Biblia e literatura
O romance de José Rodrigues dos Santos,
intitulado “O último segredo”, é formalmente uma obra literária. Nesse
sentido, a discussão sobre a sua qualidade literária cabe à crítica
especializada e aos leitores. Mas como este romance do autor tem a
pretensão de entrar, com um tom de intolerância desabrida, numa outra
área, a história da formação da Bíblia por um lado, e a fiabilidade das
verdades de Fé em que os católicos acreditam por outro, pensamos que
pode ser útil aos leitores exigentes (sejam eles crentes ou não)
esclarecer alguns pontos de arbitrariedade em que o dito romance
incorre.
1. Em relação à formação da
Bíblia e ao debate em torno aos manuscritos, José Rodrigues dos Santos
propõe-se, com grande estrondo, arrombar uma porta que há muito está
aberta. A questão não se coloca apenas com a Bíblia, mas genericamente
com toda a Literatura Antiga: não tendo sido conservados os manuscritos
que saíram das mãos dos autores torna-se necessário partir da
avaliação das diversas cópias e versões posteriores para reconstruir
aquilo que se crê estar mais próximo do texto original. Este problema
coloca-se tanto para o Livro do Profeta Isaías, por exemplo, como para
os poemas de Homero ou os Diálogos de Platão. Ora, como é que se faz o
confronto dos diversos manuscritos e como se decide perante as
diferenças que eles apresentam entre si? Há uma ciência que se chama
Crítica Textual (Critica Textus, na designação latina) que
avalia a fiabilidade dos manuscritos e estabelece os critérios
objetivos que nos devem levar a preferir uma variante a outra. A
Crítica Textual faz mais ainda: cria as chamadas “edições críticas”,
isto é, a apresentação do texto reconstruído, mas com a indicação de
todas as variantes existentes e a justificação para se ter escolhido
uma em lugar de outra. O grau de certeza em relação às escolhas é
diversificado e as próprias dúvidas vêm também assinaladas.
Tanto do texto bíblico do Antigo como do Novo
Testamento há extraordinárias edições críticas, elaboradas de forma
rigorosíssima do ponto de vista científico, e é sobre essas edições que o
trabalho da hermenêutica bíblica se constrói. É impensável, por
exemplo, para qualquer estudioso da Bíblia atrever-se a falar dela,
como José Rodrigues dos Santos o faz, recorrendo a uma simples
tradução. A quantidade de incorreções produzidas em apenas três linhas,
que o autor dedica a falar da tradução que usa, são esclarecedoras
quanto à indigência do seu estado de arte. Confunde datas e factos,
promete o que não tem, fala do que não sabe.
2. Chesterton dizia, com o seu
notável humor, que o problema de quem faz da descrença profissão não é
deixar de acreditar em alguma coisa, mas passar a acreditar em
demasiadas. Poderíamos dizer que é esse o caso do romance de José
Rodrigues dos Santos. A nota a garantir que tudo é verdade, colocada
estrategicamente à entrada do livro, seria já suficientemente
elucidativa. De igual modo, o apontamento final do seu romance, onde
arvora o método histórico-crítico como a única chave legítima e
verdadeira para entender o texto bíblico. A validade do método de
análise histórico-crítica da Bíblia é amplamente reconhecida pela
Igreja Católica, como se pode ver no fundamental documento “A
interpretação da Bíblia na Igreja Católica” (de 1993). Aí se recomenda
o seguinte: «os exegetas católicos devem levar em séria consideração o
caráter histórico da revelação bíblica. Pois os dois
Testamentos exprimem em palavras humanas, que levam a marca do seu
tempo, a revelação histórica que Deus fez… Consequentemente, os
exegetas devem servir-se do método histórico-crítico». Mas o método
histórico-crítico é insuficiente, como aliás todos os métodos, chamados
a operar em complementaridade. Isso ficou dito, no século XX, por
pensadores da dimensão de Paul Ricoeur ou Gadamer. José Rodrigues dos
Santos parece não saber o que é um teólogo, e dir-se-ia mesmo que
desconhece a natureza hipotética (e nesse sentido científica) do
trabalho teológico. O positivismo serôdio que levanta como bandeira
fá-lo, por exemplo, chamar “historiadores” aos teólogos que pretende
promover, e apelide apressadamente de “obras apologéticas” as que o
contrariam.
3. A nota final de José
Rodrigues dos Santos esconde, porém, a chave do seu caso. Nela aparecem
(mal) citados uma série de teólogos, mas o mais abundantemente
referido, e o que efetivamente conta, é Bart D. Ehrman. Rodrigues dos
Santos faz de Bart D.Ehrman o seu teleponto, a sua revelação. Comparar o
seu “Misquoting Jesus. The Story Behind who Changed the Bible and
Why” com o “O Último segredo” é tarefa com resultados tão previsíveis
que chega a ser deprimente. Ehrman é um dos coordenadores do
Departamento de Estudos da Religião, da Universidade da Carolina do
Norte, e um investigador de erudição inegável. Contudo, nos últimos
anos, tem orientado as suas publicações a partir de uma tese radical,
claramente ideológica, longe de ser reconhecida credível. Ehrman reduz o
cristianismo das origens a uma imensa batalha pelo poder, que acaba
por ser tomado, como seria de esperar, pela tendência mais forte e
intolerante. E em nome desse combate pelo poder vale tudo: manobras
políticas intermináveis, perseguições, fabricação de textos falsos…
Essa luta é transportada para o interior do texto bíblico que, no dizer
de Ehrman, está repleto de manipulações. O que os seus pares
universitários perguntam a Ehrman, com perplexidade, é em que fontes
textuais ele assenta as hipóteses extremadas que defende.
4. Resumindo: é lamentável que José
Rodrigues dos Santos interrogue (e se interrogue) tão pouco. É
lamentável que escreva centenas de páginas sobre um assunto tão
complexo sem fazer ideia do que fala. O resultado é bastante penoso e
desinteressante, como só podia ser: uma imitação requentada,
superficial e maçuda. O que a verdadeira literatura faz é agredir a
imitação para repropor a inteligência. O que José Rodrigues dos Santos
faz é agredir a inteligência para que triunfe o pastiche. E assim
vamos.
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura
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Fonte: http://www.snpcultura.org/uma_imitacao_requentada_nota_sobre_o_ultimo_segredo_jose_rodrigues_santos.html
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