Fernando Gabeira*
"Ideologia, eu quero uma para viver". Se Cazuza
estivesse vivo, talvez se interessasse por uma palavra que rima com
ideologia e ocupa novo espaço no cenário político brasileiro. Hegemonia é
um termo que assusta os adversários do PT e preocupa seus aliados.
Embora ninguém se tenha dedicado a defini-la, todos temem perder a
independência.
Que tipo de hegemonia está em jogo? A palavra, na teoria leninista,
significa a tomada do poder político e a instalação da ditadura do
proletariado. Na versão de Antonio Gramsci, a hegemonia faz-se por um
processo cultural, implica concessões e tem como perspectiva a
introjeção pela sociedade das ideias do partido revolucionário.
Não creio que o PT trabalhe com essas duas perspectivas de hegemonia.
Na verdade, pouquíssimos leram Lenin, não só pela distância no tempo,
mas pela aridez do seu estilo. O próprio Gramsci é muito mais conhecido
por citações esparsas.
Dentro da simplicidade que rege o pensamento do militante comum, a
ideia de hegemonia nasce da definição do papel da classe operária. Se,
por força teórica, essa classe deve ser hegemônica, nada mais razoável
do que ser hegemônico também o partido que a representa.
Essa coreografia fantasmagórica não teria palco em outros países onde
não se vê a classe operária com potencial hegemônico e se tem
consciência das próprias transformações que ela viveu, com o crescimento
do trabalho intelectual. Para ser mais simples: já no início do exílio,
quando perguntávamos aos operários suecos por seus correspondentes
russos, eles suspiravam, não de admiração, mas de pena por suas
precárias condições de vida e, sobretudo, de liberdade.
Mas se o tema volta à cena no Brasil, é porque tem importância. As
constantes vitórias eleitorais do PT e a ocupação de cada milímetro da
máquina estatal fortalecem o medo. O avanço da esquerda latino-americana
sobre a imprensa e a Justiça nutrem a impressão de que estamos diante
de uma nova onda histórica.
Mas será que estamos mesmo diante de uma nova onda histórica ou é
apenas ilusão de ótica de quem tem uma visão parcial do mundo? A classe
operária brasileira, assim como a dos outros países, quer basicamente
melhoria de vida. E contempla com seu voto, como o fez com a
social-democracia, os partidos que trabalham para isso quando assumem o
governo.
A sede de poder do PT deve produzir uma nova frente anti-hegemônica,
composta por aliados e adversários do partido, uns querendo derrotá-los,
outros apenas buscando uma relação mais favorável. Isso talvez ajude a
pôr as coisas num patamar mais realista. Em primeiro lugar, a classe
operária não é idêntica à fantasia militante. Em segundo lugar, numa
sociedade complexa como a nossa, a palavra cooperação tem um alcance
maior do que hegemonia.
Será um trágico erro histórico tentar aplicar no Brasil critérios do
século passado, pensar em governá-lo com estruturas fechadas e
hierárquicas num momento em que a sociedade tende a se organizar em
redes. Não só o desempenho das redes se choca com a ideia de hegemonia.
Os partidos políticos, num regime democrático, devem denunciar as
intenções do parceiro quando sua visão teórica aponta para a hegemonia.
Não sabemos o nível de intimidade do PT com a obra de Gramsci. Ele
falava de uma hegemonia ética política. O PT jogou esse primeiro termo
no lixo e adotou a perspectiva dos fins justificando os meios. Também
não há uma ampla divisão de mundo em que o PT busque a hegemonia.
Teses como casamento gay e descriminalização de drogas,
constantemente apresentadas como cavalos de Troia do socialismo, na
verdade não foram criadas por ele. E no íntimo são repudiadas por muitos
dos seus líderes. Em Havana, no início dos anos 1970, um militante gay
perguntou sobre o tema ao embaixador norte-coreano e ele respondeu:
"Homem com homem? Isso não existe".
Gramsci vivia num país católico e pensava em saídas para o comunismo
que acabaram, de certa forma, inspirando mais tarde a proposta de
compromisso histórico entre Partido Comunista e Democracia Cristã. As
grandes lutas ideológicas no exterior estão hoje mais concentradas em
impor limites e mais racionalidade ao capitalismo. Não têm muito que ver
com Gramsci. E, creio, nada têm com Lenin, que previa pura e
simplesmente a ditadura do proletariado. Essa os próprios chineses foram
obrigados a desmontar no campo econômico, mantendo-a no político.
Não quero dizer que as pretensões hegemônicas de um partido sejam tão
anti-históricas que não valha a pena combatê-las. Adversário ou aliado,
o PT está no poder pelo poder. Lenin e Gramsci não tinham problema de
eleições de dois em dois anos. Se o tivessem, entenderiam a força da
máquina e da grana. Lenin faria uma nova revolução se lhe apresentassem a
conta de uma produção de TV. Gramsci voltaria de bom grado para o
cárcere se lhe dissessem que as ideias agora se produzem no departamento
de marketing.
As forcas que se opunham ao PT foram sendo enfraquecidas pelas
constantes derrotas eleitorais e, naturalmente, pelo crescente
distanciamento da máquina e da grana. Nunca foram realmente forças de
oposição, mas atuavam como um governo no exílio, à espera de voltar ao
poder. Fazer oposição dá mais trabalho e traz inúmeros riscos.
Ao contrário do que possa se imaginar, a ascensão do PT e a queda dos
adversários não significam o fim da história. As eleições municipais no
Brasil, sobretudo nas grandes cidades, mostraram que milhões de pessoas
não se identificam nem com o PT, desfigurado pela corrupção, nem com
seus adversários. A distância entre a política tradicional e os
eleitores abre um caminho de reflexão. Ela pode crescer até os limites
da legitimidade. Ou pode ser superada por forças que tenham uma resposta
para esse desencanto.
Quem falará aos ausentes e aos que votaram sem entusiasmo? O que dizer a eles?
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* JORNALISTA
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,uma-hegemonia--tropical-,951146,0.htm
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