JOÃO UBALDO RIBEIRO*
Vejamos aqui, que novidades há, neste que espero ser um domingo
ensolarado e ameno, em que o distinto leitor e a cativante leitora
(cartas sobre como estas designações são machistas devem, por caridade,
ser encaminhadas ao editor) possam tirar muito proveito do que ainda nos
dadiva a Natureza? Não muitas, acho eu. Talvez as novidades mesmo
estejam nas páginas de medicina ou ciência dos jornais, onde sempre
anunciam o sensacional estudo que desmente outro sensacional estudo de
anos atrás, como acontece principalmente em relação a alimentos. A
notícia mais recente, se não me trai outra vez a vil memória, é a
respeito do camarão. Parece que aboliram a vingança do camarão. A
vingança do camarão estava em que o freguês podia comê-lo, mas, em
compensação, o colesterol entrava em órbita. Agora não mais, pelo menos
até realizarem novo estudo. Periodicamente, a verdade científica vira
mentira e, pensando bem, não há grandes novidades nem nas páginas de
ciência.
E, infelizmente, não são tampouco grande novidade os acontecimentos
terrificantes em hospitais. De cabeça, lembro agora o da senhora que
mataram, injetando-lhe café com leite na veia. Anteriormente, em outro
hospital, um paciente morreu, após lhe darem sopa também por via
endovenosa. Mataram um terceiro, trocando por glicerina o soro que
receberia. Administraram a recém-nascidos remédio contra verrugas por
via oral, causando lesões horrendas e permanentes. Amputaram por engano o
braço de um bebê. E, como é de nossa prática de povo cordial, tolerante
e compreensivo, não vai haver responsáveis em qualquer desses casos e
de inúmeros outros como eles, muito menos reparação para as vítimas.
Nenhuma novidade.
No setor das grandes questões nacionais, o julgamento do mensalão se
aproxima do fim, grande parte do suspense inicial já se foi e agora o
que se espera é, no interessante dizer do comentarista que escutei no
rádio de um táxi, a customização das penas, ou seja, a definição das
punições que receberá cada um dos réus condenados, por sinistro desígnio
da zelite. Acho difícil haver um problema que não tenha sido causado
pela ação da zelite, é um grande achado. E talvez nele esteja, afinal,
uma novidade. Não muito importante, quiçá, mas, na falta de outra,
quebra o galho. Creio que já podemos cogitar da inclusão de "zelite" nos
dicionários como mais um coletivo da lavra popular, com a observação de
que por enquanto leva o predicado ao plural, mas no futuro talvez perca
essa peculiaridade. Acredito que logo estaremos dizendo coisas como "a
zelite não vai aceitar" ou "ele pertence à zelite paulista". Não deixa
de ser uma contribuição ao vocabulário da perseguida língua portuguesa.
Resta, porém, definir direito o que é zelite. Não é muito fácil, pelo
menos para quem acompanha o noticiário brasileiro. Por enquanto, lembra
um pouco o que sucede com a palavra "democracia" e cognatas. Qualquer
regime - e tem sido assim em toda a História contemporânea - pode
apregoar ser uma democracia. A Alemanha Oriental era a República
Democrática Alemã e a Coreia do Norte é oficialmente a República
Democrática Popular da Coreia. Fenômeno semelhante acontece com a
zelite, na direção oposta. É desejável ser democrático e é odioso ser da
zelite; elogia-se com o primeiro e xinga-se com a segunda.
Além disso, a zelite vem desempenhando um papel comparável ao dos
comunistas de antigamente. No Brasil, com a notável exceção de Oscar
Niemeyer e Zecamunista, sofremos de uma lastimável escassez de
comunistas sobre os quais fazer recair a culpa de tudo o que diabo
apronta. Os comunistas, como testemunharão os mais velhos, tinham muita
serventia e até moças de conduta avançadex, como se dizia, eram fruto da
doutrinação dos comunistas. A zelite e seu braço direito, a imprensa
venal, corrupta e a serviço de interesses tenebrosos, vêm preenchendo
essa lacuna, tão aflitiva para quem não tem nada de substancial a dizer
em sua defesa, a não ser, talvez, o inconfessável.
Mas que diabo é a zelite? Sabemos que a palavra vem de "elite". No
caso, elite política e econômica. Imagina-se que a elite política seja
composta por quem está no poder. Presidente da República é zelite
política, assim como os que exercem alguma fatia do poder. Que outro
critério haveria? Ou a elite política está diretamente no governo ou o
exerce mediante fantoches e paus-mandados, caso em que, ao denunciar a
zelite, estaria denunciando a si mesma. Qual a zelite que se opõe aos
que estão no poder? A zelite financeira está com eles, os bancos
prosperando e ganhando dinheiro como nunca, como já comentou o próprio
ex-presidente Lula. A zelite empresarial também não parece descontente, a
não ser quanto a um ponto ocasional ou outro. A zelite das
empreiteiras, então, nem se fala. A zelite artístico-intelectual, além
de não ter poder concreto para nada, não costuma pensar uniformemente.
Não me ocorre nenhuma outra zelite à qual se possa atribuir a culpa dos
infortúnios enfrentados pelos réus do mensalão. Quem aprontou a
trapalhada foram eles, mas a culpa não é do despreparo e dos erros
deles, é da zelite.
A palavra já cria raízes em nossa terminologia política e, ao que
tudo indica, terá vida longa, porque serve para fingir que se está
explicando alguma coisa. Foi pegado com a boca na botija ou mentindo
deslavadamente, os planos deram errado? Distribua uma nota ou faça um
discurso, mostrando como a responsável é a zelite. O pessoal ganha,
chega ao poder já pela terceira vez, está no topo da zelite governante
e, no entanto, a zelite, até mesmo através do voto, fica atrapalhando. É
por essas e outras que dá vontade de arrolhar a zelite e sua imprensa e
estabelecer aqui uma verdadeira democracia, igual à da Coreia do Norte.
Do Blog: Para saber +: http://blogs.estadao.com.br/daniel-piza/a-corrupcao-das-palavras-1/
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* Jornalista. Escritor. Professor. Roteirista.
Fonte: Estadão on line, 21.10.2012
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