quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Manual prático de poesia

Wander Lourenço*

Para se tornar um poeta, em primeiro lugar quiçá seja preciso descobrir a infância a se reinventar pela memória de um tempo  que se alinha como um bordado de lã e versos, por sobre pergaminhos da imaginação mais lúdica e fértil, a brincar de faz de conta de se estar face a face com Deus qual Mario Quintana. Para se tornar um poeta, quiçá seja necessário hastear o sol por entre as frestas de um pensamento límpido de primavera a se indagar se a humanidade ainda floresce em meio a tanto desprezo pela palavra escrita, que define a vida sem pretensão de depurá-la em sentença ou conceito, conforme o fizera Manuel Bandeira. Para se tornar um poeta, creio que quiçá seja aconselhável capturar com rede de caçar ideias ou borboletas a fragrância mais ínfima da existência de um lírio ou de uma quimera a se aninhar em vozes de ternura ou desespero, que aflora em crucial momento de se decidir por uma mulher ou por um país, consoante os timbres de Vinicius de Moraes. 

Para se tornar um poeta, julgo que quiçá seja factível investigar o percurso das formigas operárias e decifrar as partituras das cigarras prazenteiras, a exemplo de Gregório de Matos e Guerra, a fim de que se descubra a orquestração da sobrevivência humana, que se perfaz ou se liberta, por lidas e arranjos de flauta, a partir de um instante de eternidade a se perpetuar no canto orfeônico de um sabiá pousado à mão direita de Gonçalves Dias. Para se tornar um poeta, quiçá seja importante adivinhar a cor dos olhos de uma estrela-guia ou de uma criança desassistida, como se prestara Adélia Prado ou Gabriela Mistral, a se pautar por suposições de conquista de um reino equidistante ou por um sentimento de abandono de uma flor que, por empréstimo, se apropria do aroma de um tácito gesto de generosidade. Para se tornar um poeta, quiçá seja imprescindível contornar as faces e os corpos de sua musa com os tons do arco-íris, de modo que a inspiração se emoldure por traços que se traduzem pela labuta de um bicho-da-seda a tecer a tela de pintura apta a dar à luz a um desenho de Minas ou Copacabana, esboçado por Carlos Drummond de Andrade.  

Para se tornar um poeta, quiçá seja inevitável brincar com o mel das abelhas e o lusco-fusco dos pirilampos a sublinhar a sobrevivência de uma imagem, que se materializa em rabiscos e sons para se ludibriar a dor de uma saudade ou enobrecer um signo de mistério, consoante acentuara Jorge Luís Borges.  Para se tornar um poeta, quiçá seja oportuno sobrevoar a sensatez de uma ansiedade, que conduz ao infinito de esperança a se arvorar em criatura apta a desenredar-se de si mesma por sombras de lucidez rabiscadas por Augusto dos Anjos.  Para se tornar um poeta, quiçá seja prudente desvencilhar-se do incômodo de não se habituar ao óbvio de cada ser que respira por poros de desilusão ou encantamento, em encruzilhadas que se equilibram às margens de uma reivindicação social de Castro Alves ou vinte poemas de amor assinados com sangue de uma revolução latino-americana, rascunhada por Pablo Neruda.  

Para se tornar um poeta, quiçá seja urgente se aproximar de uma ribanceira ou trapézio para se atirar de mãos dadas com a andorinha mais solícita a remendar os sonhos de uma noite de verão, ao ritmo de uma ação costurada pelo assombro da existência mais parva a se beneficiar de um sopro de fôlego humano grifado por William Shakespeare. Para se tornar um poeta, quiçá seja evidente se transformar por disfarces de um alvorecer a se insinuar pelas palmas das mãos ciganas de Garcia Lorca, ávidas por apalpar o segredo de celebração a germinar o movimento de um girassol por sobre a órbita da terra a se cultivar pelas mãos de tradutor de estrelas. Para se tornar um poeta, quiçá seja pungente iludir o público com a veemência de um personagem de circo, teatro ou cinema, de cujas lágrimas e risos se extraem a essência da dissimulação mais abissal e indispensável ao estado de certificação de uma plateia que, decerto, há se rasgar em aplauso ou apedrejamento.  

Enfim, para se tornar um poeta, quiçá seja mister se inspirar no ato de rebeldia a se deflagrar por sobre a saga de uma dor a se fingir de sofrimento que, deveras, se instaura na alma de artista, construída através de dez por cento da mentira lírica de Ariano Suassuna ou Manoel de Barros, mediante definição de Fernando Pessoa.
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* Wander Lourenço de Oliveira, doutor em letras pela UFF, é escritor e professor universitário. Seus livros mais recentes são ‘O enigma Diadorim’ (Nitpress) e ‘Antologia teatral’ (Ed. Macabéa). - wanderlourenco.
Fonte:  http://www.jb.com.br/sociedade-aberta/noticias/2012/10/24/manual-pratico-de-poesia/
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