Danielle Naves de Oliveira*
FEIRA DO LIVRO DE FRANKFURT
Fim de feira é assim. Uma mistura de esgotamento, ressaca e vontade de
levar os últimos restos para casa. Afinal, todo prazer quer eternidade,
quer se repetir, não se aceita perecível. A maior feira de livros do mundo,
em Frankfurt, aconteceu de 10 a 14 de outubro e tanto alimentou como
reproduziu esse espírito do querer mais. Objeto de desejo, o livro
atraiu nesses cinco dias milhares de visitantes, expositores e
jornalistas de todo o planeta. Todos foram de algum modo tomados pelo
fetiche, magnetizados, hipnotizados pela gigantesca oferta de cores,
imagens e letras. Foram também dias de confusão entre instâncias que mal
foram questionadas: Quem lê tanto livro? Quem ainda está à margem? O
que de fato significa um mercado de livros, no sentido amplo do termo?
Deixo a seguir alguns fragmentos de uma observação fragmentada.
O mundo da leitura não se resume ao mundo dos livros. Engana-se quem
acha que acumular livros, guardá-los, mesquinhá-los, exibi-los em
prateleiras abarrotadas é sinal de saber. Colecionar é, entre outras
coisas, sintoma de fetiche, compulsão à repetição, melancolia ou
impotência diante de um mundo abarrotado por objetos. Nesse quesito,
quem tiver resistência em buscar o diagnóstico em Sigmund Freud pode
recorrer a Walter Benjamin. Quem nunca foi vítima de chavões
inquestionáveis do tipo: “Livro não se empresta”? Pois bem, eu empresto
todos os meus livros. E também tomo emprestados. Às vezes, esqueço de
devolver. Às vezes, sujo-os de gordura ou café. Azar.
Um signo entre outros
Difícil é saber qual o lugar do jornalista nessa feira. A oferta, tanto
de livros quanto de noticias, é tão grande que ele adquire um aspecto
atarantado, andando pelos corredores meio sem rumo, catando pautas a
esmo. Se sua tarefa é hierarquizar, selecionar o que há de ser digno a
ser publicado, no meio do furdunço – convenhamos – ele não dá conta de
tudo. Mesmo os objetos pré-fabricados causam confusão: o presskit da Feira de Frankfurt
é pura difusão, uma pasta dezenas de arquivos em PDF, imagens,
discursos, propaganda; a sala de imprensa, uma babel até culturalmente
saudável, mas pouco respirável; as salas reservadas para entrevistas,
sempre ocupadas. Segundo a assessoria da Feira, neste ano houve
aproximadamente 9 mil jornalistas credenciados, de todo o mundo. Que
tipo de notícia eles escreveram? Na maioria, infelizmente, meros relatos
de publicações, lançamentos, números do mercado editorial, polêmicas
envolvendo o Nobel de literatura e pouco, pouquíssimo, sobre o alcance
cultural e civilizatório do evento.
Feiras mundiais são, obviamente, eventos megalomaníacos. São formas de
recapitular impulsos colonizadores, dominadores. Cada estande, de cada
país, está ali para expandir-se, seja através da língua, do mercado ou,
ainda, do mercado da sua língua. O livro, como o conhecemos, tem uma
história muito recente, de quinhentos ou seiscentos anos. Por isso,
ainda é muito cedo para anunciar seu declínio. Ao contrário: a atração
por esse objeto só parece aumentar, pois maleável, variável, adaptável e
evolutiva. O livro aceita ser transgredido no interior de seu próprio
princípio. Ao longo desses poucos séculos, ele já não é mais adquirido
por seu conteúdo, mas devido a tantas outras razões: capa, encadernação,
posição no ranking dos mais vendidos, publicidade. O livro, enfim, é um
signo entre outros, uma forma de mostrar um status que muitas vezes
limita-se ao de neoalfabetizado. Por que os jornalistas (pelo menos nas
coberturas que pude acompanhar) desprezaram esse ângulo?
O mundo do excesso
Mais uma vez, é uma pena que a imagem do livro tenha crescido em
detrimento da leitura. Essa imagem-feitiço funciona como tantas outras:
quer e promete velocidade, realização imediata, aprendizado instantâneo,
conhecimento sem esforço, facilidade e, por fim, esgotamento por
excesso. A leitura, essa outra relegada à sombra de laranjeiras sem
flor, requer tempo perdido, lutas capituladas, noites em claro, paixão
não correspondida, lágrimas, gargalhadas, experiência sensorial, está
impregnada no cheio do papel, no formato de letras fora de moda, em
páginas marcadas e anotações indecifráveis. A leitura realiza o
mistério. Claro que ela não sobrevive sem os livros, mas também está
para além deles.
Aqui está uma missão digna para os funcionários da expansão
civilizatória. Educadores, jornalistas, escritores, editores, pais e
mães: ensinar a leitura e não o livro. Em jargão jornalístico, isso
equivaleria a dizer: não seja filho da pauta.
No fim das contas, o mundo do excesso é incaptável. Ele não está aí
para ser entendido, mas tão somente para ser excedido. Seu espírito é o
mesmo que o do carnaval, de todos os bacanais e paganismos. Há nele uma
função ritual importante. Que assim seja, vamos esperar o próximo ano
para ver o Brasil desfilar nessa avenida superlativa de livros, estantes
e exageros.
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*Danielle Naves de Oliveira é jornalista, tradutora e doutora em Ciências da Comunicação.
Fonte: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed716_furdunco_vertigem_e_fetiche
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