A professora curitibana Lúcia*, 43 anos, apaixonou-se por um sem-teto e o levou para casa. Ele chegou a trabalhar, mas voltou para a rua. Entre idas e vindas, ela acabou engravidando quando já estavam separados. Sofreu agressões, buscou proteção judicial e terapia... Hoje, superou a crise, o filho tem dois anos e conhece o pai, mas não toda a história
Por Depoimento a Alexandre de Santi e Cristine Kist
“Em
2007, eu cursava a faculdade de Letras e, num fim de tarde, antes de ir
para a aula, resolvi parar numa praça ali perto. Repassava mentalmente o
conteúdo que cairia numa prova sobre Shakespeare quando um homem parou
na minha frente e ficou me encarando. Como se me desafiasse para um
duelo, ele disse: ‘A vida é um jogo: ou você perde ou você ganha.
William Shakespeare’. Nem sei se a frase existe, mas a coincidência me
impressionou tanto que, na hora, comentei com aquele moço que nunca
tinha visto que teria uma prova sobre o autor. Ele perguntou meu nome.
‘Lúcia’, respondi. O dele era Valter. Vestia um blusão, estava com a
barba por fazer, lembrava um pouco o Che Guevara. Era de uma beleza
rústica, diferente. Podia ser um estudante, levei algum tempo para
entender que ele morava na praça e que eu estava invadindo seu espaço.
Ele me disse que tinha 38 anos, exatamente como eu naquela época. Só
depois descobri que ele tinha apenas 28.
Fase difícil
Fase difícil
Valter quis saber por que eu parecia tão triste. Expliquei que passava por fase complicada. Aquele tinha sido o ano mais difícil da minha vida. Perdi meu pai, meu irmão sofreu um grave acidente e meu ex-marido tinha levado nossas duas filhas para morar com ele em Santa Catarina. Depois de um casamento de dez anos, nós tínhamos nos separado cordialmente e, como minha vida andava difícil, meu ex perguntou se as meninas, então com 6 e 11 anos de idade, poderiam ir morar com ele, concordei. Sou mãe de outra garota, fruto de um namoro adolescente, mas ela já é moça e independente. Venho de uma família de classe média alta. E, na infância, tive todo conforto. Mas, depois que meu pai se aposentou, perdemos quase tudo. Restou a casa da minha mãe e a minha, construída no mesmo terreno.
Não contei tudo isso ao Valter, apenas confirmei que estava triste. Ele retrucou que a vida era maior que os meus problemas. Apontou a Lua despontando no céu e disparou outra citação: ‘Vai atrás do teu desejo, encontrarás tua verdade’. Engatamos uma conversa, eu disse que era estudante mas já dava aulas e, no final, ele me falou que eu não tinha amor próprio, que deveria estar estudando ou lecionando, e não perdendo tempo na praça. Levada pelo momento – e meio de brincadeira – respondi que tinha uma fantasia: largar a vida de professora, virar prostituta e trabalhar ali na praça. Valter respondeu que para essa profissão eu já tinha “passado da idade” e que não ganharia “nem mais que R$ 50 nem menos que R$ 15” pelo programa. Perguntei quanto ele tinha, ele respondeu que tinha R$ 10. Sem pensar, fiz um sinal de que aceitava. A verdade é que o achei encantador e era a primeira vez que eu me interessava por alguém desde a separação.
Mas ele não tinha dinheiro nenhum, foi pedir para um sapateiro ali perto, e fiz de conta que não vi. Só quando voltou, percebi que a manga de seu casaco estava rasgada. Fomos direto para um motel. Ele continuou me surpreendendo. Foi sensível e carinhoso comigo. No final, depois de uma transa deliciosa, realizou a minha fantasia
e me pagou. Quando saímos dali, me levou para a beira de um lago próximo e me abraçou. Nesse momento senti medo e me dei conta de que tinha transado com um mendigo. Acho que ele percebeu, pois quando eu disse que ia embora,me segurou. Perguntou se eu não acreditava que o destino tinha me colocado no banco da praça.
Respondi que acreditava e fui embora, mas deixei meu telefone.
Medo e expectativa
No outro dia, mesmo transando de camisinha, acordei apavorada e marquei todos os exames possíveis para saber se tinha contraído alguma doença. Felizmente, os resultados não apontaram nada. Pouco tempo depois, o Valter ligou e pediu que fosse até a praça procurá-lo. Fiquei em dúvida,mas acabei indo. Então, ele me contou que vivia na rua há anos, fazendo bicos, e que tudo o que precisava para arrumar um emprego e mudar de vida era ter motivação. Segundo ele, essa motivação era eu. Dez dias depois desse encontro, Valter me ligou pela segunda vez. Agora para contar que estava empregado em uma cabanha, uma espécie de haras. Disse que eu era a razão de ele ter conseguido aquele trabalho e, por isso, queria me oferecer um churrasco. Deixei o telefone da cabanha com a minha mãe e fui encontrá-lo.
Quando cheguei lá, não consegui acreditar no que vi. Valter era outro homem. Estava lindo de jeans e barba feita, e o lugar era inspirador, verdejante com muitos bichos e fartura.Começamos a namorar nesse mesmo dia. Achei que ele tinha potencial para crescer no trabalho. Criei a expectativa de que faria terapia para se curar dos traumas da rua e que conseguiria se reintegrar na sociedade. Ele me deu uma bombacha de presente e me apresentou a um mundo que eu não conhecia. Por dois meses, passei a visitá-lo todos os finais de semana, achei que poderia passar minha vida ao lado daquele homem. Convidei-o para jantar com a minha mãe. Ele fez questão de ir todo arrumado e se saiu bem, até preparou uma massa para nós. Eu só tinha contado para minha mãe que ele era pobre, vivia de bicos e alugava um quartinho. Às vezes, ele fazia isso mesmo, mas eu não contei que ele alternava a pensão barata com longas temporadas na rua. Algum tempo depois, minha mãe implicou com Valter. Num fim de semana em que ela estava fora e ele veio ficar comigo, me pediu para usar o computador dela e eu deixei. Por acaso, ela ligou justamente nesse momento. Ele atendeu e ela ficou coma pulga atrás da orelha por ele estar lá, na sua escrivaninha, sem a sua autorização.
Conflito em casa
Em dois meses, Valter largou o emprego porque só recebia casa e comida, queria um salário. Quando saiu de lá, perguntou se podia passar uns dias na minha casa. Ficamos mais ou menos um mês vivendo como casados, o que reforçou a desconfiança da minha mãe. Um dia, ela viu um documento dele em cima da mesa e resolveu investigar o nome na polícia. Descobriu que Valter tinha uma enorme ficha de pequenos furtos. Quando ela me contou, meu mundo caiu. Minhas teorias sobre transformação social foram destruídas, percebi que ele não era apenas uma vítima da sociedade, mas também um de seus algozes. Quando o questionei, ele se defendeu, dizendo que, para quem teve pai e mãe, era fácil julgá-lo, mas ninguém oferecia um pedaço de pão quando ele estava na rua. Depois disso, tentei saber mais sobre sua vida, conversei com outras pessoas que circulavam na praça onde o conheci. Tudo o que me disseram, era o que eu já sabia: ele nasceu em outra cidade e sua mãe havia morrido quando era muito novo.
Nessa época,um milagre aconteceu: um amigo do Valter que tinha uma casa para alugar deixou ele passar um tempo lá. E o vizinho o indicou para cuidar de outra cabanha, bem maior que a anterior. Cheguei a cortar o meu cabelo de graça num dos salões mais caros da cidade, porque um dos cabeleireiros tinha um cavalo lá e gostava muito dele. Mas minha mãe era contra, não queria que nós nos encontrássemos. Como minha casa ficava no quintal dela, passei a abrir a janela escondido para ele entrar. No total, namoramos uns dois anos, mas nunca foi simples. Rompemos e, nas férias, viajei para ficar com minhas filhas. Na volta, tivemos uma recaída e acabei engravidando quando já não estávamos mais juntos. A essa altura, já sabia que trocar de emprego, ir e voltar para a rua era o seu padrão. É assim até hoje. Quando o conheci, meu sonho era ser mãe novamente, pois eu tinha perdido o convívio diário com minhas filhas. E desde o início, Valter tinha dito que eu seria a mãe do filho dele. Eu nunca sabia onde ele estava, mas com um mês de gravidez fui chamada para visitá-lo no hospital porque ele tinha sido mordido por uma cobra na cabanha. Assim que me viu, ele suspeitou da gravidez. Quando contei do bebê para minha mãe, ela aceitou que ele viesse para minha casa, mas esse plano durou só alguns dias. Descobri que, desde que tínhamos terminado, ele estava morando com outra mulher.
Tesouro no lixo
Uns dias antes do parto, ele ligou querendo me vender pela milésima vez um celular que eu sempre comprava para tentar ajudar e depois ele pedia de volta. Comprei mais uma vez. Ele me ligou logo depois de o Pedro nascer, queria saber se estávamos bem, mas não falou em nos visitar nem em registrar a criança. A verdade é que Valter não foi o primeiro sem-teto que passou pela minha vida. Quando conheci meu ex-marido, que hoje tem uma condição financeira muito boa, ele também morava na rua, mas por pura rebeldia. Não queria ficar com a família no interior, preferiu morar num pensionato na capital. Quando o dinheiro acabou, foi embora sem pagar e dormiu um tempo pelos parques. E isso não impediu que eu me apaixonasse. Acho que algo em mim acredita que, mesmo no lixo, existem tesouros escondidos. Valter é inteligente mas não sabe se administrar. Não me sinto capaz de julgá-lo. Se eu não tivesse minha mãe e uma boa estrutura familiar, de nada adiantaria meu curso superior, eu não conseguiria me sustentar como salário de professora.
Pedro nasceu em 2010 e Valter, enfim, confessou que não me amava e que estava apaixonado pela nova namorada. Ela mora num apartamento alugado e tem um emprego, mas não tem muita instrução e, por isso, sentia muito ciúme de mim e do meu filho. Muitas vezes ligou me xingando, e inventou que eu tinha ligado no trabalho dela.Nesse dia, ele bebeu além da conta e resolveu tirar satisfação. Já sabia como entrar escondido em minha casa e chegou bem tarde da noite, quando eu estava no banho. Invadiu o banheiro e começou a me bater com a força de um domador de cavalos. Quando eu já estava caída, ele tirou o cadarço do tênis e disse que ia me matar. Na cabeça dele, eu estava estragando a felicidade dele com essa mulher. Chegou a pressionar o cadarço no meu pescoço, mas gritei e pedi para que parasse, pelo Pedro. Ele se assustou e me soltou. Logo depois, caiu num sono profundo, bêbado. Enquanto estava desacordado, confesso que pensei em fazer com ele o que ele queria fazer comigo. Mas não seria capaz. Senti medo de chamar a polícia e ele, mais tarde, querer se vingar. Quando acordou, me pediu muitas desculpas, chorou, disse que se sentia um fracassado e estava muito envergonhado.
Caso de polícia
Assustada, chamei uns amigos que me convenceram a ir a delegacia, dar parte do ocorrido e realizar o exame de corpo de delito. Assim, se acontecesse de novo, Valter seria preso. Consegui uma ordem judicial, que o impedia de se aproximar de mim
e da minha família, e resolvi me mudar por uns tempos, para despistá-lo. Mas, mesmo depois de eu ter me mudado, o Valter invadiu minha antiga casa para dormir lá. Minha mãe chamou ajuda e conseguiu expulsá-lo. Dias depois, ele voltou, deixou rosas e um chocolate na escada da casa com um bilhete dizendo: “Lúcia, um dia eu ainda vou aprender a te respeitar”.
Minha mãe fala dele com nojo, e os poucos amigos que sabem da história, querem que seja preso. Mas eu vejo um ser humano igual a mim, com uma vida difícil. Procurei terapia e lá consegui ver o perigo que corri e o tamanho do problema em que me meti. Claro que ele não paga pensão para o meu filho. Aos 43 anos, aluguei minha casa e voltei a morar com minha mãe. Sustento a mim e ao Pedro com o dinheiro do aluguel e o meu salário. Valter parou de incomodar e, de vez em quando, pede que eu leve o nosso filho, agora com dois anos, a algum parque para jogarem futebol. Pedro sabe quem é o pai e fiz um trato com Valter: se ele trabalhar, não contarei que era mendigo. Não sou mais ingênua a ponto de achar, como antes, que o amor resolve tudo. Mas, se coração, desejo vê-lo vivendo com dignidade, longe dos delitos e da fome.”
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Fonte: http://revistamarieclaire.globo.com/Revista/Common/0,,EMI321461-17597,00-TIVE+UM+FILHO+COM+UM+MENDIGO.html
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