O restaurador Raul Carvalho trabalha na mostra com obras do Museu D’Orsay
Marcos Alves
Responsável por vistoriar os 85 quadros, Raul Carvalho diz que seu trabalho está mais para ciência que para arte
Formado em Publicidade — profissão que logo abandonou para se dedicar
à conservação e ao restauro de obras de arte —, o paulistano Raul
Carvalho é o responsável por analisar as condições de cada um dos 85
quadros do Museu d’Orsay que integram a exposição “Impressionismo: Paris
e a Modernidade”, à mostra desde a última semana no Centro Cultural
Banco do Brasil, no Rio. A exposição custou R$ 11 milhões através de
incentivos da Lei Rouanet. Cabe a ele — junto com sua equipe de nove
restauradores — observar toda pequena ranhura nos quadros de Van Gogh,
Monet ou Cézanne, para saber se é nova, velha e se foi causada pela
viagem, pelo calor ou pela umidade dos trópicos. Novidades indesejadas
têm de ser prontamente comunicadas à direção do museu francês.
O
cuidado é providencial: as obras, de tão importantes, chegaram ao Brasil
separadas em seis aviões (trata-se da mesma lógica preventiva que
obriga presidente e vice dos Estados Unidos a nunca viajarem no mesmo
jato). No CCBB de São Paulo — onde primeiro desembarcaram — e agora no
do Rio, ficaram dois dias em quarentena, encaixotadas, para se
“ambientar” à umidade relativa de 55%.
— Fazemos isso para evitar
que haja um choque térmico — conta Raul. — São obras tão importantes que
nem têm valor. Além disso, não estão disponíveis no mercado. Ainda
assim, envolvem muito dinheiro.
Não é a primeira vez que Raul, de
45 anos, se vê às voltas com obras de envergadura. Já lhe coube zelar
por 125 quadros de Pablo Picasso, em 2004, na exposição “Picasso na
Oca”, em São Paulo. Um ano antes, ele se encarregara de cuidar de 450
peças chinesas — algumas com cinco mil anos de história — que vieram ao
Brasil para a mostra “Guerreiros de Xi’An e os tesouros da Cidade
Proibida”, também na Oca.
— Tive que ir a Pequim cinco vezes, para acompanhar as esculturas sendo encaixotadas — lembra.
Neste
ano, além dos impressionistas, ele está encarregado de cuidar de 62
esculturas de Auguste Rodin expostas em Salvador. Em ambos os casos,
responde às produtoras responsáveis pela montagem.
— Mas não estou aqui para defender as produtoras ou os donos das peças — diz. — Defendo a obra de arte.
Quando
não está fiscalizando exposições, Raul se dedica à restauração de
quadros, sobretudo de artistas brasileiros. Pelo seu ateliê, em São
Paulo, já passaram telas de Di Cavalcanti, Cândido Portinari e Anita
Malfatti. Ele diz que o preço do restauro não é necessariamente relativo
ao valor de mercado da obra:
— Vou cobrar a mesma coisa para
cuidar de um Volpi de R$ 100 mil ou de um quadro pintado pela sua avó. O
preço depende do tipo de problema. Tem restauro que dura dois dias; tem
restauro que dura oito meses.
Ele faz, no entanto, um adendo:
—
Pode haver um valor agregado em função da importância da obra.
Dependendo do quadro, posso ter que fazer seguro, análise química da
tinta, contratar vigia noturno.
Interessado em artes plásticas
desde a adolescência, Raul fez cursos de pintura e gravura até concluir
que a criação não era sua praia. Aos 23 anos, matriculou-se no Instituto
Paulista de Restauro, de onde saiu para juntar-se ao quadro da
Pinacoteca do Estado. Diz que seu trabalho está mais próximo ao de um
químico do que ao de um pintor.
— Restauração é alquimia. Sou um
profissional da área técnico-científica; não um artista — aponta. —
Antes de tocar num quadro, preciso saber o tipo da tinta usado, qual é o
suporte da tela e a consistência do verniz, para entender como ele se
degrada. Não trabalho com material artístico; trabalho com material de
restauração.
Atualmente, sua equipe restaura cerca de 50 pinturas
(entre elas, aliás, não estão as queimadas em agosto último, durante o
incêndio no apartamento do marchand romeno Jean Boghici, em Copacabana,
que destruiu obras notáveis; as peças foram divididas entre os
restauradores Cláudio Valério e Edson Motta, do Rio).
Das peças que cuidou até hoje, a que lhe trouxe maior dificuldade foi um quadro do artista carioca Orlando Teruz, já falecido:
— Ele fazia uma mistura de óleo com solvente que deixava a tela muito lisa. Quando resseca, fica difícil restaurar.
A química é toda importada. Ele compra resina e solvente para fabricar o próprio verniz. As tintas também vêm de fora.
—
Não é porque um quadro foi pintado com óleo que vou usar óleo para
restaurá-lo — diz.
— A premissa do restauro é que todo material aplicado
na pintura seja reversível, para que após alguns anos, se surgir uma
técnica nova, seja possível retirar o que foi feito.
Enquanto os
85 quadros impressionistas estiverem no Rio, a equipe de Raul fará uma
visita semanal ao CCBB, nas manhãs de segunda-feira, para checar o
estado deles. Para evitar o desgaste, a maior parte das obras está
protegida com um vidro contra raios ultravioleta, na parte da frente, e
uma placa de policarbonato, na parte de trás. A temperatura das salas é
controlada, para estar sempre de acordo com os 20° C do museu
parisiense.
Quando janeiro chegar, Van Gogh e companhia viajam de
volta à Europa. Após escala em Madri — onde ficarão expostos na Fundação
Mapfre — seguem, em definitivo, a Paris. Para Raul, será um desafio à
parte: as obras deixam o Rio no auge do verão e desembarcam em Madri no
auge do inverno.
— Vamos ter que tomar muito cuidado — prevê. —
Estamos falando de matéria orgânica que oxida, envelhece. É inevitável.
Até a Monalisa, um dia, vai virar pó.
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