Qual o oposto do relativismo? É difícil responder a essa pergunta,
até porque não sabemos, sequer, o que é o relativismo. Dado que não
existe uma autoridade jurídica que imponha que sentido deve ter esse
termo, tentaríamos explicá-lo recorrendo a uma noção dicionarizada. O
relativismo é o sistema de crenças segundo o qual não há verdade
absoluta, mas apenas diferentes perspectivas com valor relativo. Para
simplificar a questão, podemos nos ater ao aspecto ético. Nesse sentido é
que Bento XVI registrou que “oggi un ostacolo particolarmente
insidioso all’opera educativa è costituito dalla massiccia presenza,
nella nostra società e cultura, di quel relativismo che, non
riconoscendo nulla come definitivo, lascia come ultima misura solo il
proprio io con le sue voglie” (Discurso de 6-VI-2005). Relativista é
quem nada reconhece como definitivo, em poucas palavras. Deixo de lado a
questão do “ego com os seus desejos”, embora seja ela também passível
de crítica, porque usamos um círculo de temas que sempre depende da
existência de um outro (mesmo que não seja uma pessoa).
Retomo a pergunta que aparece no início do parágrafo anterior. A
resposta não é difícil. O oposto de nada reconhecer como definitivo é
não ser o caso de nada se reconhecer como definitivo; um rearranjo da
frase permite dizer que o não relativista é aquele que reconhece alguma
coisa como definitiva (fora do próprio ego, numa tese lateral, mas
compatível). No nosso sentido particular, um norte ético, um valor não
negociável. Terei em vista a denúncia comum de que nossa sociedade e
cultura são relativistas.
* * *
Será verdade, estabelecidas essas distinções mínimas, que vivemos em
tempo de predominante relativismo? Vou propor uma tese um pouco
polêmica. É possível que vivamos, ao contrário, em tempo de muitas teses
definitivas fundadas em valores manifestamente absolutos.
Toda tese desse tipo sofre de um problema aparentemente grave. As
fontes de que fazemos uso para afirmar o que e como pensam nossos
contemporâneos são finitas, mas inabarcáveis. Eles expressam suas
opiniões na rua, nos jornais, em casa. Existe um fosso enorme entre
opiniões expressas publicamente e opiniões expressas em privado — e
outro fosso, na verdade um gradual esburacamento, entre o que
confessamos ao público, à família, a nós mesmos e a ninguém (nem a nós
mesmos). Por isso, usarei como fonte uma entidade vaga, mas muito
referida e influente, chamada ‘tendência da opinião pública’. Um
exemplo: a tendência da opinião pública é claramente favorecer o aborto
como prática legítima, ao menos em alguns casos. Pessoalmente, não creio
que o aborto seja válido sequer no caso de estupro. Em todos os casos,
abortar é, precisamente, matar um ser humano dentro do útero da sua uma
mãe, e não há sutileza argumentativa capaz de dizer que A, sendo A diferente de B, é B.
Se sou contrário ao assassinato, segue-se que sou contrário a toda ação
cujo núcleo seja “matar alguém”, mesmo que esse alguém seja um feto, e
mesmo que haja dúvida sobre a humanidade desse feto. Essa dúvida é
razoável, e assassinar nunca é razoável. Quero crer que, não tendo
respeitos humanos, não teria dificuldades em dizê-lo em público — tanto é
que o estou dizendo agora. Mas não é assim que normalmente acontece. Há
opiniões minhas que prefiro não compartilhar, seja porque não
interessam ou não devem interessar a ninguém, seja porque não tenho
segurança suficiente para as sustentar. E é até possível que as
contrarie numa conversa, tornando o menos certo mais certo, ou
vice-versa. Ninguém, absolutamente ninguém, tem controle preciso disso; a
começar porque as inconsistências epistemológicas, especialmente em
meios ‘fundamentalistas’ (cristãos ou não), são maiores do que em meios
onde prevalecem opiniões mais porosas (porque quem afirma
categoricamente A provoca um aumento drástico na probabilidade de que a negação de A venha
a ser eventualmente sustentada, mesmo indiretamente, em outra ocasião,
como consequência de alguma outra afirmação categórica B que
também faça parte do meu conjunto de crenças expresso ou inconfessado).
Desfaço-me de todos esses problemas dizendo, simplesmente, que tomo como
fonte o que pensa publicamente o ocidental médio. Os meios de
comunicação de massa facilitam o reforço de tendências, e todo mundo
possui, mais ou menos, as mesmas opiniões públicas em estado de default.
Quem não o percebe, ou está sendo demasiado criterioso com algo
dificilmente cristalizável, ou tem dificuldade em captar teses vigentes.
Como são muitas as tendências em matéria ética, vamos escolher um só
tema. Aleatoriamente, escolho o tema do valor dos animais e do seu
sofrimento. Parece-me verdadeiro que a tendência é valorizar bastante o
tema, embora em parte a visão de mundo de nossos antepassados — como,
digamos, os do séc. XIX — esteja de acordo com ela.
As premissas da opinião pública a esse respeito são as seguintes:
(1) Os animais sofrem.
(2) Causar sofrimento nos animais sem motivo é imoral.
(3) Os que causam sofrimento nos animais sem motivo devem ser fortemente punidos.
Vamos colocar essas premissas 1-3 em conflito com o relativismo. Vamos lembrar que:
(4) Se A é relativista, A acredita que, para qualquer valor moral x escolhido ao acaso, x é relativo.
Creio que (4) seja consistente com o que dissemos nos primeiros
parágrafos. A linguagem em que a proposição foi expressa não deve
assustar o leitor: ela só pretende clarificar a proposição, i. e.,
torná-la mais exata e palpável, como o exige o cuidado filosófico mais
elementar.
Vamos supor que as sentenças 1-3 são objeto da crença de Gaspar, um sujeito qualquer ocidental. Assim,
(5) Gaspar acredita que os animais sofrem, que causar-lhes sofrimento
sem motivo é imoral, e que quem pratica esse tipo de tortura deve ser
punido.
Nosso Gaspar é mais um entre meus contemporâneos. Como é uma premissa
(aceita acima; mas se o leitor não a aceita, não é obrigado a ter por
verdadeiras as consequências que virão abaixo) o fato de que Gaspar crê
que a tendência da opinião pública, ao menos nesse ponto, está correta, e
como também é uma premissa o fato de que o Ocidente contemporâneo, que
inclui Gaspar, tende ao relativismo, então devo concluir:
(6) Gaspar é relativista e Gaspar acredita fortemente nas proposições (1) – (3).
Dizer que Gaspar é relativista não é bem um fato, mas uma atribuição
de uma propriedade comum em dada época a uma pessoa escolhida ao acaso,
fazendo-se uso da probabilidade. O leitor observador concordará que é
bastante comum que uma pessoa escolhida ao acaso acredite em 1-3 e seja,
como a opinião pública manda, relativista. Quase todo texto que leio
sobre cultura, comportamento e sociedade ocidental, “às direitas e às
esquerdas”, aceita ambas as premissas ao associar o relativismo à
discussão sobre o sofrimento dos animais e ao dizer que o relativismo é
uma tendência; ou que é uma “maciça presença na nossa sociedade e
cultura”, como disse Bento XVI.
Não está previsto no Código Penal de 1940, nosso atual código,
qualquer punição para a tortura dos animais. No contexto do legislador
de 1940, se alguém matasse um cão, responderia possivelmente por crime
de dano e, na esfera cível, teria de indenizar o seu dono. Animais eram
tratados, juridicamente, como patrimônio, e não como sujeitos capazes de
sofrer e de ser protegidos em si mesmos. Que alguém deva ser punido por
fazer sofrer, sem motivo, um animal, implica uma mudança considerável
(e efetivamente esta mudança está sendo introduzida na legislação penal,
acompanhando um movimento que é, antes de mais nada, ético). Assim, são
diferentes a opinião pública vigente nos anos 40 do século XX e a
vigente na segunda década do século XXI. O acento, ao menos, é mais
forte, hoje, nas proposições 1-3, do que era nos anos 40, considerada a
opinião pública, e mesmo a opinião individual, familiar e privada,
“inter amicos”. Um Gaspar dos anos 40, provavelmente, assumiria 1-3 com
reservas, e talvez sequer excluiria a proposição (3), ou excluiria dela o
advérbio de modo “fortemente”. Estatisticamente, e isso nada
tem a ver com o que é certo e o que é errado, mais pessoas hoje do que
nos anos 40 abraçam com convicção a proposição (3), e se comovem
profundamente com o fato d qual (1) é a descrição.
Espero que tenha ficado claro, com o que disse, que o conjunto de
crenças expresso por (1) a (3) convive tranquilamente, ou muito
frequentemente, com a doutrina expressa por (4), o relativismo.
Voltemos a (6). Se Gaspar é relativista, e escolhemos, por exemplo, a
proposição (3), ligando-a a um cão, temos a seguinte sentença (sim, já
fiz uma confusão enorme entre ‘sentença’ e ‘proposição’: o leitor me há
de perdoar, sabendo que a distinção não é importante aqui):
(7) Gaspar acredita fortemente que quem faz o cão sofrer sem motivo
deve ser punido e que o sofrimento do cão é um valor relativo.
É provável que, confrontado com (7), o nosso Gaspar médio diga: “ei,
tem alguma coisa errada aí! Como assim, o sofrimento do cão é um valor
relativo? Os cães não são coisas!” Se João tiver torturado um cão,
dificilmente convenceremos Gaspar de que João estava apenas manifestando
sua compreensível indiferença por esses animais. Para Gaspar, na
verdade, nada justificaria a tortura do cão. A vida do animal é algo tão
absoluto — ou seja, indiferente à sutileza dos pontos de vista
relativos sobre o valor da sua vida — que quem a viola torpemente deve
ser inclusive punido. Quando dizemos — e sempre tenho ouvido isso — que
quem tortura um animal pratica uma torpeza, estamos dizendo que nada
justifica a prática desse ato (lembre-se que torturar um animal é
fazê-lo sofrer sem motivo!). Ou seja, que esse ato é absolutamente
errado. Devemos concluir, então, que Gaspar tem crenças contraditórias.
Confrontado, é bem provável que, ao menos nesse tema do sofrimento do
cão, Gaspar se declare, ou melhor, seja obrigado a declarar-se
não-relativista. E se os animais não são coisas, supõe-se também que as
pessoas também não são.
E quem é não-relativista para um só valor x qualquer, não é relativista em nenhum sentido. Basta dizer que a sentença comumente aceita diz que A é relativista se, para qualquer valor (nesse caso, moral) arbitrário x, x é relativo. Se encontramos um só x
que não seja um valor relativo, não podemos mais aplicar a propriedade
‘relativista’ a essa pessoa. Ao contrário do que diz o adágio popular, a
exceção não confirma a regra: é um passo elementar da lógica de ginásio
que a exceção prova que a regra é falsa. Gaspar escolhe: ou deixa o cão
ser torturado impunemente, ou abdica do valioso título de relativista. E
essa é uma consequência analiticamente necessária, quando usamos o
sentido comum de relativismo. (O que vemos é que, logo, o confrontado se
põe a torturar a lógica para se livrar dessas duras consequências.)
Escolher algum valor como absoluto não é simplesmente declará-lo
absoluto. É agir como se ele fosse absoluto. A atitude de Gaspar diante
dos animais é a mesma que a de um muçulmano convicto ou de uma feminista
convicta diante de outras questões. Todos eles, Gaspar e seus colegas
religiosos e feministas, agem com base numa valoração absoluta, e não
relativa, de certos bens.
Convido o leitor a rever os passos e as premissas que aceitou, e a
examinar se se deve concluir o que digo nos dois parágrafos seguintes.
Com isso procurei mostrar que só vivemos num tempo aparentemente
relativista. Na verdade, nós e Gaspar, tanto os que se creem
relativistas quanto os que não se creem relativistas, como eu,
acreditamos fortemente (no sentido de Charles Taylor de strong belief),
e absolutamente, em muitas coisas. O número enorme de pessoas que se
incluem na posição de Gaspar não me deixa mentir. Eu, pessoalmente,
nunca vi um relativista de facto. Os que defendem o aborto o
defendem com unhas e dentes. Ateus não só desconfiam de Deus, como não
querem que ele exista e não querem que ninguém se engane com essa crença
absolutamente errada em sua opinião. Talvez sejamos até mais assertivos
e mais favoráveis a valores absolutos que nossos antepassados. Que os
valores defendidos sejam falsos (apenas aparentes) ou verdadeiros é
outra questão. Parece-me mais adequado falar-se numa simples mudança
parcial de valores, e não em relativismo.*
Talvez essa confusão toda é que tenha motivado Joseph Ratzinger,
formidável intelectual, a usar em outras ocasiões uma expressão tão
contraditória, embora aparentemente verdadeira, como “a ditadura do
relativismo”.** Porque, se estou correto, não temos nem ditadura
(porque ela pressupõe o uso efetivo da força) e nem relativismo. O fato
de que alguns queiram que exista uma ditadura do relativismo
apenas para que possam condená-la retoricamente — expediente comum dos
puritanos e dos santarrões — não é capaz de criar a realidade da
ditadura.
—————————
* Uma nota biográfica. Quando morei numa antiga residência
universitária em Munique, lugar que o famoso oponente de Habermas teria
visitado muitos anos antes, quis desfazer essa dúvida conversando com
pessoas próximas a ele. Um amigo meu que o conhecia bem me disse que,
sendo contraditória a tese da “ditadura do relativismo” (e não é de uma
análise superficial que falava), ainda assim fazia sentido como
expediente retórico. A mim me parece que contradições não servem para
nada. Existe claramente uma pressão (mas não coerção) para dizermos que
(a) nada é moralmente verdadeiro, e simultaneamente que (b) algumas
coisas são absolutamente verdadeiras em sentido moral, como o valor
intrínseco dos animais e os sentimentos não-negociáveis da gestante
diante de um feto indesejado. O fato de que essa posição preferencial
seja contraditória não nos autoriza a usar uma expressão contraditória
para a descrever e condenar. Nem se diga que o relativismo é a crença de
que nada pode ser afirmado fora do campo científico, como ouvi em outra
ocasião. Essa posição é a do cientificismo, que é incompatível com o
relativismo (de todas as perspectivas possíveis, o cientificismo diz que
apenas a científico-naturalista é verdadeira; logo, não é uma posição
relativista). Condenações confusas são capazes de convencer apenas quem
já estava convencido de antemão.
** Além disso, mesmo um antropólogo cético está autorizado a
concluir, com base na comparação de centenas de culturas de todos os
tipos, que há mais motivos para dizermos que existe uma ética comum do
que afirmar, toscamente, que “tudo é relativo” (“The resemblances in
ethical concepts so far outweight the differences that a sound basis
for mutual understanding between groups of different cultures is already
in existence“, escreveu R. Linton em An Anthropologist’s Approach to Ethical Principles, in H. G. Blocker (ed.), Ethics, an Introduction, New York, Haven, 1986, p. 98). Enquanto tentarem enfiar goela abaixo dos que se consideram relativistas uma visão de mundo factualmente dogmática,
retórica e abusiva do slogan “eu sou careta mesmo”, ninguém se
convencerá de nada. A apologética triunfalista só tem produzido
ceticismo.
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Fonte: http://www.dicta.com.br/categorias/filosofia/17/09/2012.
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