Svetlana
Alexiévich (recebendo o Nobel de Literatura na Suécia) que se emociona
ao descrever os desastres que atingem
os indivíduos. Ao ver pedaços de
soldados que haviam pisado numa mina, desmaiou, mas narrou os fatos
A jornalista, autora do best seller internacional “O Fim do
Homem Soviético”, diz que, ao visitar Moscou, ficou surpresa ao ver
policiais, militares, políticos e gente comum rezando pelas armas
nucleares russas
A Rússia é o país dos poetas e dos governos que prendem, perseguem e
matam poetas. O poeta Púchkin, pai da moderna literatura russa, sofreu
perseguição. Dostoiévski morgou na Sibéria. Outros escritores, como
Herzen, optaram por morar no estrangeiro. No século 20, com o czarismo
vermelho, os poderosos se tornaram mais implacáveis do que os czares. Os
poetas Iessiênin, Maiakóvski e Marina Tsvetáieva “optaram” pelo
suicídio. É mais apropriado sugerir que ao menos os dois últimos foram
levados ao suicídio pelo comunismo, que não tolera criadores artísticos
avessos à camisa de força do realismo socialista. Mikhail Bulgákov não
pôde ver seu inquietante “O Mestre e Margarida” publicado e morreu cedo,
desesperado. O stalinismo matou Isaac Bábel, o notável contista. O
poeta Óssip Mandelstam morreu no Gulag de tifo e, claro, fome. Seu
pecado: escreveu um poema sobre os bigodes de barata de Stálin, no qual
denuncia seu autoritarismo. A poeta Anna Akhmátova, embora perseguida de
maneira criminosa, sobreviveu, à beira da miséria. O poeta Boris
Pasternak ganhou o Nobel de Literatura pelo romance “Doutor Jivago”, mas
não pôde recebê-lo. A obra saiu primeiro na Itália e noutros países; na
Rússia, considerado contrarrevolucionário (é um retrato impagável de
como o comunismo destrói a vida individual), saiu muitos anos depois.
Stálin decidiu não matar nem exilar Pasternak na Sibéria, pois o
admirava, ainda que não permitisse que publicasse, tanto que sobrevivia
fazendo traduções de Shakespeare e outros autores. Vassili Grossman é
autor do seminal “Vida e Destino”, mas a publicação do livro é póstuma. O
stalinismo e o pós-stalinismo censuraram sua obra (que se tornou
clássica, por assim dizer, no exterior). Noventa e oito anos depois da
Revolução Russa de 1917 e 24 anos após a queda do comunismo na União
Soviética, pode-se dizer que tudo mudou e que todos os países que
renasceram com sua atomização — como a Rússia, a Ucrânia e a
Bielorrússia — se tornaram democráticos? Não é bem assim. Sob Boris
Yeltsin, de fato, a Rússia respirou democracia, mas com Vladimir Putin e
seus agregados criou-se uma mistura insana de czarismo e comunismo.
Aliados de Putin são acusados de mandar assassinar adversários do novo
regime — uma espécie de democradura, quer dizer, uma democracia com
comportamento de ditadura —, inclusive fora do país, como é o caso do
ex-espião do KGB Alexander Litvinenko, envenenado em Londres. Agentes de
Putin usaram polônio para matá-lo. A jornalista Anna Politkovskaya foi
assassinada, em 2006. Ela era uma das críticas mais contundentes e bem
informadas sob a intervenção brutal de Putin na Chechênia (o genocídio
na região precisa ser mais bem explicitado pelo jornalismo do Ocidente).
Curiosamente, foi morta no dia do aniversário do presidente russo. É
provável que tenha sido um presente macabro.
A jornalista e escritora bielorrussa (na verdade, nasceu na Ucrânia)
Svetlana Alexiévich (ou Aleksievitch), de 67 anos, ganhou o Nobel de
Literatura de 2015, mas não se considera um par de outros russos que
ganharam o prêmio conferido pela Academia Sueca — Alexander Soljenítsin,
Boris Pasternak, Ivan Búnin, Mikhail Chólokhov e Joseph Brodsky. Numa
entrevista ao repórter Xavi Ayén (“Putin crea un califato ortodoxo”), do
jornal “La Vanguardia”, publicada na edição de 29 de novembro, a autora
do livro “O Fim do Homem Soviético — Tempo de Desencanto” (há uma
edição portuguesa, que pode ser encomendada, no site da Livraria
Cultura, por salgados 119 reais) adota uma frase do formidável poeta e
crítico Joseph Brodsky: “Não sou tão idiota para acreditar que estou à
altura deles”. É uma referência de Brodsky a Soljenítsin, Pasternak,
Ivan Búnin e Chólokhov. Inteiramente endossada, e com razão, por
Svetlana Alexiévich. Pode-se dizer que é uma herdeira, guardadas as
proporções, de Soljenítsin e Varlam Chalámov.
Soljenítsin, Pasternak, Búnin e Chólokhov são apontados como
“mestres” da literatura russa por Svetlana Alexiévich (claro que a
maioria dos grandes críticos literários aponta como mestres Púchkin,
Gógol, Dostoiévski, Tolstói, Turguêniev e Tchekhov). Os quatro
escritores “coincidem em algo: ao ganharem o Nobel, levantaram uma onda
de ódio na nossa sociedade. O mesmo começa a acontecer comigo. A
imprensa está cheia de artigos garantindo que a decisão [de premiá-la
com o Nobel] foi política, que o recebi por ser anti-Putin. É certo que
não suporto este homem. A Rússia, sob seu comando, faz o mesmo que nos
tempos da União Soviética: pratica uma política muito agressiva,
contrária aos valores europeus, aos valores democráticos. Putin não me
felicitou, ao contrário dos outros presidentes do continente”, denuncia a
escritora. Não se trata de paranoia de jornalista, não; na Rússia, é
assim mesmo. Uma jornalista teve de mudar-se para Londres simplesmente
porque não quis ser amante de Putin. Este chegou a fechar uma rua para
jantar com a repórter. As outras mesas do restaurante ficaram todas
vazias.
Como se encontrava em campanha eleitoral e pressionado por
correspondentes estrangeiros, o presidente da Bielorrúsica, Alexander
Lukashenko, notificado sobre o Nobel de Literatura, disse “algumas
palavras amáveis” sobre Svetlana Alexiévich. Mas, em seguida, ressalvou:
“Svetlana, inimiga do país, mancha nossa imagem”. A escritora rebateu
em cima da bucha: “Eu não critico a Bielorrússia, eu critico você”. Sua
franqueza e seu destemor exasperam o presidente — tão adulado quanto
quaisquer outros ditadores, como Fidel Castro, o fantasma que anda de
Cuba. “A Bielorrússia, no entendimento de Lukashenko, não precisa de um
Prêmio Nobel. Ele é um rei absolutista, ninguém pode fazer-lhe a mínima
sombra. Meus livros já estão nas livrarias, mas é algo recente.”
Ao receber o repórter do jornal de Barcelona, em Minsk (cinco graus
abaixo de zero), Svetlana Alexiévich estava gripada. De sua casa, é
possível avistar o Rio Svisloch. Enquanto trabalha, no seu escritório,
observa o rio, que inspira seus livros. A autora de “Vozes de Chernobyl —
Crônica do Futuro” afirma que não quer mais sair da capital da
Bielorrússia (o país é menor do que Goiás, com uma população de 9,4
milhões). Depois de 12 anos de exílio em Berlim, Gotemburgo e Paris,
voltou para a cidade “há pouco mais de três anos”. Os políticos do país
não toleram seus artigos e livros críticos, responsáveis e
incandescentes. Porém, como “precisa do dinheiro” da Alemanha de Angela
Merkel e do Fundo Monetário Internacional (FMI) — “porque Putin não lhe
oferece mais crédito” —, o presidente Alexander Lukashenko optou por uma
liberalização mínima. Talvez para inglês ver, tanto que “há opositores
desaparecidos, há execuções e falta liberdade. Estamos sob um regime
autoritário”. E cada vez mais totalitário, assim como o da Rússia, em
que opositores de Putin são assassinados à luz do dia e os assassinos
não são presos (exceto bodes expiatórios).
Entrevistador perspicaz, Xavi Ayén sugere que o leitor dos livros de
Svetlana Alexiévich “precisa fazer pausas, para respirar ou para chorar,
porque a intensidade da dor, a emoção que produzem, o impede de seguir
lendo”. O repórter quer saber se, quando escreve, ocorre o mesmo com a
autora. “Claro”, frisa. Um dia, quando os comandantes do Exército russo a
chamaram para ver o que restava de soldados que haviam pisado numa mina
italiana”, a escritora e jornalista percebeu que os pedaços, de tão
pequenos, eram recolhidos com colheres de chá. Eles eram enviados aos
parentes. “Eu desmaiei. Escrevi chorando.”
Há cenas que, de tão marcantes, acompanham Svetlana Alexiévich vida
afora, inclusive nos sonhos. Uma delas é a de uma mulher cujo marido era
um bombeiro contaminado em Chernobil, e sua pele saía em tiras. “Só
trato do que as pessoas pensam e do que aconteceu de verdade. Porém meus
livros não são de terror, e, apesar do horror e da morte, também há
amor e alegria, pois nas guerras e catástrofes tudo se dá de modo
intenso.”
Xavi Ayén sugere que as cenas de amor descritas por Svetlana
Alexiévich também provocam choro. Ela concorda: “Sim, é verdade”. “Estou
escrevendo uma história sobre o amor, com o mesmo método de sempre:
faço centenas de entrevistas, e incluo tão-só uma pequena parte delas,
fragmentos significativos.”
O nazista Adolf Hitler, menciona Xavi Ayén, dizia: “Na Rússia não se
combate segundo as regras”. De fato, os soldados alemães mataram
milhares de soviéticos, sem respeito algum às regras — assim como os
soviéticos mataram alemães e mesmo soviéticos desrespeitando as mínimas
normas de civilidade. Hitler, segundo Svetlana Alexiévich, “referia-se
aos partisans, aos guerrilheiros, que eram muito cruéis e não tinham
regras. Os fascistas queimavam povoados inteiros com sua população
dentro e, quando os partisans os atrapalhavam”, agrediam ainda mais as
vítimas inocentes. Para casa soldado alemão morto, ou ferido, os
nazistas fuzilavam várias pessoas. “Não há pessoas boas numa guerra,
quando pegam uma arma deixam de ser boas — esta é a mensagem de todos os
meus livros.”
Num momento de descontração, Xavi Ayén faz um comentário curioso:
“Você não quer fazer fotos porque está resfriada. Parece uma das
soldados de seu livro ‘A Guerra Não Tem Rosto de Mulher’, no qual as
combatentes exibem gestos insólitos de coqueteria no meio do massacre”.
Sua explicação: “Por favor, eu estou muito enferma, não compare… Penso
às vezes em meu aspecto, sim”. Ao se preparar para ler o discurso na
Academia Sueca, quando receberia oficialmente o Nobel de Literatura,
perguntou-se: “Como vestir-me?”. Ela conta ao repórter que não sabia se
deveria ir de calça — porque o discurso era rude e violento — ou se de
vestido, “que é mais adequado para dançar uma valsa”. Ela recebeu o
prêmio no dia 7 de dezembro deste ano.
No seu discurso, muito comentado na Europa, Svetlana Alexiévich
explicou o que fez de sua vida. “Narro o império vermelho, o império
soviético, conto como somos pequenas partículas desse império. As
pessoas simples foram usadas como instrumentos, ninguém perguntava sobre
seus sentimentos e ideias.” A jornalista, que escreve como uma
prosadora requintada, afirma que, ao contrário dos líderes do regime
totalitário, decidiu ouvir as pesso as comuns. Ela afirma que, em “muitos
casos, as pessoas foram ouvidas pela primeira vez”.
Varlam Chalámov, autor do impressionante “Contos de Kolimá” (o
primeiro volume da obra-prima acaba de sair no Brasil pela Editora 34),
foi citado por Svetlana Alexiévich. “O poeta Chalámov esteve no Gulag e
disse haver visto ‘a grande batalha pela renovação do homem, pelo
renascimento do homem’. Eu fui cúmplice de tudo isso, eu cresci na União
Soviética. Mas o único rastro [herança, legado] que deixaram os
bolcheviques são charcos de sangue. Escrevo sobre isto.” O que Varlam
Varlam Chalámov descobriu que o bolchevismo não criava homem novo algum.
Na verdade, “dissolvia” a individualidade e, com isso, criava homens
autômatos. No degredo, na Sibéria, estavam aqueles que não se submetiam.
Como não escreveu uma linha de ficção, Xavi Ayén quer saber se o
Nobel de Literatura é seu ou dos entrevistados. “É de todas as pessoas
afetadas pelos desastres que narro: das vítimas de Chernobyl, das
mulheres que lutaram na guerra, dos que aguentaram os maus-tratos porque
acreditavam na União Soviética.” A pergunta e a resposta são um
exercício de retórica. Sem jornalistas, como Svetlana Alexiévich, e
historiadores como Orlando Figes, autor do estupendo “Sussurros — A Vida
Privada na Rússia de Stálin”, não teríamos os dramas de indivíduos
anônimos tão bem relatados e documentados.
“Você criou um novo gênero: a novela coral, confeccionada a partir de
centenas de entrevistas. Se dá conta?”, pergunta Xavi Ayén. Não traduzi
parte da pergunta, a que fala de uma “novela coral”. Primeiro, em
espanhol novela é romance. Segundo, coral advém de coro (de vozes), e
isto corresponde a “centenas de entrevistas”. Uma tradução mais
pertinente seria “uma história coletiva” (o que parece óbvio demais). A
resposta de Svetlana Alexiévich amplifica a sugestiva exposição do
atento repórter: “Gostaria de pensar que é um novo gênero. Não é uma
simples narração e, ainda que tudo seja não-ficção, está mais próxima da
literatura do que de outra coisa, é uma novela de vozes. A vida flui de
um modo que é impossível contá-la a partir de uma só voz, não existe um
narrador alfa, sólido, dominante, só a sucessão de vozes pequeninhas
que criam um coro. É uma concentração de grande densidade na qual o
autor deve operar com muita delicadeza”.
“Você explica como os indivíduos preenchem o tempo durante as
desgraças”, anota Xavi Ayén. “Uma coisa foi Chernobyl [o acidente na
usina nuclear ocorreu em 1986] ou a queda do comunismo [em 1991], quando
buscávamos uma nova fé, porque éramos ateus e precisávamos de algum
consolo. Mas agora as pessoas vão às igrejas ortodoxas na Rússia como
consequência da propaganda, que mescla política e religião. O regime de
Putin está histérico com a religiosidade, está substituindo a fé pela
propaganda. As autoridades querem criar um califado ortodoxo. Há pouco
tempo estive em Moscou e fui à catedral, à missa. Vi muitos policiais,
integrantes de anti-distúrbios, uma grande bagunça. Pensei que poderia
ocorrer um atentado, mas me responderam: ‘Não, senhora, vamos todos à
missa em defesa das armas nucleares russas’. Se dá conta? Rezavam pelas
armas nucleares russas! Policiais, políticos e militares. É asqueroso.
Depois, noutro dia, entro em um táxi e o motorista me pergunta: ‘Você é
ortodoxa?’ ‘Não’. ‘Pois sinto muito, você entrou num táxi ortodoxo e
aqui oferecemos nosso serviço unicamente aos ortodoxos; rogo que saia’. À
noite, fui ao teatro e me encontrei com um grupo de cossacos ameaçando
os diretores para que deixassem de representar a obra de [Vladimir]
Nabokov” (autor de “Lolita” e “Ada”). Falo de poucos dias. É o homem
vermelho [comunista], que segue vivo, que devemos extirpar.”
Vladimir Putin, na opinião de Svetlana Alexiévich, “se vê como um
czar, uma figura religiosa e política” [o leitor pode verificar o
original da entrevista aqui.
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Fonte: http://www.jornalopcao.com.br/colunas-e-blogs/imprensa/svetlana-alexievich-nobel-de-literatura-diz-que-o-czar-putin-criou-um-califado-ortodoxo-55288/ - Acesso 27/12/2015
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