemias e desastre
ambiental, o País aceite ser governado por uma quadrilha de políticos e
empresários.
Às
vezes me lembro do tempo do exílio, quando sonhava com um passaporte
brasileiro. Agora é como se tivesse perdido o passaporte simbólico e de
certa maneira voltasse à margem.
Vivemos
momento em que quase tudo está em ruínas, como se fôssemos uma multidão
de pessoas sem papel. O foco nas cenas de desmonte policial é
importante. O voto direto dos senadores não seria aprovado, no caso Delcídio, não fora a vigilância da sociedade.
No entanto, a gravidade da situação pede muito mais. Há um momento em que você se sente órfão dos políticos do País. Mas logo em seguida percebe que é preciso caminhar sem eles. Hora de conversar na planície.
Não
descarto a importância de um núcleo parlamentar que nos ajude a mandar
para as Bermudas o triângulo Dilma, Renan, Cunha. Mas as grandes
questões continuam: como recuperar a economia, como voltar a crescer
de forma sustentável, como reposicionar o Brasil no mundo,
distanciando-nos dos atrasados bolivarianos?
Uma
das muitas maneiras de ver os limites do crescimento irracional é o
próprio desastre em Mariana, a agressão ao Rio Doce. A essência desse
crescimento é o depois de nós, o dilúvio. Às vezes o dilúvio se
antecipa, como no distrito de Bento Rodrigues, e fica mais fácil
compreender a gigantesca armadilha que legamos às novas gerações. É
preciso uma conversa geral e irrestrita entre todos os que querem mudar,
tirando da frente os obstáculos encalhados em Brasília.
Não
se trata de estender o dedo como naquele cartaz do Tio Sam, dizendo: o
País precisa de você. Na verdade, o caminho é mostrar que você precisa do País; se ele continuar se enterrando, alguns sonhos e perspectivas individuais se enterram também.
Compreendo
as pessoas que temem a derrubada do governo e seus aliados porque não
sabem precisamente o que virá adiante. Não sei se isto as conforta, mas o
descobrimento do Novo Mundo foi feito com mapas equivocados e
imprecisos. A fantasia dos navegantes estava povoada de monstros e
prodígios, no entanto, acabaram sendo recompensados por se terem movido.
O desafio de agora é menor do que lançar-se nos mares desconhecidos. Os mapas nascem de um amplo diálogo e, mesmo se não forem cientificamente precisos, podem nos recompensar pela movida.
Desde o princípio, o impeachment era uma solução lógica, mas incômoda. Muita gente preferiu ficar com um governo porque:
- ele foi eleito.
- Não importa se a campanha usou dinheiro do petrolão,
- Pasadena,
- não importam as mentiras,
- a incapacidade de Dilma.
- Ela foi eleita.
- Tem um diploma.
E vamos dançar nas ruínas contemplando o luminoso diploma, cultuando sua composição gráfica, a fita colorida.
Muitos
povos já se perderam no êxtase religioso como resposta a uma crise
profunda. Mas os deuses eram mais fortes, o sol, a fecundidade, a morte.
Estamos acorrentados a um diploma.
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*Jornalista e escritor brasileiro
Fonte: O Estado de S. Paulo – Espaço aberto– Sexta-feira, 4 de dezembro de 2015 – Pg. A2 – Internet: clique aqui.
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