José de Souza Martins*
As obras de arte nos cemitérios de São Paulo não
celebram apenas a dor. Várias das mais belas celebram o amor. Escritos
derradeiros também. Apaixonados que a morte separou mandaram gravar na
pedra a poesia de seus sentimentos imorredouros por quem se foi.
Raramente são textos de qualidade literária. Mas pode-se vislumbrar nas
mal traçadas linhas a beleza que continua a unir quem ficou e quem
partiu. Há entre nós uma literatura cemiterial que comporta compreensão.
Versos que não foram para os livros, mas para o túmulo. Último arroubo
de corações apaixonados e inconformados com a partida dos que se foram
antes do tempo.
Mas é nas esculturas que os sentimentos são mais intensos e mais
belos. Certamente porque os poemas foram escritos por amadores e as
esculturas tenham sido feitas por artistas consagrados ou a caminho da
consagração. Já a partir dos anos 1920, surgiram no Consolação, no Araçá
e no São Paulo os primeiros monumentos que celebram sem qualquer
timidez a paixão no pleno sentido da palavra que é a paixão carnal.
Sinal de que os paulistas não se intimidavam diante da carolice
repressiva tão característica de nossa sociedade. Ciclo inaugurado com Solitudo,
um nu que Francisco Leopoldo e Silva, irmão mais moço do arcebispo dom
Duarte, em cuja casa morava e esculpia, talhou em granito, em 1922, para
o túmulo de Teodureto de Carvalho e a mulher, no Consolação. Teodureto
era advogado, frequentava os meios literários e artísticos. Em 1909,
fizera parte do grupo que levou Anatole France ao Alto da Serra para um
almoço de despedida.
Também no Consolação, uma escultura de Nicola Rollo, no túmulo da
família Trevisiolli, relembra a tragédia de Orfeu e Eurídice, unidos
pelo amor e separados pela morte e só na morte se reencontrariam. Amor
eterno e mítico.
E no mesmo cemitério uma escultura lindíssima e sensual, anônima,
proclama a paixão de um jovem marido, imigrante italiano, por Luisa
Crema Marzoratti, falecida em 1922. Na delicadeza do mármore branco, o
escultor recobriu pudicamente com um véu de pedra a nudez de uma jovem
cujo corpo exuberante insurge-se contra o perecimento descabido e
injusto.
Tributo. Mas a grande e emocionante celebração do amor nos cemitérios da cidade de São Paulo é a escultura Último Beijo,
de Alfredo Oliani, no túmulo de Antonio e Maria Cantarella, no
Cemitério São Paulo. Maria, que faleceria em 1982, dez anos mais moça do
que o marido, falecido em 1942, pedira ao escultor uma obra que
expressasse com clareza seus sentimentos em relação ao marido morto, o
que também manifestou no escrito que acompanha a escultura: "Ó Nino, meu
esposo, meu guia e motivo eterno de minha saudade e de meu pranto.
Tributo de Maria." Na escultura, um homem em pleno vigor e cheio de vida
beija, no estertor da paixão, a mulher morta.
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* Sociólogo. Escritor.
Fonte: http://www.estadao.com.br/22/10/2012
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