Leonardo Boff*
Todo processo de purificação implica uma de-cisão que instaura uma cisão entre o verdadeiro e falso, entre o substancial e o acidental.
Deve-se respeitar o veredito da Suprema Corta de Justiça da
nação, pois representa um dos poderes supremos de um estado democrático
de direito. Entretanto, tal fato, não isenta o cidadão de expressar
interrogações e fazer suas críticas. Isso também pertence ao estado
democrático de direito. O que vou externar neste artigo seguramente
colherá a contradição de não poucos. Respeito a opinião divergente. Mas
nem por isso deixarei, por razões de cidadania e de ética, de fazer
algumas ponderações suscitadas não apenas por mim mas por notáveis
analistas e juristas deste país, em vários meios de comunicação,
especialmente, no Boletim Carta Maior entre outros. Mas vamos ao
escrito.
Coloquemo-nos, por um momento, na pele dos Ministros e Ministras do
Supremo Tribunal Federal. Tiveram que se confrontar com um processo de
60 mil páginas: a Ação Penal 470, chamado também de “mensalão”.
Enfrentaram uma tarefa hercúlea. Após leitura e meditação do volumoso
acervo, impõe-se à Suprema Corte a primeira e desafiadora tarefa: formar
convicção sobre a condenação ou não dos incriminados e o tipo de pena a
ser cominada. Mas quando se trata de tirar o dom mais precioso de um
cidadão depois da vida – a liberdade – especialmente de políticos que
ocupavam altos cargos de governo e que em suas biografias ostentam
marcas de prisões, torturas e exílios por conta da reconquista da
democracia, sequestrada pela ditadura militar, devem prevalecer
rigorosamente a isenção e a independência; devem falar mais alto as
provas nos autos que os meros indícios, ilações, a pressão da mídia e o
jogo político. Para conferir ordem à argumentação fez-se mister criar
uma narrativa coerente que, fundada nos autos, sustentasse uma decisão
convincente e justa.
Aqui tem seu lugar a subjetividade que é o natural e inevitável
momento ideológico, ligado à cosmovisão dos Ministros, à suas
biografias, às relações sociais que nutrem e à sua leitura da política
nacional. Isso é livre de crítica.
O sentido de crise
É neste contexto que me veio à mente uma categoria fundamental da
filosofia moderna, pelo menos desde Kierkegaard, Husserl e Ortega y
Gasset: a crise. Para eles e para nós, a crise não é um mal que
nos sobrevém; ela pertence essencialmente à vida. Onde há vida há crise:
de nascimento, de crescimento, de amadurecimento, de envelhecimento e a
grande crise da morte. A pesquisa mostrou que o conceito de crise, em
sua gênese filológica, é inerente à atividade do judiciário e da
medicina. Por isso a abordamos no contexto do “mensalão”. Seu sentido
vem do sânscrito, nossa língua originária, do grego e do chinês.
Em sânscrito, crise vem de kri ou kir que significa desembaraçar (scatter, scattering), purificar (pouring out) elimpar.De crise vem as palavras acrisolar e crisol. A crise atua como um crisol (cadinho que purifica o ouro das gangas); acrisola
(purifica, limpa) um processo vital ou histórico dos elementos que se
lhe incrustaram a ponto de encobrir o seu cerne verdadeiro. Crise
designa, portanto, o processo de liberação do núcleo central da questão,
desembaraçada de elementos acidentais. Depois de qualquer crise, seja
corporal, psíquica, moral, interior e religiosa o ser humano sai
purificado, libertando forças para uma vida mais vigorosa e com novo
sentido.
Todo processo de purificação implica uma de-cisão que instaura uma cisão
entre o verdadeiro e falso, entre o substancial e o acidental. Dai seu
caráter doloroso, não raro, dramático. De crise vem ainda a palavra critério que é a medida pela qual se pode discernir o autêntico do inautêntico e o correto do corrupto.
Em grego crise (krisis, krínein) significa também a
de-cisão num processo judicial. O juiz estuda as acusações, verifica as
provas nos autos, processualmente pesa e sopesa os prós e os contras e
deixa cair a de-cisão. Introduz uma cisão entre a dúvida e a certeza,
entre a prova e apenas os indícios. O mesmo ocorre com uma consulta
médica. O médico examina os sintomas, conjuga os vários elementos e
decide: o diagnóstico é esse.
A todo este processo de amadurecimento de uma decisão ou diagnóstico
os gregos chamavam de crise. Quando se tomou a de-cisão, acaba a crise.
Reina a certeza e a tranquilidade da consciência. Quando um doente
supera o “ponto crítico” é sinal que começou a cura e o médico, em
breve, decide dar-lhe alta do hospital.
Efetivamente, na crise não se trata de opinar sobre algo mas de decidir sobre algo depois de um processo de criação de convencimento a partir de provas seguras.
Em chinês, a palavra crise resulta de dois kanjis: um
para perigo e outro para oportunidade. Viver é perigoso (G. Rosa) mas
prenhe de oportunidades. É sempre perigoso lançar um juízo seja pelo
juiz seja pelo médico. Mas todo juízo cria a oportunidade de tirar a
limpo as incriminações, responder às dúvidas e mediante uma decisão
conforme à lei, consolidar a convicção.
Politização do STF?
O que expusemos designa o conceito ideal de crise (Max Weber) que
possui uma função heurística (orientadora). Na prática, o tratamento da
crise é aproximativo e não isento de ambiguidades. No caso da Ação Penal
470 cabe perguntar: fazer coincidir o julgamento com as eleições
municipais não é entrar no jogo político, oferecendo uma poderosa arma a
um lado dos contendores? Não há o sério risco de com isso se
comprometer os princípios da isenção e da imparcialidade? Utilizar-se
da polêmica teoria “do domínio do fato total” para enquadrar a maioria
dentro de um raciocínio lógico-dedutivo, não empalidece o princípio
básico da “presunção da inculpabilidade”? No furor condemnandi visível na linguagem adjetivada de alguns Ministros, não ocorreu um excesso de imputação?
A verdade é que réus foram e devem ser condenados por crimes e
delitos que cometeram, irrefutavelmente comprovados, seja do PT seja da
base aliada, pouco importa a importância do cargo e da respectabilidade
da biografia. A lei vale indistintamente para todos.
Mas os delitos foram de várias naturezas e em circunstâncias
diferenciadas. Pode-se colocar a todos num mesmo saco, o famoso “domínio
do fato” apenas com diferenciações? Cabe a razão jurídica debruçar-se
sobre esta questão crucial.
Seguramente o julgamento foi legal (segundo as leis) e moral
(realizado por Ministros conscientes e doutos). Mas ele foi
suficientemente ético no sentido da irrestrita observância dos
princípios da isenção, da independência e da presunção da inocência,
livre da forte tendência a condenar? Caso se confirmar a suspeita de que
a condenação de José Genoino e José Dirceu se fez apenas por indícios e
por ilações sem provas suficientes nos autos e por causa disso forem
enviados à prisão, estes podem se considerar “prisioneiros políticos”,
impossível num regime democrático de direito. Dificilmente pode-se
escapar da crítica de um tribunal de exceção e de possível corrupção
ética no procedimento judicial. Há dúvidas a serem dirimidas. À
história caberá a última palavra.
Chamamento à conversão e à esperança
Por fim, importa reconhecer que o PT que porfiou por ética na política (políticos responsáveis e honestos) e por ética da
política (instituições e procedimentos segundo valores e princípios),
com o “mensalão” de alguns de seus membros, abriu uma ferida no partido
como um todo, que por muito tempo irá sangrar. Muitos, mesmo não
inscritos no partido como eu, havíamos depositado confiança na séria
dimensão ética das práticas políticas do PT. Nós intelectuais, podemos
ficar frustrados face aos delitos eventualmente cometidos, mas o povo
confiante não merece sentir-se traído e ludibriado como tantas vezes na
história.
Quem caiu sempre pode se levantar a recomeçar. É o que cobramos do PT
sem o que perde credibilidade e dificilmente pode mais se apresentar
como alternativa a um tipo de política que incorpora em seus hábitos a
corrupção e o uso indevido do poder público para garantir vitórias.
Criou-se um vazio que clama ser preenchido ou pelo PT reconvertido ou
por outros atores e partidos que levantem a bandeira da ética e orientam
suas práticas políticas por princípios e valores. Nisso nossa esperança
não desfalece.
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*Leonardo Boff é professor emérito de Ética da UERJ e membro da Comissão Internacional da Carta da Terra
Fonte: Jornal do Brasil on line de 28/10/2012
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