João Pereira Coutinho*
A democracia estaria melhor servida com dois grandes partidos -um de esquerda, outro de direita
Sérgio Dávila escreveu nesta Folha a favor da polarização em
política. Será que o sistema brasileiro, com seus 30 partidos, é mais
desejável do que o sistema bipartidário norte-americano, onde
republicanos e democratas se alternam no poder? Dávila pensa que não -e
pensa muito bem.
Há anos que, em Portugal, travo a mesma batalha: a democracia lusa
estaria melhor servida se existissem dois grandes partidos -um de
esquerda, outro de direita- capazes de deterem maiorias sólidas e de
serem solidamente responsabilizados por seus atos.
Não é uma batalha fácil: sempre que alguém levanta a bandeira do
bipartidarismo, chovem acusações de fechamento democrático e de horror
ao pluralismo. Em minha defesa, só posso invocar o nome de um dos
maiores apologistas da "sociedade aberta": o filósofo Karl Popper.
Em 1987, Popper, então com 85 anos, esteve em Lisboa para uma notável
conferência sobre a sua vida e, em especial, a sua teoria da democracia.
Sobre a vida, os fatos são conhecidos: nascido em Viena em 1902, Popper
atravessou a Primeira Guerra Mundial; encantou-se com o comunismo;
desencantou-se logo a seguir; assistiu, horrorizado, à ascensão do
nazismo; e construiu uma impressionante obra filosófica no exílio.
Mas nesse encontro em Lisboa, o velho filósofo concentrou-se sobretudo
na sua teoria da democracia. Para Popper, a democracia é um problema
eminentemente prático e técnico. Ela procura saber como remover os maus
governantes sem derramamento de sangue.
Naturalmente que cabe ao povo, pela força do voto, essa punição
exemplar. Mas Popper sublinhava que essa punição só é verdadeiramente
exemplar -um "dia do juízo final", dizia ele- em sistemas
tendencialmente bipartidários.
A afirmação pode soar bizarra: o aumento do número de partidos deveria
significar mais escolha, mais ideias em circulação, melhor distribuição
de poder e influência.
Um erro, avisava Popper. Para começar, a existência de muitos partidos
traz dificuldades acrescidas à formação de governos coesos -para não
falar do funcionamento e da duração desses governos.
Em Portugal, esse aviso é uma evidência empírica: desde a instauração da
democracia, há mais de 35 anos, o país teve oito governos de
coalização. Nenhum deles -repito: nem um- chegou ao fim do seu mandato.
Só governos de um único partido o conseguiram.
Aliás, o atual governo de coalização ilustra o ponto: eleito há pouco
mais de um ano, as fissuras são já gritantes. Poucos creem na sua
sobrevivência a curto prazo.
Mas há mais: sistemas pluripartidários tendem a conceder aos pequenos
partidos um poder que pode revelar-se, ironicamente, antidemocrático. Se
a democracia significa a escolha da maioria, não cabe a uma minoria
determinar a vontade livremente expressa das maiorias.
Os pequenos partidos, explicava Popper, acabam por adquirir um poder
desproporcionado na formação de governos e no processo decisório desses
governos.
Finalmente, o argumento de peso: enganam-se os que pensam que sistemas
bipartidários têm menor flexibilidade ideológica. Os dois grandes
partidos americanos, por exemplo, apresentam uma capacidade de reforma e
autocrítica internas sem paralelo com qualquer outro sistema
pluripartidário.
Essa capacidade -mais: esse imperativo de reforma e autocrítica- está
diretamente ligada com a dimensão e o significado das derrotas
eleitorais.
Nos Estados Unidos, quem perde, perde a sério. A derrota não é apenas um
prejuízo facilmente dissolúvel em dezenas de pequenos partidos. É uma
derrota clara que exige uma resposta clara de explicação para essa
derrota; e de busca de novas ideias para regressar ao poder.
Como dizia Popper, nas democracias bipartidárias os partidos vivem "em
alerta permanente". O que significa uma atenção redobrada (e permanente)
às necessidades reais do país e, claro, ao comportamento do partido
rival na forma como governa e nas decisões que toma enquanto está no
poder.
Bipartidarismo é maturidade, escrevia Dávila. Acrescento: maturidade e
qualidade. Quem disse que o tamanho não conta estava só a pensar na
quantidade das siglas partidárias.
-----------------------
* Jornalista português. Colunista da Folha
jpcoutinho@folha.com.brFonte: Folha on line, 30/10/2012
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário