GAUDÊNCIO TORQUATO*
O homem, em estado de perfeição, ensinava Aristóteles, é
o melhor dos animais. Quando, porém, afastado da lei e da justiça, é o
mais selvagem e impiedoso de todos, pois, destituído de qualidades
morais, usa a inteligência e o talento como armas para praticar o mal. É
possível vislumbrar no pensamento do filósofo grego a inspiração que
emoldura a sábia (e poética) observação do ministro Ayres Britto por
ocasião da sessão da Suprema Corte que julgou o núcleo político da Ação
Penal 470 pelo crime de formação de quadrilha: "Deus no céu e a política
na terra. Por quê? Porque a política é o meio pelo qual a sociedade
constrói e reconstrói o Estado. A política é o instrumento de
concretização dos anseios do povo. É, acima de tudo, a forma pela qual
se pode buscar o bem-estar coletivo, a manutenção da ordem e a concepção
do progresso". Na mesma linha de salvaguarda dos primados da política
no sentido aristotélico se encaixam a sentença do decano do Supremo,
Celso de Mello, ao condenar a feroz ética maquiavélica - "os fins não
justificam a adoção de quaisquer meios" - e o arremate do relator,
Joaquim Barbosa: "A prática de formação de quadrilha por pessoas que
usam terno e gravata traz um desassossego que é ainda maior dos que
consagram a prática dos crimes de sangue".
No fundo, as perorações procuram elevar ao mais alto patamar da
grandeza as virtudes do homem e a noção de direitos que Alexis de
Tocqueville distinguia como imanentes ao mundo político. "Não existem
grandes homens sem virtude; sem respeito aos direitos, não existem
grandes povos e nem mesmo sociedade", pregava. Pelo que se viu, a
histórica aula de Direito propiciada pelo STF há de merecer destaque não
apenas pelo fato de ter trazido à tona questões centrais sobre a mola
transformadora de uma sociedade, mas pelo feito de revestir conceitos
clássicos - Estado, política, ética, direitos, cidadania, liberdade,
democracia - com densa camada de argumentos cuja força reside,
sobretudo, na aguda interpretação de nossa realidade política. No seio
de uma cultura eivada de mazelas históricas, treinada na arte de
transformar curvas em retas, impermeável ao temor do castigo por saberem
seus artífices que, flagrados em práticas ilícitas, mais cedo ou mais
tarde escaparão das teias que os envolvem, a decisão de punir altas
figuras que ocuparam o centro do poder parece algo inusitado. Punir
poderosos? Inacreditável, mesmo que se projete na mente social a imagem
de uma Corte de juízes probos, independentes, autônomos, iluminados pela
coleção de valores alinhavados pelo filósofo Francis Bacon: "Os juízes
devem ser mais instruídos que sutis, mais reverendos que aclamados, mais
circunspectos do que audaciosos".
Se alguém tinha dúvidas sobre o fator que efetivamente transforma a
história das sociedades, recebeu concisa resposta na expressão da
maioria dos ministros do Supremo: a igualdade dos homens. Todos são
iguais perante a lei. Por isso urge evitar os exageros a fim de não se
cair na desigualdade. A ciência política elege o igualitarismo entre os
homens como essência da própria democracia. O ideal da liberdade une-se
ao pilar da igualdade, condição que, por sua vez, exige práticas
políticas irrigadas pelas águas da ética. Ao se anotar ali um grupo de
pessoas notáveis, cada qual com seu devido aparato legal-jurídico,
floresce a impressão de que o governo da justiça estende os braços a
todos, sem distinção de classe ou categoria. Viceja o sentimento de que
há uma plêiade que cuida (e bem) da vida da ordem.
"Pátria é comunhão de esperanças,
de sonhos comuns e a busca
de um ideal; é a solidariedade sentimental de um povo,
e não a
confabulação de politiqueiros
que medram à sua sombra".
- José Ingenieros, em seu belo livro O Homem
Medíocre -
A semente plantada pela Justiça demorará a frutificar? Pode ser. Mas o
traçado da política pela régua dos nossos atores não será o mesmo.
Mudará de direção. Representantes do povo, agora mais atentos ao que
pode e ao que não pode ser feito, esforçar-se-ão para atenuar os vícios a
que se amoldaram e cultivam. Não se muda uma cultura política da noite
para o dia. Mas a longa trajetória da ética começa, bem o sabemos, com
dois ou três passos morais. E a soma de passos conjugados, no centro e
nos fundões do território, conduzirá os conjuntos políticos a exercitar
comportamentos regrados por bons costumes e ações referendadas pelo
império da lei. Como pano de fundo, a consciência de que a instituição
judiciária funciona sem amarras. Autônoma, independente. Palmas para a
democracia.
As vastas e nem sempre bem cuidadas roças da administração pública,
nas três esferas, doravante deverão iluminar-se por refletores do
Ministério Público, que, por sua vez, acionará os canais da Justiça, da
primeira à última instância. A Lei da Ficha Limpa, que começa a vingar
(marcando pênaltis contra infratores), e a Lei de Responsabilidade
Fiscal, sobre a qual grupos de interesse se debruçam para tentar
aliviá-la, funcionam como aríete contra a corrupção. Diminuir o custo
Brasil da incúria torna-se vital para avanços na frente da gestão
pública. Implica, ainda, a continuidade de programas bem avaliados pelas
populações. Portanto, aos alcaides que tomam posse em 2013 se impõe o
dever de realizar projetos inovadores e prioritários, dando sequência às
boas ideias dos antecessores. O preço Brasil da descontinuidade, por
vontade de substituir marcas antigas por novas, apresenta-se como um
cancro da administração pública.
As consequências do julgamento da Ação Penal 470 já se fazem sentir
na percepção do papel do Judiciário. Só não são perceptíveis aos olhos
de grupos tampados por carapuça ideológica, cuja meta é a conquista do
poder a qualquer custo. Mas é inegável o pulsar coletivo, visível em
exclamações que resgatam o orgulho e a autoestima, a apontar a chama
cívica iluminando o canto esquerdo do peito. Como faz bem à alma sentir o
eco da expressão de José Ingenieros, em seu belo livro O Homem
Medíocre: "Pátria é comunhão de esperanças, de sonhos comuns e a busca
de um ideal; é a solidariedade sentimental de um povo, e não a
confabulação de politiqueiros que medram à sua sombra".
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* GAUDÊNCIO TORQUATO - JORNALISTA; É
PROFESSOR TITULAR DA USP, CONSULTOR POLÍTICO E DE COMUNICAÇÃO. TWITTER:
@GAUDTORQUATO
Fonte: O Estadão on line, 28/10/2012
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