Convidados do festival de cinema, no qual exibem seus novos filmes, os diretores Abbas Kiarostami (à esquerda) e Amos Gitai são amigos há 20 anos: premiados pelo mundo, eles ainda travam batalha para serem aceitos em casa Michel Filho
O iraniano Abbas Kiarostami e o israelense Amos Gitai encontram-se a convite do GLOBO
Eles vivem em países antagônicos, com profundas
diferenças políticas e ideológicas, mas são a prova viva de que a
convivência é possível e não deveria ser decidida dentro de gabinetes
fechados. De volta ao Brasil como convidados da 36ª Mostra de São Paulo,
que segue até o dia 1º de novembro, o israelense Amos Gitai e o
iraniano Abbas Kiarostami aproveitam a coincidência de agendas para,
reunidos pelo GLOBO, renovar os laços de amizade e a admiração mútua que
nutrem um pelo outro há quase 20 anos.
— Amos faz filmes sobre a
vida, com os quais me identifico muito — diz Kiarostami, por trás dos
indefectíveis óculos escuros, sobre o autor de “O Dia do Perdão” (2000),
após um almoço com o amigo, na tarde de anteontem, na capital paulista.
— Não sinto afinidade por muitos diretores conterrâneos, o que reforça a
ideia de que não é a língua, a religião ou a cultura que diferenciam as
pessoas.
— O que gosto nos filmes do Abbas é o ritmo. Em cinema,
por pressão do mercado, tende-se a acelerar o ritmo da narrativa. O que o
cinema de Abbas diz é: “Pare! Observe os detalhes, eles funcionam como
pequenas metáforas” — devolve Gitai para o realizador de “O gosto da
cereja” (1997). — Para ele, o espectador não é um consumidor, mas um
intérprete. Toda grande obra de arte abre espaço à interpretação.
Premiados
em grandes festivais internacionais, respeitados por críticos e
admirados por cinéfilos mundo afora, os dois cineastas ainda travam
batalhas para serem aceitos em casa. Gitai já irritou muito os
israelenses mais conservadores, com revisões de temas caros ao país,
como o extremismo religioso (“Kadosh”, 1999), a guerra contra a Síria e o
Egito (“O Dia do Perdão”, 2000) e os sangrentos bastidores da criação
do estado de Israel (“Kedma”, 2002).
— Como cidadão, obviamente
tenho opiniões muito fortes sobre o país, que amo profundamente. Nem
sempre sou obrigado a concordar com o tipo de política, interna ou
externa, praticada pelo governo israelense — justifica o diretor de 62
anos, arquiteto de formação, que descobriu a inclinação para o cinema
depois que seu helicóptero foi abatido por soldados sírios durante a
Guerra do Yom Kippur, em 1973. — Vi um companheiro morrer em minhas
mãos. Decidi que não iria mais passar o resto da minha vida desenhando
hotéis de luxo.
Kiarostami, por sua vez, insiste em contar
histórias que oferecem uma visão poética da sociedade iraniana, há mais
de três décadas vivendo enclausurada pelo obscurantismo do regime dos
aiatolás. Palma de Ouro em Cannes, “O gosto da cereja”, por exemplo,
causou alvoroço entre os iranianos por sugerir uma aproximação com o
tema suicídio. Suas produções estão banidas das telas do país há 15
anos.
Os filmes do diretor feitos depois da posse do presidente
linha-dura Mahmoud Ahmadinejad foram rodados fora do país, com atores
estrangeiros: “Cópia fiel” (2010), laureado em Cannes com o prêmio de
melhor atriz (Juliette Binoche), na Itália; e “Um alguém apaixonado”
(2012), atração da Mostra, no Japão.
"Para usar um termo de arquitetura, temos que construir
nossas pequenas pontes de diálogo artístico, proteger esses canais
abertos nessa tempestade de estupidez e ódio que vivemos."
- Gitai -
— A restrição a meus filmes
no Irã não é de ordem política, é uma questão de manter a minha
independência artística. Conseguiria permissão para fazer um filme
quando bem entendesse, mas as autoridades sempre acabam interferindo nos
meus projetos, porque acham que não são trágicos o suficiente. Prefiro
fazer o filme que imaginei, e encontro essa liberdade fora do país.
Mesmo que custando o banimento deles no Irã — explica Kiarostami, de 72
anos.
Segundo o iraniano, a mudança de paisagem e de língua não
alterou sua vocação humanista. “Um alguém apaixonado” descreve a curiosa
relação entre um velho professor e uma jovem universitária que trabalha
como garota de programa nos bares elegantes de Tóquio. Como em
trabalhos anteriores, Kiarostami volta a brincar com questões como
identidade e a percepção que temos um dos outros.
— No mundo de
hoje, como é possível falar sobre pessoas e não ser político? — pergunta
o veterano realizador. — Não há um bom filme que não seja político.
Gitai
concorda com o colega de profissão. Diz que não é preciso ser
abertamente político para falar dos rumos da sociedade moderna. Cita
como exemplo os novos filmes que trouxe para a Mostra, “Carmel” e
“Canção para o meu pai”. O primeiro é um documentário inspirado nas
cartas deixadas pela mãe do diretor, filha de judeus socialistas russos,
que foram para Israel com a utopia de construir uma sociedade
igualitária. O segundo é um tributo a Munio Weinraub, pai do cineasta,
que estudou na escola de arquitetura de Bauhaus e foi expulso da
Alemanha pelo governo nazista de Hitler.
— Em comparação com a
situação que vivemos hoje, quando falo sobre os sonhos de meus avós de
construir um mundo melhor, ou de meu pai, que desejava fazer projetos
arrojados de moradia para os operários, estou sendo crítico também —
argumenta Gitai. — Não se pode exigir que todos os cineastas façam
filmes combativos o tempo inteiro, porque vivemos em circunstâncias
diferentes. Para usar um termo de arquitetura, temos que construir
nossas pequenas pontes de diálogo artístico, proteger esses canais
abertos nessa tempestade de estupidez e ódio que vivemos.
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