domingo, 27 de dezembro de 2015

Svetlana Alexiévich, Nobel de Literatura, diz que o czar Putin criou um califado ortodoxo

Svetlana Alexiévich (recebendo o Nobel de Literatura na Suécia) que se emociona ao descrever os desastres que atingem os indivíduos. Ao ver pedaços de soldados que haviam pisado numa mina, desmaiou, mas narrou os fatos
 Svetlana Alexiévich (recebendo o Nobel de Literatura na Suécia) que se emociona ao descrever os desastres que atingem
 os indivíduos. Ao ver pedaços de soldados que haviam pisado numa mina, desmaiou, mas narrou os fatos

A jornalista, autora do best seller internacional “O Fim do Homem Soviético”, diz que, ao visitar Moscou, ficou surpresa ao ver policiais, militares, políticos e gente comum rezando pelas armas nucleares russas


A Rússia é o país dos poetas e dos governos que prendem, perseguem e matam poetas. O poeta Púchkin, pai da moderna literatura russa, sofreu perseguição. Dostoiévski morgou na Sibéria. Outros escritores, como Herzen, optaram por morar no estrangeiro. No século 20, com o czarismo vermelho, os poderosos se tornaram mais implacáveis do que os czares. Os poetas Iessiênin, Maiakóvski e Marina Tsvetáieva “optaram” pelo suicídio. É mais apropriado sugerir que ao menos os dois últimos foram levados ao suicídio pelo comunismo, que não tolera criadores artísticos avessos à camisa de força do realismo socialista. Mikhail Bulgákov não pôde ver seu inquietante “O Mestre e Margarida” publicado e morreu cedo, desesperado. O stalinismo matou Isaac Bábel, o notável contista. O poeta Óssip Mandelstam morreu no Gulag de tifo e, claro, fome. Seu pecado: escreveu um poema sobre os bigodes de barata de Stálin, no qual denuncia seu autoritarismo. A poeta Anna Akhmátova, embora perseguida de maneira criminosa, sobreviveu, à beira da miséria. O poeta Boris Pasternak ganhou o Nobel de Literatura pelo romance “Doutor Jivago”, mas não pôde recebê-lo. A obra saiu primeiro na Itália e noutros países; na Rússia, considerado contrarrevolucionário (é um retrato impagável de como o comunismo destrói a vida individual), saiu muitos anos depois. Stálin decidiu não matar nem exilar Pasternak na Sibéria, pois o admirava, ainda que não permitisse que publicasse, tanto que sobrevivia fazendo traduções de Shakespeare e outros autores. Vassili Grossman é autor do seminal “Vida e Destino”, mas a publicação do livro é póstuma. O stalinismo e o pós-stalinismo censuraram sua obra (que se tornou clássica, por assim dizer, no exterior). Noventa e oito anos depois da Revolução Russa de 1917 e 24 anos após a queda do comunismo na União Soviética, pode-se dizer que tudo mudou e que todos os países que renasceram com sua atomização — como a Rússia, a Ucrânia e a Bielorrússia — se tornaram democráticos? Não é bem assim. Sob Boris Yeltsin, de fato, a Rússia respirou democracia, mas com Vladimir Putin e seus agregados criou-se uma mistura insana de czarismo e comunismo. Aliados de Putin são acusados de mandar assassinar adversários do novo regime — uma espécie de democradura, quer dizer, uma democracia com comportamento de ditadura —, inclusive fora do país, como é o caso do ex-espião do KGB Alexander Litvinenko, envenenado em Londres. Agentes de Putin usaram polônio para matá-lo. A jornalista Anna Politkovskaya foi assassinada, em 2006. Ela era uma das críticas mais contundentes e bem informadas sob a intervenção brutal de Putin na Chechênia (o genocídio na região precisa ser mais bem explicitado pelo jornalismo do Ocidente). Curiosamente, foi morta no dia do aniversário do presidente russo. É provável que tenha sido um presente macabro.

A jornalista e escritora bielorrussa (na verdade, nasceu na Ucrânia) Svetlana Alexiévich (ou Aleksievitch), de 67 anos, ganhou o Nobel de Literatura de 2015, mas não se considera um par de outros russos que ganharam o prêmio conferido pela Academia Sueca — Alexander Soljenítsin, Boris Pasternak, Ivan Búnin, Mikhail Chólokhov e Joseph Brodsky. Numa entrevista ao repórter Xavi Ayén (“Putin crea un califato ortodoxo”), do jornal “La Vanguardia”, publicada na edição de 29 de novembro, a autora do livro “O Fim do Homem Soviético — Tempo de Desencanto” (há uma edição portuguesa, que pode ser encomendada, no site da Livraria Cultura, por salgados 119 reais) adota uma frase do formidável poeta e crítico Joseph Brodsky: “Não sou tão idiota para acreditar que estou à altura deles”. É uma referência de Brodsky a Soljenítsin, Pasternak, Ivan Búnin e Chólokhov. Inteiramente endossada, e com razão, por Svetlana Alexiévich. Pode-se dizer que é uma herdeira, guardadas as proporções, de Soljenítsin e Varlam Chalámov.

Soljenítsin, Pasternak, Búnin e Chólokhov são apontados como “mestres” da literatura russa por Svetlana Alexiévich (claro que a maioria dos grandes críticos literários aponta como mestres Púchkin, Gógol, Dostoiévski, Tolstói, Turguêniev e Tchekhov). Os quatro escritores “coincidem em algo: ao ganharem o Nobel, levantaram uma onda de ódio na nossa sociedade. O mesmo começa a acontecer comigo. A imprensa está cheia de artigos garantindo que a decisão [de premiá-la com o Nobel] foi política, que o recebi por ser anti-Putin. É certo que não suporto este homem. A Rússia, sob seu comando, faz o mesmo que nos tempos da União Soviética: pratica uma política muito agressiva, contrária aos valores europeus, aos valores democráticos. Putin não me felicitou, ao contrário dos outros presidentes do continente”, denuncia a escritora. Não se trata de paranoia de jornalista, não; na Rússia, é assim mesmo. Uma jornalista teve de mudar-se para Londres simplesmente porque não quis ser amante de Putin. Este chegou a fechar uma rua para jantar com a repórter. As outras mesas do restaurante ficaram todas vazias.

Vladimir Putin: o presidente russo mistura traços autoritários de Stálin e dos czares e usa a religião como instrumento político de coesão e apelo popular. Nas suas folgas, exibindo-se, mostra-se como atleta, caçador e guerreiro armado
Vladimir Putin: o presidente russo mistura traços autoritários de Stálin e dos 
czares e usa a religião como instrumento político de coesão e apelo popular. 
Nas suas folgas, exibindo-se, mostra-se como atleta, caçador e guerreiro armado

Como se encontrava em campanha eleitoral e pressionado por correspondentes estrangeiros, o presidente da Bielorrúsica, Alexander Lukashenko, notificado sobre o Nobel de Literatura, disse “algumas palavras amáveis” sobre Svetlana Alexiévich. Mas, em seguida, ressalvou: “Svetlana, inimiga do país, mancha nossa imagem”. A escritora rebateu em cima da bucha: “Eu não critico a Bielorrússia, eu critico você”. Sua franqueza e seu destemor exasperam o presidente — tão adulado quanto quaisquer outros ditadores, como Fidel Castro, o fantasma que anda de Cuba. “A Bielorrússia, no entendimento de Lukashenko, não precisa de um Prêmio Nobel. Ele é um rei absolutista, ninguém pode fazer-lhe a mínima sombra. Meus livros já estão nas livrarias, mas é algo recente.”

Ao receber o repórter do jornal de Barcelona, em Minsk (cinco graus abaixo de zero), Svetlana Alexiévich estava gripada. De sua casa, é possível avistar o Rio Svisloch. Enquanto trabalha, no seu escritório, observa o rio, que inspira seus livros. A autora de “Vozes de Chernobyl — Crônica do Futuro” afirma que não quer mais sair da capital da Bielorrússia (o país é menor do que Goiás, com uma população de 9,4 milhões). Depois de 12 anos de exílio em Berlim, Gotemburgo e Paris, voltou para a cidade “há pouco mais de três anos”. Os políticos do país não toleram seus artigos e livros críticos, responsáveis e incandescentes. Porém, como “precisa do dinheiro” da Alemanha de Angela Merkel e do Fundo Monetário Internacional (FMI) — “porque Putin não lhe oferece mais crédito” —, o presidente Alexander Lukashenko optou por uma liberalização mínima. Talvez para inglês ver, tanto que “há opositores desaparecidos, há execuções e falta liberdade. Estamos sob um regime autoritário”. E cada vez mais totalitário, assim como o da Rússia, em que opositores de Putin são assassinados à luz do dia e os assassinos não são presos (exceto bodes expiatórios).

Entrevistador perspicaz, Xavi Ayén sugere que o leitor dos livros de Svetlana Alexiévich “precisa fazer pausas, para respirar ou para chorar, porque a intensidade da dor, a emoção que produzem, o impede de seguir lendo”. O repórter quer saber se, quando escreve, ocorre o mesmo com a autora. “Claro”, frisa. Um dia, quando os comandantes do Exército russo a chamaram para ver o que restava de soldados que haviam pisado numa mina italiana”, a escritora e jornalista percebeu que os pedaços, de tão pequenos, eram recolhidos com colheres de chá. Eles eram enviados aos parentes. “Eu desmaiei. Escrevi chorando.”

Há cenas que, de tão marcantes, acompanham Svetlana Alexiévich vida afora, inclusive nos sonhos. Uma delas é a de uma mulher cujo marido era um bombeiro contaminado em Chernobil, e sua pele saía em tiras. “Só trato do que as pessoas pensam e do que aconteceu de verdade. Porém meus livros não são de terror, e, apesar do horror e da morte, também há amor e alegria, pois nas guerras e catástrofes tudo se dá de modo intenso.”

Xavi Ayén sugere que as cenas de amor descritas por Svetlana Alexiévich também provocam choro. Ela concorda: “Sim, é verdade”. “Estou escrevendo uma história sobre o amor, com o mesmo método de sempre: faço centenas de entrevistas, e incluo tão-só uma pequena parte delas, fragmentos significativos.”

O nazista Adolf Hitler, menciona Xavi Ayén, dizia: “Na Rússia não se combate segundo as regras”. De fato, os soldados alemães mataram milhares de soviéticos, sem respeito algum às regras — assim como os soviéticos mataram alemães e mesmo soviéticos desrespeitando as mínimas normas de civilidade. Hitler, segundo Svetlana Alexiévich, “referia-se aos partisans, aos guerrilheiros, que eram muito cruéis e não tinham regras. Os fascistas queimavam povoados inteiros com sua população dentro e, quando os partisans os atrapalhavam”, agrediam ainda mais as vítimas inocentes. Para casa soldado alemão morto, ou ferido, os nazistas fuzilavam várias pessoas. “Não há pessoas boas numa guerra, quando pegam uma arma deixam de ser boas — esta é a mensagem de todos os meus livros.”
Num momento de descontração, Xavi Ayén faz um comentário curioso: “Você não quer fazer fotos porque está resfriada. Parece uma das soldados de seu livro ‘A Guerra Não Tem Rosto de Mulher’, no qual as combatentes exibem gestos insólitos de coqueteria no meio do massacre”. Sua explicação: “Por favor, eu estou muito enferma, não compare… Penso às vezes em meu aspecto, sim”. Ao se preparar para ler o discurso na Academia Sueca, quando receberia oficialmente o Nobel de Literatura, perguntou-se: “Como vestir-me?”. Ela conta ao repórter que não sabia se deveria ir de calça — porque o discurso era rude e violento — ou se de vestido, “que é mais adequado para dançar uma valsa”. Ela recebeu o prêmio no dia 7 de dezembro deste ano.

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“O Fim do Homem Soviético”: neste livro, Svetlana Alexiévich mergulha na Rússia profunda e mostra como vivem e o que pensam homens e mulheres do pós-União Soviética

No seu discurso, muito comentado na Europa, Svetlana Alexiévich explicou o que fez de sua vida. “Narro o império vermelho, o império soviético, conto como somos pequenas partículas desse império. As pessoas simples foram usadas como instrumentos, ninguém perguntava sobre seus sentimentos e ideias.” A jornalista, que escreve como uma prosadora requintada, afirma que, ao contrário dos líderes do regime totalitário, decidiu ouvir as pesso as comuns. Ela afirma que, em “muitos casos, as pessoas foram ouvidas pela primeira vez”.

Varlam Chalámov, autor do impressionante “Contos de Kolimá” (o primeiro volume da obra-prima acaba de sair no Brasil pela Editora 34), foi citado por Svetlana Alexiévich. “O poeta Chalámov esteve no Gulag e disse haver visto ‘a grande batalha pela renovação do homem, pelo renascimento do homem’. Eu fui cúmplice de tudo isso, eu cresci na União Soviética. Mas o único rastro [herança, legado] que deixaram os bolcheviques são charcos de sangue. Escrevo sobre isto.” O que Varlam Varlam Chalámov descobriu que o bolchevismo não criava homem novo algum. Na verdade, “dissolvia” a individualidade e, com isso, criava homens autômatos. No degredo, na Sibéria, estavam aqueles que não se submetiam.

Como não escreveu uma linha de ficção, Xavi Ayén quer saber se o Nobel de Literatura é seu ou dos entrevistados. “É de todas as pessoas afetadas pelos desastres que narro: das vítimas de Chernobyl, das mulheres que lutaram na guerra, dos que aguentaram os maus-tratos porque acreditavam na União Soviética.” A pergunta e a resposta são um exercício de retórica. Sem jornalistas, como Svetlana Alexiévich, e historiadores como Orlando Figes, autor do estupendo “Sussurros — A Vida Privada na Rússia de Stálin”, não teríamos os dramas de indivíduos anônimos tão bem relatados e documentados.

“Você criou um novo gênero: a novela coral, confeccionada a partir de centenas de entrevistas. Se dá conta?”, pergunta Xavi Ayén. Não traduzi parte da pergunta, a que fala de uma “novela coral”. Primeiro, em espanhol novela é romance. Segundo, coral advém de coro (de vozes), e isto corresponde a “centenas de entrevistas”. Uma tradução mais pertinente seria “uma história coletiva” (o que parece óbvio demais). A resposta de Svetlana Alexiévich amplifica a sugestiva exposição do atento repórter: “Gostaria de pensar que é um novo gênero. Não é uma simples narração e, ainda que tudo seja não-ficção, está mais próxima da literatura do que de outra coisa, é uma novela de vozes. A vida flui de um modo que é impossível contá-la a partir de uma só voz, não existe um narrador alfa, sólido, dominante, só a sucessão de vozes pequeninhas que criam um coro. É uma concentração de grande densidade na qual o autor deve operar com muita delicadeza”.

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“Vozes de Chernobyl — Crônica do Futuro”: quando muitos já haviam esquecido a história, Svetlana Alexiévich esteve lá e recontou-a a partir de entrevistas com várias pessoas

“Você explica como os indivíduos preenchem o tempo durante as desgraças”, anota Xavi Ayén. “Uma coisa foi Chernobyl [o acidente na usina nuclear ocorreu em 1986] ou a queda do comunismo [em 1991], quando buscávamos uma nova fé, porque éramos ateus e precisávamos de algum consolo. Mas agora as pessoas vão às igrejas ortodoxas na Rússia como consequência da propaganda, que mescla política e religião. O regime de Putin está histérico com a religiosidade, está substituindo a fé pela propaganda. As autoridades querem criar um califado ortodoxo. Há pouco tempo estive em Moscou e fui à catedral, à missa. Vi muitos policiais, integrantes de anti-distúrbios, uma grande bagunça. Pensei que poderia ocorrer um atentado, mas me responderam: ‘Não, senhora, vamos todos à missa em defesa das armas nucleares russas’. Se dá conta? Rezavam pelas armas nucleares russas! Policiais, políticos e militares. É asqueroso. Depois, noutro dia, entro em um táxi e o motorista me pergunta: ‘Você é ortodoxa?’ ‘Não’. ‘Pois sinto muito, você entrou num táxi ortodoxo e aqui oferecemos nosso serviço unicamente aos ortodoxos; rogo que saia’. À noite, fui ao teatro e me encontrei com um grupo de cossacos ameaçando os diretores para que deixassem de representar a obra de [Vladimir] Nabokov” (autor de “Lolita” e “Ada”). Falo de poucos dias. É o homem vermelho [comunista], que segue vivo, que devemos extirpar.”

Vladimir Putin, na opinião de Svetlana Alexiévich, “se vê como um czar, uma figura religiosa e política” [o leitor pode verificar o original da entrevista aqui.
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Fonte:  http://www.jornalopcao.com.br/colunas-e-blogs/imprensa/svetlana-alexievich-nobel-de-literatura-diz-que-o-czar-putin-criou-um-califado-ortodoxo-55288/ - Acesso 27/12/2015

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