Para se tornar um poeta, em primeiro lugar quiçá seja preciso descobrir a infância a se reinventar pela memória de um tempo
que se alinha como um bordado de lã e versos, por sobre pergaminhos da
imaginação mais lúdica e fértil, a brincar de faz de conta de se estar
face a face com Deus qual Mario Quintana. Para se tornar um poeta, quiçá
seja necessário hastear o sol por entre as frestas de um pensamento
límpido de primavera a se indagar se a humanidade ainda floresce em meio
a tanto desprezo pela palavra escrita, que define a vida sem pretensão
de depurá-la em sentença ou conceito, conforme o fizera Manuel Bandeira.
Para se tornar um poeta, creio que quiçá seja aconselhável capturar com
rede
de caçar ideias ou borboletas a fragrância mais ínfima da existência de
um lírio ou de uma quimera a se aninhar em vozes de ternura ou
desespero, que aflora em crucial momento de se decidir por uma mulher ou
por um país, consoante os timbres de Vinicius de Moraes.
Para se tornar um poeta, julgo
que quiçá seja factível investigar o percurso das formigas operárias e
decifrar as partituras das cigarras prazenteiras, a exemplo de Gregório
de Matos e Guerra, a fim de que se descubra a orquestração da
sobrevivência humana, que se perfaz ou se liberta, por lidas e arranjos
de flauta, a partir de um instante de eternidade a se perpetuar no canto
orfeônico de um sabiá pousado à mão direita de Gonçalves Dias. Para se
tornar um poeta, quiçá seja importante adivinhar a cor dos olhos de uma
estrela-guia ou de uma criança
desassistida, como se prestara Adélia Prado ou Gabriela Mistral, a se
pautar por suposições de conquista de um reino equidistante ou por um
sentimento de abandono de uma flor que, por empréstimo, se apropria do
aroma de um tácito gesto de generosidade. Para se tornar um poeta, quiçá
seja imprescindível contornar as faces e os corpos de sua musa com os
tons do arco-íris, de modo que a inspiração se emoldure por traços que
se traduzem pela labuta de um bicho-da-seda a tecer a tela de pintura
apta a dar à luz a um desenho de Minas ou Copacabana, esboçado por
Carlos Drummond de Andrade.
Para se tornar um
poeta, quiçá seja inevitável brincar com o mel das abelhas e o
lusco-fusco dos pirilampos a sublinhar a sobrevivência de uma imagem,
que se materializa em rabiscos e sons para se ludibriar a dor de uma
saudade ou enobrecer um signo de mistério, consoante acentuara Jorge
Luís Borges. Para se tornar um poeta, quiçá seja oportuno sobrevoar a
sensatez de uma ansiedade, que conduz ao infinito de esperança a se
arvorar em criatura apta a desenredar-se de si mesma por sombras de
lucidez rabiscadas por Augusto dos Anjos. Para se tornar um poeta,
quiçá seja prudente desvencilhar-se do incômodo de não se habituar ao
óbvio de cada ser que respira por poros de desilusão ou encantamento, em
encruzilhadas que se equilibram às margens de uma reivindicação social
de Castro Alves ou vinte poemas de amor assinados com sangue de uma revolução latino-americana, rascunhada por Pablo Neruda.
Para
se tornar um poeta, quiçá seja urgente se aproximar de uma ribanceira
ou trapézio para se atirar de mãos dadas com a andorinha mais solícita a
remendar os sonhos de uma noite de verão, ao ritmo de uma ação
costurada pelo assombro da existência mais parva a se beneficiar de um
sopro de fôlego humano grifado por William Shakespeare. Para se tornar
um poeta, quiçá seja evidente se transformar por disfarces de um
alvorecer a se insinuar pelas palmas das mãos ciganas de Garcia Lorca,
ávidas por apalpar o segredo de celebração a germinar o movimento de um
girassol por sobre a órbita da terra a se cultivar pelas mãos de
tradutor de estrelas. Para se tornar um poeta, quiçá seja pungente
iludir o público com a veemência de um personagem de circo, teatro ou
cinema, de cujas lágrimas e risos se extraem a essência da dissimulação
mais abissal e indispensável ao estado de certificação de uma plateia
que, decerto, há se rasgar em aplauso ou apedrejamento.
Enfim,
para se tornar um poeta, quiçá seja mister se inspirar no ato de
rebeldia a se deflagrar por sobre a saga de uma dor a se fingir de
sofrimento que, deveras, se instaura na alma de artista, construída
através de dez por cento da mentira lírica de Ariano Suassuna ou Manoel
de Barros, mediante definição de Fernando Pessoa.
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* Wander
Lourenço de Oliveira, doutor em letras pela UFF, é escritor e professor
universitário. Seus livros mais recentes são ‘O enigma Diadorim’
(Nitpress) e ‘Antologia teatral’ (Ed. Macabéa). - wanderlourenco.
Fonte: http://www.jb.com.br/sociedade-aberta/noticias/2012/10/24/manual-pratico-de-poesia/
Imagem da Internet
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