Washington Novaes*
O historiador Eric J. Hobsbawn, que morreu no começo da semana
passada, deixou livros em que caracterizou de forma contundente os
tempos que estamos vivendo. “Quando as pessoas não têm mais eixos de
futuros sociais acabam fazendo coisas indescritíveis”, escreveu ele no
ensaio Barbárie: Manual do Usuário. Ou, então, “aí está a essência da
questão: resolver os problemas sem referências do passado”. Por isso,
certamente Hobsbawn não se espantaria com a notícia estampada no jornal O
Estado de S. Paulo poucos dias antes de sua morte: Na Espanha, cadeados
nas latas de lixo (27/9). “Com cada vez mais pessoas vivendo de restos,
prefeitura (de Madri) tranca as latas como medida de saúde pública.”
Nada haveria a estranhar num país onde a taxa de desemprego está por
volta de 25%, 22% das famílias vivem na pobreza e 600 mil não têm
nenhuma renda.
E que pensaria o historiador com a notícia (Estado, 26/9) de que as
autoridades de Bulawato, no Zimbábue (África), “pediram aos cidadãos que
sincronizem as descargas de seus vasos sanitários para poupar água. (…)
Os moradores devem esvaziar os vasos apenas a cada três dias e em
horários determinados”? Provavelmente Hobsbawn não se espantaria,
informado das estatísticas da ONU segundo as quais 23% da população
mundial (mais de 1,5 bilhão de pessoas) defeca ao ar livre por não ter
instalações sanitárias em sua casa. As do Zimbábue ainda estão à frente.
E da China que pensaria ele ao ler nos jornais (22/9) que a
prefeitura de Xinjian, no leste do país, “está sob intensa crítica da
opinião pública após enjaular dezenas de mendigos no mesmo lugar durante
um festival religioso”? Ao lado da foto das jaulas nas ruas com
mendigos encarcerados, a explicação de autoridades de que assim fizeram
porque os pedintes assediavam peregrinos e corriam risco de ser
atropelados ou pisoteados. Mas “entraram nas jaulas voluntariamente”.
Será para não correr riscos desse tipo que “quatro estrangeiros de
origem ignorada” vivem há três meses no aeroporto de Cumbica, em São
Paulo, recusando-se a dizer sua nacionalidade e procedência (Folha de
S.Paulo, 29/9)? “Em tempos de transformação”, disse o psicanalista
Leopold Nosek a Sonia Racy (Estado, 7/10), “quando o velho não existe
mais e o novo ainda não se estruturou, criam-se os monstros”.
Para onde se caminhará? Na Europa, diz a Organização Internacional do
Trabalho que, com todo o sul do continente em crise, o desemprego na
faixa dos 15 aos 24 anos crescerá 22% em 2013, pouco menos no ano
seguinte. Nos Estados Unidos, a taxa de desemprego entre jovens está em
17,4%, talvez caia para 13,35% até 2017 (Agência Estado, 5/9). O
desemprego médio nos 17 países da zona do euro subiu para 11,4%.
Pulemos para o lado de cá. Um em cada cinco brasileiros entre 18 e 25
anos não trabalha nem estuda (Estado, 26/9). São 5,3 milhões de jovens.
Computados também os que buscam trabalho, chega-se a 7,2 milhões. As
mulheres são maioria. E o déficit ocorre embora o País tenha gerado 2,2
milhões de empregos formais em 2011.
As estatísticas são alarmantes. A revista New Scientist (28/7) diz
que 1% da população norte-americana controla 40% da riqueza. Já existem
1.226 bilionários no mundo. “Nós somos os 99%”, diz o movimento de
protesto Occupy. Entre suas estatísticas estão as que os relatórios do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) vêm publicando
desde a década de 1990: pouco mais de 250 pessoas, com ativos superiores
a US$ 1 bilhão cada, têm, juntas, mais do que o produto bruto conjunto
dos 40 países mais pobres, onde vivem 600 milhões de pessoas. Já a
metade mais pobre da população mundial fica com 1% da renda global
total. Menos de 20% da população mundial, concentrada nos países
industrializados, consome 80% dos recursos totais. E 92 mil pessoas já
acumulam em paraísos fiscais cerca de US$ 21 trilhões, afirma a Tax
Justice Network.
E que se fará, com a população mundial aumentando e os recursos
naturais – inclusive terra para plantar alimentos – escasseando? É cada
vez maior o número de economistas que já mencionam com frequência a
“crise da finitude de recursos”. Os preços médios de alimentos “devem
dobrar até 2030, incluídos milho (mais 177%), trigo (mais 120% e arroz
(107%)”, alerta a ONG Oxfam (Instituto Carbono Brasil, 6/9). 775 milhões
de jovens e adultos são analfabetos e não têm como aumentar a renda
(Rádio ONU, 10/9).
De volta outra vez ao nosso terreiro, vemos que “mais de 90% das
cidades estão sem plano para o lixo” (Estado, 2/8). Na cidade de São
Paulo, 90% do lixo reciclável vai para aterros sanitários (CicloVivo,
10/8). Diariamente 5,4 bilhões de litros de esgotos não tratados são
descartados. Perto de metade dos domicílios não é ligada a redes de
esgotos. A perda de água nas redes de distribuição (por furos,
vazamentos, etc.) está por volta de 40% do total. Mas 23% das cidades
racionam água, segundo o IBGE (Estado, 20/10/2011). E grande parte da
água do Rio São Francisco que será transposta irá para localidades com
essas perdas – antes de corrigi-las. E com o líquido custando muito mais
caro, já que muita energia será necessária para elevá-lo aos pontos de
destino.
Enquanto isso, a campanha eleitoral correu morna em praticamente todo
o País, com candidatos fazendo de conta que vivemos na terra da
promissão, não precisamos de planos diretores rigorosos nas cidades, não
precisamos responsabilizar quem mais consome – e mais gera resíduos -,
não precisamos impedir a impermeabilização do solo das cidades nem
impedir a ocupação de áreas de risco.
“A sociedade de consumo”, escreveu Hobsbawn, “interessa-se apenas
pelo que pode comprar agora e no futuro”. Mas terá de resolver o
problema de 1 bilhão de idosos em dez anos (Fundo de População das
Nações Unidas, 1.º/10).
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* Washington Novaes é jornalista.
** Publicado originalmente no site O Estado de S. Paulo.
Fonte: http://mercadoetico.terra.com.br/23/10/2012
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