Paulo Ghiraldelli Jr.
Uma
boa parte das mulheres adora uma maquiagem. “Produzir-se”, isto é, sair
embelezada por adornos de todo tipo é algo que só cresce atualmente
entre as mulheres e, agora, também entre os homens. Realmente é
maravilhoso ver pessoas se apresentando de modo elegante, sexy,
provocante, perfumado, colorido e chique. No entanto, ainda assim, não
raro usamos de velhos jargões e vocabulários carcomidos que,
paradoxalmente, nos ajudam a falar de nossa aparência com desdém,
negativamente. Utilizamos da dualidade “interior” e “exterior” e dizemos
que a “nossa realidade” ou a “nossa verdade” está naquilo que só
apresentamos na intimidade, enquanto que o nosso comportamento e nossa
aparência é, em grande parte, ilusão que nós mesmos produzimos. Isso
quando não damos ao “exterior” uma conotação ainda mais negativa,
dizendo que se trata do que é falso. Eis o ditado popular para resumir
esse nosso modo de julgar as coisas: “bela viola por fora, pão bolorento
por dentro”.
É um tanto esquisito que em uma época em
que tudo nos leve a cuidar do corpo e de adereços, o nosso vocabulário
moral e avaliativo ainda se mantenha prenhe de palavras propícias para o
descaso ao corporal.
Essa maneira de valorar a nós mesmos vem
de longe. Dividimo-nos em “interior” e “exterior”, damos ao primeiro
termo a companhia de palavras que se referem ao psíquico ou espiritual e
ao segundo termo a proximidade de palavras que se referem ao físico e
material. Na sequência, consideramos tudo que é bom e verdadeiro como
residindo do lado do primeiro e tudo que é mal e falso como do reino do
segundo. Notando isso, podemos entender a razão pela qual há sucesso nos
programas de TV que falam de sexo ou mostram o sexo, principalmente os
de estilo BBB, os reality shows. O sexo é algo da intimidade e,
então, suponhamos que é a verdade máxima de cada um de nós. Caso
pudermos olhar outros na intimidade, presumimos, saberemos não só “quem
eles são de verdade”, mas também saberemos “o que nós somos de verdade”.
As coisas não são atrativas porque estão escondidas, assim, de modo
banal. Não! Há uma razão para a nossa curiosidade: estamos querendo a
verdade do homem, de nós mesmos, e achamos que não vamos encontrar senão
no que é do campo interno, o que só aparece na intimidade. Não à toa o
que é da ordem da fofoca, contado em pedidos de segredo, é o que nos
interessa. Pois ali estaria a verdade e, enfim, o que vale a pena saber.
É fácil entender isso. Mas é menos fácil saber por que somos assim. Ou melhor, como viemos a pensar assim.
"Está na hora de aposentar a ideia de que
a aparência é o
reino da falsidade.
Para fazermos valer tal aposentadoria,
temos antes
de tudo de criar
um vocabulário diferente."
É claro que foi por obra da adoção do
cristianismo, que é uma religião tipicamente subjetiva, que viemos a
pensar assim, dessa maneira. A religião greco-romana era objetiva. Os
deuses e, portanto, a verdade e o bem, se apresentavam aos homens de
modo objetivo, por exemplo, nos Jogos Olímpicos ou nas manifestações de
elementos da natureza. Mas os cristãos vieram a se relacionar com suas
divindades por meio de uma relação nada objetiva, completamente
subjetiva: a oração, principalmente a oração com a alma pura, ou seja,
com alma confessa dos pecados e arrependida pela dor da culpa. Esse
estado interior de graça é que permitiria ao homem se por
diante de sua divindade para entabular uma conversa. Essa relação sempre
foi pensada como uma relação particular, íntima mesmo, até secreta. O
Deus judaico-cristão se apresentou como pai, diferente dos deuses
greco-romanos, que se mostravam imortais e nada tinham de parentesco com
os mortais. Ora, o cristão veio a conversar com a sua divindade, e de
modo especial, como quem faz uma conversa na intimidade do lar, com um
pai bondoso, acolhedor e compreensivo.
Mas não foi só o cristianismo que
contribuiu para a interiorização da divindade e, portanto, para a
localização no “interior” do que é a verdade e o bem. Também as
filosofias helenistas não clássicas andaram por trilhas de cultivo da
subjetividade de um modo que os filósofos clássicos não arriscariam. A
filosofia estóica, com Epiteto, contribuiu muito para isso.
Os estóicos tinham investigações sobre o
mundo exterior, mas a filosofia propriamente dita não era para tal e,
sim, para que se pudesse viver em tranquilidade. A filosofia,em sua
essência, era não o que é da ordem do conhecimento, que tem a ver com o
saber sobre coisas exteriores, e sim com aquilo que é da ordem interior,
em especial a vontade. A filosofia deveria nos fazer levar uma vida sem
dor e, então, a vontade, em nosso interior, é que seria o elemento que
teríamos de aprender a dirigir. Epitecto falava, até mesmo, de como que a
divindade habitaria o interior do homem, e que era ali, na capacidade
de dirigir a vontade pela vontade que teríamos de desempenhar a tarefa
propriamente filosófica. O que está dentro do homem seria a própria
divindade e a alma do homem, nesse caso, poderia ser tomada como um
fragmento da divindade. Preocupar-se com o exterior, com o que não se
controla, seria uma grande bobagem. No entanto, gastar energia para que a
vontade pudesse dominar a vontade, aí sim residiria o que haveria de
divino em nós – este era o escopo da filosofia.
Esse tipo de filosofia conviveu com o
cristianismo levado adiante por Paulo, e contribuiu para o clima de
valorização do subjetivo e da intimidade que caracterizariam a era
cristã, na qual ainda estamos imersos. Nós somos os que podemos
desconfiar de tudo, mas que ainda achamos que o que está fora de nós não
contém aquilo que é o melhor. Deus é amor, dizem os cristãos, e
encontramos o amor dentro de nós. O amor nosso está longe de ser uma
divindade exterior, como Eros ou o Cupido, ele é algo divino, sim, mas
que se manifesta como um sentimento dentro de nós.
Nossa época de valorização da beleza, do
que é maquiagem, operação plástica e toda a modificação com a
aparência, terá de mudar de vocabulário. Teremos de harmonizar esse
nosso modo de viver com uma consciência ainda arcaica que teima em
funcionar segundo uma linguagem que bota fé na dicotomia corpo-alma,
positivizando somente o segundo lado. Isso nos induz a fazer coisas
completamente equivocadas. Deixamos de poder ficar perspicazes para
achar o que é verdadeiro e bom se, de antemão, só podemos localizá-los
no que chamamos de “interior”. Ora, se o bom e o verdadeiro estão já no
“interior”, vamos ter de acha-lo aí, não vamos procurar em outro lugar, e
vamos então não achar coisa alguma porque iremos, sim, forçar que algo
apareça no “interior” de modo a reconhecê-los como o que é o verdadeiro e
o bom. Até a beleza, tipicamente exterior, acaba assim sendo adjetivada
de modo estranho: falamos de pessoas bonitas e, em seguida, temos de
acrescentar que se trata de uma pessoa “bonita por dentro e por fora”.
Ora, e se não é assim, então acreditamos que não poderíamos falar em
beleza, em uma “verdadeira beleza”. Ora bolas, com esse vocabulário não
vamos pensar bem, ao contrário, só vamos nos complicar e nos equivocar.
Seria interessante que não déssemos
tanta ênfase ao vocabulário dual e mais interessante ainda que não
tomássemos a valoração dessas partes como temos feito até então,
utilizando o nosso vocabulário envelhecido. Pois aí sim teríamos
condição de falar de um modo mais harmonioso com o que estamos querendo
viver nos dias de hoje, em que fazemos questão de dar créditos para a
nossa aparência. Está na hora de aposentar a ideia de que a aparência é o
reino da falsidade. Para fazermos valer tal aposentadoria, temos antes
de tudo de criar um vocabulário diferente. Temos de conversar usando
palavras que não teimem em carregar de valor negativo o “aparente”, o
“corporal”, “o corpo”, as práticas físicas, a beleza e toda a indústria
que favorece a exibição corporal, a moda e, enfim, uma série de
elementos que amamos ver e, no entanto, ideologicamente, condenamos.
Deveríamos tomar a “sociedade do espetáculo” como uma expressão
positiva.
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* Filósofo, escritor e professor da UFRRJ
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2012/10/28/aparencia/
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