Quando
gostamos muito de um autor, fazendo constantes referências a ele, e
principalmente quando sua obra é composta de uma variedade enorme de
títulos, é comum as pessoas interessadas perguntaram qual o livro que
seria ideal para começar a leitura, ou quais os nossos favoritos.
Como
Doris Lessing desde 1950 publicou muito, resolvi fazer um roteirinho
básico de leitura, com dez dos meus textos prediletos, destinado a quem
deseje se iniciar no universo da “arqueóloga das relações humanas”. A
numeração abaixo não tem qualquer sentido de hierarquia (e nem quer
dizer que os livros não arrolados não sejam importantes,é apenas um
vislumbre de uma produção multifacetada e riquíssima):
1) A tentação de Jack Orkney- Acho que este pequeno romance, publicado como conto, em 1972, e assim mantido nas Collected stories- volume 2 (1978),
é a melhor porta de entrada do mundo lessinguiano. Jack Orkney é um
político de esquerda ateu que, a certa altura da vida, se deixa
contagiar, quase como que uma infecção, por Deus. Imaginem, presos como
somos a grades de referências e a personalidades encouraçadas ao longo
do tempo, o que isso acarreta. Como li o texto de Lessing mais ou menos
na mesma época da leitura de A negação da morte, de Ernest
Becker, eles ficaram indissociavelmente ligados na minha memória como
grandes reflexões sobre fé, construção neurótica de caráter e prisões
referenciais.
2) Memórias de um sobrevivente-
Outro texto que pode servir de porta de entrada. Publicado em 1974, no
Brasil teve o charme extra de ser traduzido por Clarice Lispector. Ele
se passa num futuro indeterminado, em que os jovens se transformaram em
hordas hostis, toda a estrutura social está precária e esgarçada, e os
mais velhos tentam sobreviver refugiados em seus apartamentos. Num
deles, a narradora percebe que as paredes “se abrem”, levando-a a
realidades alternativas, a territórios diversos. De todas as distopias
das últimas décadas, essa é a mais pungente e conseqüente, a meu ver. E é
um dos textos mais lindos e perfeitos de uma autora que parece ter
vergonha de construir textos lindos e perfeitos.
3) Ao quarto dezenove (To room nineteen, no Brasil apenas "O quarto 19")- Publicado inicialmente numa coletânea de 1963, pertence ao ciclo de The Golden Notebook,
ciclo perigoso porque poderia confinar a escrita lessinguiana a uma
questão de gênero. Contudo, como sempre, ela vai muito além de qualquer
limitação. É curioso que a história foi homenageada por Michael
Cunningham em As Horas (a parte da mãe do poeta), e nela, uma
mulher aluga o mesmo quarto para ali fugir das suas referências. Aos
poucos vai se apegando tanto àquele espaço, vai de tal forma alargando
sua permanência ali, que o leitor já deve desconfiar do desfecho. Uma
obra-prima.
4) O caderno dourado(1962)-
Atingiu o meio-século esse monumento do romance que faria por si só a
glória literária de Doris Lessing não fosse pela equívoca questão do
feminismo. Sejamos claros, é um livro feminista, mas é principalmente
uma grande experiência com a forma do romance. Ao explodir a neurótica
divisão da protagonista (que compartimenta sua vida em cadernos de notas
estanques, de cores diferentes –um para a política, outra para a
literatura, outro para os problemas psicológicos, e assim por diante),
num caderno de notas (o dourado) que representa o caos e a piração do
mundo, ela de certa forma absorveu toda a sua obra anterior, muito
prestigiada pelos temas “africanos”. Estamos no pórtico da “grande”
Doris Lessing, a narradora épica e tolstoiana do nosso tempo.
Escolhi verter o título original (The golden notebook) de forma mais literal porque não suporto o título brasileiro (O carnê dourado), particularmente infeliz.
5) A cidade de quatro portas (The four-gated City)- Em 1969, ela completou um ciclo que se iniciara em 1952, com Martha Quest.
Os quatro volumes anteriores são belos romances de formação, com cenas
inesquecíveis, e quem é apaixonado por Doris Lessing não os dispensa nem
morto. Comparados, no entanto, ao quinto, empalidecem visivelmente:
Martha Quest abandona a África e vai para a Inglaterra pós-guerra, e de
mulher independente torna-se uma espécie de babá dos filhos de um
intelectual. É o fantasma que persegue Lessing, mas ainda é pouco: há o
espectro da guerra nuclear, há a possibilidade da criação de uma
humanidade pós-nuclear, novas concepções da mente, do homem, da família.
Enfim, é Freud, Marx e o Apocalipse, tudo no mesmo livro. Doris Lessing
começa a conter a vida inteira em seus livros.
6) Roteiro para um passeio ao Inferno
(Briefing for descent into the Hell, 1971)- Foi o primeiro livro que li
de Lessing e, até certo ponto, o mais impressionante. No início, ele se
passa no plano da alucinação, evocando mitos civilizatórios e de
barbárie, se passando em ambientes primitivos e arquetípicos; depois,
ficamos sabendo que o protagonista é um professor que “pirou”. Mais uma
vez, a corda bamba se dá entre o caos que pode dar início a um novo
começo, ou a volta a uma ordem conformista e compartimentadora, que só
leva à neurose e ao desespero. Menosprezado por alguns, como se fosse
uma mera ilustração das idéias de Ronald D. Laing (O eu dividido), esse romance é de uma riqueza assombrosa, provavelmente daí vem sua irregularidade genial.
7) Gatos e mais gatos
(On Cats, 2002)- Doris Lessing dedicou muitas páginas e alguns livros
aos gatos. Esse livro reúne tanto ficção quanto passagens biográficas
reveladoras. Como eu mesmo sou devoto da religião felina, ninguém deve
estranhar a inclusão desse título. No entanto, sinceramente acho que o
incluiria de qualquer forma, pela perspicácia e valor literário.
8) Amor, de novo
(Love, again, 1996)- O belíssimo romance sobre o envelhecer que marcou a
volta da ficcionista maior da nossa época após alguns anos de mornidão
(aqueles que escreveu depois do lindíssimo Planeta 8-Operação Salvamento,
de 1982—nenhum deles chega a ser fraco, mas em todos parece faltar
algo, um brilho maio). De fato, parece ter destravado de tal forma sua
escrita que ela voltou a apresentar nova fase de brilho.
9) As avós (The grandmothers, 2002) e A fenda
(The Cleft, 2007)- Dois pequenos romances que também seriam ótimas
introduções não fossem uma espécie de quintessencialização, de depuração
extrema, dos temas que sempre foram dominantes na obra de Lessing: no
primeiro, com perversidade, ela volta aos universos femininos
sufocantes, na história de mães amigas que se tornam amantes dos filhos
uma da outra numa espécie de “planeta em separado”, criando mais do que
as famílias disfuncionais da moda, uma espécie de clã autofágico; no
segundo, já pela ressonância fisiológico-sexual do título, ela opõe
padrões civilizatórios, masculinos e femininos, numa parábola que eu
considero politicamente incorreta (graças a Deus).
10) Shikasta(1979)-
Ficou o melhor por último, ou seja, a grande obra que deu munição aos
críticos que sempre a menosprezaram (ou passaram a menosprezá-la daí
para a frente, entre eles Harold Bloom e George Steiner). É a história
de como um planeta que era cuidado por uma potência extraterrestre
“espiritual” (Canopus) perde essa conexão, e vai mergulhando no
materialismo, na violência e na degradação ambiental, ambicionado pelo
pragmático império rival de Canopus, Sirius, e saqueado pelos piratas de
Shammat. Depois, vieram mais quatro romances da série Canopus em Argos: Arquivos, três deles extremamente belos, mas no quinto, Os agentes sentimentais (1983), ela já parecia mais desinteressada (e mais didática do que ficcional).
O que impressiona especialmente em Shikasta é a alquimia da fabulação com a exposição reflexiva. É a literatura seguindo sua vocação de transcender a si mesma.
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Fonte: MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte
Li o livro Roteiro para um passeio ao inferno em minha adolescência e fiquei impressionada com a história. Gostaria de lê-lo novamente.
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