Hélio Guimarães*
A divulgação da literatura brasileira no exterior está na ordem do
dia, com programas governamentais ambiciosos e de longo alcance voltados
especificamente para a tradução de obras literárias. O objetivo é
tornar o país mais conhecido no exterior, para além dos estereótipos do
samba, do futebol e, mais recentemente, da violência urbana. Mudam-se os
tempos, mas a vontade é antiga.
Desde que o Brasil se entende como país independente, os escritores
brasileiros, grandes consumidores de literatura estrangeira, viveram em
ambiente bastante internacionalizado. Já no século XIX, grande parte da
literatura publicada no Brasil passou por livreiros e editores
estrangeiros, como o suíço Leuzinger, o belga Lombaerts, os germânicos
Laemmert e os irmãos franceses Garnier. A internacionalização, assim,
nunca foi estranha ao campo dos livros e da literatura. Desde sempre a
questão crucial esteve em inverter o sentido dessa internacionalização.
O caso Machado de Assis ajuda a pensar a complexidade do problema.
Embora nunca tenha saído do Brasil, o autor de "Quincas Borba"
participou do intenso trânsito de textos entre os dois hemisférios, um
trânsito que se deu primordialmente (para não dizer exclusivamente) no
sentido do Norte para o Sul. Leitor e devorador de obras de tantos
tempos e lugares, Machado tentou inverter esse fluxo, empenhando-se
pessoalmente em ter sua obra lida e publicada fora do Brasil. Em vários
momentos tentou fazê-la circular mais amplamente em Portugal, com muito
pouco sucesso; e quis que seus romances fossem traduzidos para o alemão,
no que fracassou redondamente.
Numa carta de junho de 1899, às vésperas de publicar "Dom Casmurro",
Machado escreveu ao editor François Hippolyte Garnier, pedindo-lhe
autorização para ter obras suas vertidas para o alemão. Eis os motivos
alegados por Machado em favor da tradução, na carta escrita em francês e
enviada a Paris: "Para mim, senhor, eu não lhe exigiria nenhum
benefício, considerando-se ser uma vantagem me fazer conhecer numa
língua estrangeira, que tem seu mercado tão diferente e tão afastado do
nosso. Penso que isso também é vantajoso para o senhor. Se também pensa
assim, envie-me a devida autorização, isenta de qualquer condição
pecuniária".
A resposta veio de Paris, menos de um mês depois. Nela, F.H. Garnier
negava o pedido da cessão de direitos sem compensação monetária e
argumentava: "Vós não ignorais, senhor, que um autor, por mais bem
traduzido que seja, sempre perde sua originalidade numa língua que não
seja a sua; os admiradores de um escritor preferem lê-lo na língua
materna. Não teríeis nada a ganhar ao ser traduzido para o alemão.
Também tenho o desgosto de não poder conceder gratuitamente o direito de
tradução solicitado. Os alemães, de sua parte, sabem muito bem se fazer
pagar".
Não foi essa a única tentativa de Machado de fazer circular sua obra
fora do Brasil e ser lido em língua estrangeira. Bem antes do episódio
de 1899, ele entrara em tratativas e sondagens para ver seu trabalho
circulando fora do Brasil. Numa carta de 1882 para o cunhado Miguel de
Novais, 17 anos, portanto, antes do balde de água fria do editor
Garnier, Machado conta que o "Brás Cubas" estava sendo traduzido para o
alemão. O cunhado assinalava a importância do fato: "Estimei saber que o
seu 'Brás Cubas' estava sendo traduzido para o alemão - são poucas as
composições em língua portuguesa que recebem essa honra."
Além desse comentário de Novais, nada mais se sabe sobre essa
primeira possibilidade de tradução de uma obra de Machado para língua
estrangeira. Também não se conhece o destino de outra tradução do "Brás
Cubas" para o alemão, que seria realizada em 1888 por um certo Curt
Busch von Besa. Dessa, temos apenas o registro manuscrito da autorização
concedida por Machado ao tradutor, datada de 10 de setembro de 1888,
mas tudo indica que ela jamais se efetivou.
Assim, as três tentativas de tradução para uma língua estrangeira -
nas quais sabemos que o escritor se empenhou direta e solitariamente -
foram frustradas.
Mas nem tudo são negativas no capítulo das traduções de Machado para
língua estrangeira. Dois de seus romances foram traduzidos e publicados
em seu tempo de vida: "Brás Cubas" e "Esaú e Jacó", ambos em traduções
para o castelhano, ao que tudo indica feitas na surdina e sem empenho
direto do escritor, que a essa altura já tinha vendido os direitos sobre
sua obra. "Brás Cubas" teve tradução de Julio Piquet e foi publicado em
Montevidéu em 1902. Machado chegou a escrever sobre a tradução,
demonstrando simpatia e apreço pelo trabalho realizado: "A tradução só
agora a pude ler completamente, e digo-lhe que a achei tão fiel como
elegante", escreveu em carta ao amigo Luís Guimarães Filho, que teria
intermediado a publicação no Uruguai.
No fim de 1905, o jornal "La Nación", da Argentina, publicou "Esaú e
Jacó" em espanhol, um ano depois de o romance sair no Brasil. O livro
não traz o nome do tradutor, mas é possível que tenha sido o mesmo
Piquet.
Entretanto, o empenho de ter sua obra traduzida para o alemão e a
satisfação com a tradução de "Brás Cubas" indicam o interesse de Machado
em buscar terras e línguas estrangeiras para fazer circular sua obra,
certamente por acreditar que seus escritos teriam algo a dizer e
poderiam interessar a leitores de outros lugares.
O fato desolador é que Machado permaneceria praticamente desconhecido
fora do Brasil até a década de 1950, quando o país e o escritor
começaram a ganhar maior projeção internacional, com as primeiras
traduções dos seus romances para o inglês.
É verdade que escritores como José de Alencar, Aluísio Azevedo e o
visconde de Taunay foram traduzidos ainda no século XIX, o que
certamente tem a ver com o fato de estar sintonizados com ideias de
Brasil e da literatura brasileira mais convencionais e mais palatáveis
para leitores estrangeiros.
A acidentada trajetória internacional de Machado de Assis, no
entanto, ilustra bem como o conhecimento e reconhecimento internacional
de uma obra podem estar menos relacionados às qualidades da escrita e do
escritor do que a interesses comerciais e políticos. Num país que
estava às margens dos centros de cultura e poder, a potência literária
de Machado permaneceu até agora como uma espécie de segredo brasileiro,
volta e meia "descoberto" por uma grande personalidade da cena
intelectual globalizada, sem que efetivamente tenha conseguido romper,
fora do Brasil, os círculos acadêmicos e intelectualizados. Na cena
internacional, a obra de Machado e a produção literária brasileira de
qualidade continuam a ser um biscoito fino para os "happy few".
Emergindo como potência econômica global, resta saber se o Brasil, a
esta altura, será capaz de reverter o desconhecimento generalizado sobre
a boa literatura produzida no país e mostrar ao mundo, com mais de um
século de atraso, que, yes, o Brasil também tem Machado de Assis!
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* Hélio Guimarães é professor da área de literatura brasileira na Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do CNPq
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