Um novo livro diz que sim – e elas venceram. No Brasil, criam mais empresas. Nos EUA, já ganham melhores salários no primeiro emprego. Agora, lutam por chances iguais de crescimento
Charlô é uma mulher poderosa. Pilota aviões, salta de paraquedas,
diverte-se com namorados vários e defende o avanço feminino no mercado
de trabalho. Otávio é conservador, autoritário e mal-humorado – além de
machista incorrigível. Em 1983, Charlô e Otávio, interpretados por
Fernanda Montenegro e Paulo Autran, se enfrentavam na novela Guerra dos sexos.
Quase 30 anos depois, o embate volta à TV, numa novela com o mesmo
nome, com Irene Ravache e Tony Ramos nos papéis de Charlô II e Otávio
II, sobrinhos do antigo casal. O autor, Silvio de Abreu, não quis fazer
uma adaptação. Trata-se, segundo ele, de outra novela. A escolha do
escritor – partir do zero e escrever um texto novo para tratar do tema
antigo – confirma um fenômeno observável na economia, na política, nos
costumes. Se ainda há uma guerra dos sexos em andamento, ela não segue o
roteiro conhecido até o início deste século. Estamos em território
completamente diferente. E francamente favorável a elas. Pelo menos no
mundo ocidental.
“Os homens estão há 400 anos dominando. As mulheres começaram a
aparecer há 40 – ainda têm muito chão para andar, mas estão indo
rápido”, diz a jornalista americana Hanna Rosin, autora de The end of men (O fim dos homens, ainda sem tradução no Brasil). Hanna é editora da revista The Atlantic
e faz coberturas de fôlego sobre sexualidade, relacionamentos e
sociedade. No livro, ela relaciona avanços femininos em diversas frentes
para concluir que a guerra dos sexos acabou – e elas venceram.
No século XX, havia inimigos bem claros diante das mulheres e dos homens que lutavam por igualdade de direitos e oportunidades para os dois sexos. Em casa, nos lares sustentados principalmente por homens, elas tinham pouco ou nenhum poder de decisão. No trabalho, discriminar e abusar delas demorou a ser considerado crime. Na universidade, elas eram minoria. O número de filhos por mulher era mais que o dobro do atual. Ao longo das décadas em que esses problemas foram gradualmente reduzidos (sempre mais lentamente do que seria o ideal), as mulheres passaram a ocupar maior espaço no mercado de trabalho, mas sem se aproximar da posição dominante. Os homens continuavam com a maior parte dos empregos, os melhores postos, a chefia dos lares e, mais importante, as expectativas mais ambiciosas do que elas poderiam ter. Tudo isso ficou para trás.
As leis e regras que igualam as oportunidades já existem. Em todos os
países democráticos, é crime oprimir ou discriminar mulheres, em
qualquer ambiente. Ao menos na lei, foram abertos os caminhos para que
elas ocupem as empresas e os cargos políticos. As mulheres formandas no
ensino superior no Brasil vêm superando os homens em mais de 40%. Nos Estados Unidos,
elas também são maioria na universidade. “As mulheres ouviram com mais
clareza a mensagem de que a economia mudou, e os homens têm dificuldade
para ouvi-la ou responder a ela”, escreveu em abril o economista Michael
Greenstone, do MIT. Os resultados surgiram. Os sinais da ascensão
feminina estão dispersos, mas são eloquentes. No Brasil,
em processo de enriquecimento, elas chefiam mais de um terço dos lares e
criam metade das empresas nascentes. Em países ricos e decadentes, como
Estados Unidos e Japão, e na Europa,
elas são – ou logo se tornarão – maioria nos setores em que existe
alguma esperança de crescimento: educação, saúde e serviços. Nos EUA, as
mulheres sustentam 40% dos lares, tornaram-se mais da metade da força
de trabalho e, entre profissionais urbanos sem filhos com até 30 anos,
passaram a ganhar salário médio maior que os homens – fato único na
história e no mundo, em qualquer segmento, em qualquer país onde haja
estatísticas confiáveis. Será o início de um movimento mais abrangente?
“A combinação de excelência em educação e oportunidade de trabalho
permite que isso aconteça”, diz a historiadora Mary Del Priore. “Se as
mesmas condições, associadas, chegarem a outros lugares, essa realidade
se difundirá.”
As empresas passaram a procurar avidamente características
consideradas, erroneamente ou não, mais femininas que masculinas –
versatilidade, empatia com diferentes grupos, capacidade de perceber e
conciliar interesses diversos. O esforço gregário das mulheres tem
consequências já medidas no mundo do trabalho. Nos EUA, entre altos
executivos, elas tendem a ser mais assíduas a reuniões e a participar
mais de comitês de monitoramento, controle e fiscalização. Com a
presença das mulheres, os homens também se tornam mais assíduos,
concluiu um estudo de 2009 da Universidade de Rochester. “As empresas
querem ambientes mais diversos e vêm valorizando o estilo de liderança
feminino, mais observador de pessoas e comportamentos que de números ou
processos”, diz Magui Castro, da consultoria de recursos humanos
CTPartners.
Enquanto isso, os homens nos países desenvolvidos sofrem de forma muito mais dura os efeitos da crise econômica. Eles dependem mais dos empregos na indústria e na construção civil, setores que perdem relevância. As mudanças já estavam em andamento desde o fim do século XX. O economista e consultor Adam Looney, do Instituto Brookings, afirma que homens de meia-idade sofreram as maiores perdas no poder de consumo nas últimas décadas. No século XXI, o processo se acelerou, graças à ascensão da China (que desidratou a indústria no Ocidente) e à crise global iniciada em 2007. O novo equilíbrio de poder econômico entre os sexos tem efeito direto no comportamento.
Na versão de 1983 da novela de Silvio de Abreu, Maria Zilda fazia o papel de Vânia, uma executiva bem-sucedida que não queria se casar nem ter filhos, só cuidar de sua carreira e curtir a vida. Na época, os sonhos de Vânia não passavam de devaneios. A ditadura militar censurava cenas que sugerissem sexo fora do casamento. A personagem equivalente na nova novela, vivida por Luana Piovani, não encontrará censura e se sentirá enturmada. A cultura de “ficar” sem compromisso é aceita e defendida pelas mulheres solteiras.
“Para as universitárias, enroscar-se num relacionamento sério hoje é o
equivalente a engravidar solteira no século passado: um perigo a evitar
para não comprometer um futuro promissor”, afirma Hanna. Se as mudanças
em andamento forem transitórias, um efeito momentâneo da situação
econômica, talvez o embate entre os sexos volte a ficar parecido com o
visto no século XX. O mais provável é que estejamos observando mudanças
permanentes, como as provocadas por cataclismos sociais como o voto
feminino ou a Segunda Guerra Mundial, que exigiu a presença feminina nas
fábricas. Nesse caso, a tendência será irreversível. A guerra dos sexos
apenas caminharia, a partir de agora, para um fim inesperado: não a
igualdade, mas sim a supremacia feminina. “As mulheres sempre lutaram
por igualdade”, diz Hanna. “Mas e se igualdade não foi o ponto final? E
se as características femininas servirem melhor para nossa sociedade
pós-industrial?”
Todas as mudanças em andamento e os argumentos de livros como The end of men
não significam que as mulheres desfrutem oportunidades iguais neste
momento. Há um choque entre duas forças, bem definidas por dois
conceitos. Hanna credita o apetite acadêmico e profissional das mulheres
ao que ela chama de underdog feelings, o sentimento do cachorro pequeno
da matilha, que precisa brigar para comer. “As mulheres chegaram (ao mercado)
com a mesma obstinação dos imigrantes do fim da Segunda Guerra”, diz
ela. “Precisavam abrir espaço numa situação em que os homens já estavam
bem acomodados.”
Ao sentimento de cachorro pequeno, contrapõe-se o “dividendo patriarcal”. Esse é o nome dado pela socióloga australiana R.W. Connell aos “direitos garantidos do macho”. Connell afirmou, nos anos 1980, que os homens se acostumaram com a exclusão das mulheres da disputa por salários e promoções. Os homens com apenas o ensino médio ganhavam mais que as mulheres com diploma universitário trabalhando o mesmo número de horas. Esse dividendo vem se esgotando, mas ainda há diferenças flagrantes e injustas entre os sexos. As mulheres ganham, em média, cerca de 17% menos que os homens, no Brasil, nos EUA e na Europa. A desvantagem se repete em diferentes setores, faixas de renda e educação.
Como a discriminação explícita diminuiu muito, os motivos para a diferença tornaram-se mais sutis e, por isso, mais difíceis de combater. As mulheres negociam menos, disse Susan Peters, diretora de aprendizado da GE, à revista americana BusinessWeek, em 2009. Segundo ela, mulheres avisam à companhia que sairão e saem. Homens esperam uma contraoferta. O mesmo concluiu um estudo feito por Fiona Greig, consultora da McKinsey e Ph.D. em políticas públicas pela Universidade Harvard. Por causa da hesitação em negociar, as executivas americanas esperam em média um ano e meio a mais que os homens para conseguir promoções e aumentos equivalentes. No Reino Unido, as profissionais autônomas trocam de cliente com menor frequência e, assim, deixam de ganhar mais, segundo uma pesquisa da London Business School. “A mulher que quiser virar uma alta executiva conseguirá. Mas, para isso, precisará se dedicar menos à vida pessoal”, diz Magui, da CTPartners.
Há uma barreira natural à evolução profissional das mulheres: a maternidade. É difícil dizer até que ponto investir na família é uma opção pessoal ou pressão social. Mais complicado ainda definir se as mães são discriminadas na hora da promoção ou se tiram o pé do acelerador por conta própria. Hanna entrevistou 750 cônjuges de famílias em que a mulher recebia o principal salário ou só ela trabalhava. Mesmo nessa situação, mais de três quartos delas eram responsáveis pelos cuidados com as crianças e a casa ou, no máximo, dividiam as tarefas meio a meio. “As mulheres avançam no mercado de trabalho, mas nem por isso conseguem mais apoio para cuidar das crianças”, diz Hanna. Desde 1965, o número de horas de trabalho da americana mais que dobrou, mesmo assim a jornada de cuidados com os filhos também aumentou. As mulheres estão sobrecarregadas. Ou as empresas se adaptam ou as mulheres terão de rever seu papel em um dos dois lugares.
Ao sentimento de cachorro pequeno, contrapõe-se o “dividendo patriarcal”. Esse é o nome dado pela socióloga australiana R.W. Connell aos “direitos garantidos do macho”. Connell afirmou, nos anos 1980, que os homens se acostumaram com a exclusão das mulheres da disputa por salários e promoções. Os homens com apenas o ensino médio ganhavam mais que as mulheres com diploma universitário trabalhando o mesmo número de horas. Esse dividendo vem se esgotando, mas ainda há diferenças flagrantes e injustas entre os sexos. As mulheres ganham, em média, cerca de 17% menos que os homens, no Brasil, nos EUA e na Europa. A desvantagem se repete em diferentes setores, faixas de renda e educação.
Como a discriminação explícita diminuiu muito, os motivos para a diferença tornaram-se mais sutis e, por isso, mais difíceis de combater. As mulheres negociam menos, disse Susan Peters, diretora de aprendizado da GE, à revista americana BusinessWeek, em 2009. Segundo ela, mulheres avisam à companhia que sairão e saem. Homens esperam uma contraoferta. O mesmo concluiu um estudo feito por Fiona Greig, consultora da McKinsey e Ph.D. em políticas públicas pela Universidade Harvard. Por causa da hesitação em negociar, as executivas americanas esperam em média um ano e meio a mais que os homens para conseguir promoções e aumentos equivalentes. No Reino Unido, as profissionais autônomas trocam de cliente com menor frequência e, assim, deixam de ganhar mais, segundo uma pesquisa da London Business School. “A mulher que quiser virar uma alta executiva conseguirá. Mas, para isso, precisará se dedicar menos à vida pessoal”, diz Magui, da CTPartners.
Há uma barreira natural à evolução profissional das mulheres: a maternidade. É difícil dizer até que ponto investir na família é uma opção pessoal ou pressão social. Mais complicado ainda definir se as mães são discriminadas na hora da promoção ou se tiram o pé do acelerador por conta própria. Hanna entrevistou 750 cônjuges de famílias em que a mulher recebia o principal salário ou só ela trabalhava. Mesmo nessa situação, mais de três quartos delas eram responsáveis pelos cuidados com as crianças e a casa ou, no máximo, dividiam as tarefas meio a meio. “As mulheres avançam no mercado de trabalho, mas nem por isso conseguem mais apoio para cuidar das crianças”, diz Hanna. Desde 1965, o número de horas de trabalho da americana mais que dobrou, mesmo assim a jornada de cuidados com os filhos também aumentou. As mulheres estão sobrecarregadas. Ou as empresas se adaptam ou as mulheres terão de rever seu papel em um dos dois lugares.
As características do ambiente profissional atual, ultracompetitivo,
têm tornado ainda mais lento o avanço feminino. A socióloga Paula
England, professora na Universidade Stanford, acredita que a evolução
das mulheres estagnou. A redução da segregação no mercado de trabalho,
pelos estudos da especialista, ocorreu em alta velocidade nos anos 1970 e
1990, mas desacelerou a partir de então. O mesmo ocorreu com a
diferença salarial, que diminuiu, mas muito mais lentamente desde então.
Uma das causas é que as mulheres com menor escolaridade hesitam mais em
buscar profissões reconhecidas como masculinas.
O enriquecimento de uma sociedade não basta para que as mulheres tenham
oportunidades iguais. Várias das regiões mais afluentes do mundo são
ainda machistas em comparação com o padrão europeu ou americano –
encaixam-se nessa definição o interior do Brasil, outras nações da
América Latina, a China e alguns países orientais. Na China, há uma
evidente diferença entre o mundo empresarial, repleto de casos de
mulheres de sucesso, e o mundo político, em que a cúpula do governo as
exclui. A participação das mulheres na política é pífia. No Senado
brasileiro, as mulheres não passam de 16%. Entre os deputados eleitos em
2010, eram apenas 9%. Globalmente, não é diferente. Numa apresentação
sobre a baixa participação das mulheres em cargos de comando, na série
de palestras internacionais TED, a diretora de operações do Facebook,
Sheryl Sandeberg, afirmou: “Se juntarmos todos os parlamentares do
mundo, as mulheres constituem apenas 13% deles”.
O avanço na cultura e nos costumes é mais difícil. “Enquanto a mulher brasileira for liberal na rua mas machista em casa, o avanço será apenas econômico”, afirma a historiadora Mary Del Priore. A mulher brasileira também se apega mais à tradição do que a americana e a europeia. O casamento, no país, ainda tem um valor social tão ou mais forte que o afetivo. “Ter marido e filhos, no Brasil, ainda parece prova que você é bem-sucedida”, diz a antropóloga Mirian Goldenberg, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “É o que chamamos de marido como capital.” A importância dada ao casamento no Brasil cria mulheres mais ansiosas e submissas nos relacionamentos.
O que essa história revela? Primeiro que, quanto mais as mulheres avançam, mais difícil se torna o passo seguinte. É bonito dizer que a sociedade inteira ganha com a igualdade entre os sexos, mas há um número limitado e, às vezes, minguante de bons empregos. A disputa por espaço pode se tornar mais agressiva. Homens acostumados a chefiar famílias e empresas podem ter dificuldades para aceitar as mudanças.
Em segundo lugar, o avanço feminino exigirá uma mudança de estratégia. O que serviu às mulheres nos anos 1980 não se aplica ao século XXI. A antropóloga Mirian considera encerrada a guerra dos sexos no formato antigo. “Hoje, a briga das mulheres é com a imposição do ideal de beleza inatingível, com o Estado, que não garante os direitos dela, e com o empregador, que não necessariamente é um homem. E também com ela mesma, que exige demais de si.”
O confronto entre os sexos, no novo formato, depende menos de novas leis e regras e mais de mudanças de comportamento, também das mulheres. Em muitos casos, elas terão de ajudar os homens. “As mulheres já garantiram seu espaço e estão por cima”, diz Silvio de Abreu. “O homem é que passou a reivindicar o seu lugar.” Otávio não gostaria nada de ouvir isso.
O avanço na cultura e nos costumes é mais difícil. “Enquanto a mulher brasileira for liberal na rua mas machista em casa, o avanço será apenas econômico”, afirma a historiadora Mary Del Priore. A mulher brasileira também se apega mais à tradição do que a americana e a europeia. O casamento, no país, ainda tem um valor social tão ou mais forte que o afetivo. “Ter marido e filhos, no Brasil, ainda parece prova que você é bem-sucedida”, diz a antropóloga Mirian Goldenberg, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “É o que chamamos de marido como capital.” A importância dada ao casamento no Brasil cria mulheres mais ansiosas e submissas nos relacionamentos.
O que essa história revela? Primeiro que, quanto mais as mulheres avançam, mais difícil se torna o passo seguinte. É bonito dizer que a sociedade inteira ganha com a igualdade entre os sexos, mas há um número limitado e, às vezes, minguante de bons empregos. A disputa por espaço pode se tornar mais agressiva. Homens acostumados a chefiar famílias e empresas podem ter dificuldades para aceitar as mudanças.
Em segundo lugar, o avanço feminino exigirá uma mudança de estratégia. O que serviu às mulheres nos anos 1980 não se aplica ao século XXI. A antropóloga Mirian considera encerrada a guerra dos sexos no formato antigo. “Hoje, a briga das mulheres é com a imposição do ideal de beleza inatingível, com o Estado, que não garante os direitos dela, e com o empregador, que não necessariamente é um homem. E também com ela mesma, que exige demais de si.”
O confronto entre os sexos, no novo formato, depende menos de novas leis e regras e mais de mudanças de comportamento, também das mulheres. Em muitos casos, elas terão de ajudar os homens. “As mulheres já garantiram seu espaço e estão por cima”, diz Silvio de Abreu. “O homem é que passou a reivindicar o seu lugar.” Otávio não gostaria nada de ouvir isso.
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Reportagem por MARCOS CORONATO, FLÁVIA YURI E MARINA NAVARRO LINS, COM TONIA MACHADO E THAIS LAZZERI
Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/noticia/2012/10/guerra-dos-sexos-acabou.html
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